EXILED
Johnnie To, Fong juk, Hong Kong, 2006

Johnnie To é um modulador de formas. Este conceito que sempre permeou a obra do cineasta chega a sua face mais concreta em Exiled. Embora possivelmente figure entre os dez cineastas que mais dominem as formas cinematográficas hoje, não interessa a Johnnie To ser um inventor. Neste sentido ele se aproxima diretamente de Brian De Palma, outro cujo domínio de espaço, câmera e tom lhe permitiu retrabalhar todo um arsenal de imagens, criando a partir disso um cinema completamente pessoal. Em Exiled sobra uma dedicação à história do cinema, sendo o próprio filme uma espécie de Meu Ódio Será Sua Herança filmado por Sergio Leone e ambientado na Hong Kong dos dias de hoje. Tudo isto sem soar meramente referencial, pois Exiled é tudo menos um filme morto.

A longa seqüência de abertura já dá uma noção do clima ultraformalista que tomará conta do filme. Numa verdadeira obra-prima da espera, a esposa de Wo, um gangster local que havia desaparecido por algum tempo e recentemente retornara, recebe a visita de um grupo de gangsteres contratados pelo antigo chefe de Wo para matá-lo. Ao mesmo tempo, alguém que lhe deve a vida aparece para defendê-lo. O que se segue é uma sucessão de planos com a duração perfeita que vão aumentando a tensão gradualmente, focando a espera dos grupos, da esposa e bebê de Wo, e vai ganhando personagens a cada novo plano. A seqüência é longa, e To já exibe seu talento impressionante para o controle dos planos, enquadrando e cortando como poucos. Tudo está na medida e a explosão em cena no momento em que o embate finalmente ocorre é das maiores. Exiled é um filme cuja única lógica é a de ser cinema. Daí o fato de ser estilizado ao limite, sem um único plano que não pareça ter sido calmamente arquitetado para aquele espaço, aquelas movimentações. É uma espécie de maneirismo elevado ao limite.

Todo este conceito de cinema é refletido diretamente na dramaturgia que ele emprega. To se utiliza de uma dramaturgia do absurdo, onde nada é posto em cena por acaso, e o que há de mais mirabolante nas relações entre os personagens deve acontecer. A situação-exemplo desta noção da ausência do acaso é o trem com carregamento de ouro que passaria pela montanha budista, um dos trabalhos oferecidos ao grupo. Eles terminam passando o trabalho e optando por algo que lhes parece mais realista, e após uma quantidade considerável de ações diferentes e de suma importância ocorrerem na trama, nosso grupo acabará de frente para o trem de ouro. Quando Wo é seriamente baleado por seu antigo chefe (Simon Yam, presença mais que constante nas obras de To), o grupo liderado pelo genial Anthony Wong o leva para um médico clandestino. Quando ele termina de costurar a barriga de Wo, mais uma das seqüências antológicas de Johnnie To ocorre: seu chefe é levado para o mesmo local. O que se segue é mais uma aula sobre como filmar um tiroteio num espaço pequeno se utilizando de cada detalhe em cena.

Exiled também é um filme sobre amizade e honra, construído em torno desta versão moderna do Wild Bunch (o bando de selvagens) de Sam Peckinpah. A conclusão da já descrita primeira seqüência é exemplar, quando, após um longo tiroteio, a noção de família é restituída na imagem de esposa e filho de Wo, e repentinamente passa a completar, em grupo, a mudança da casa de Wo, jantando, bebendo e se divertindo juntos. Estes cinco homens nutrem uns pelos outros um sentimento de amizade e admiração raro, e To faz crer isso em cada plano que os filma juntos. Eles acabam por decidir que Wo possa participar de um último trabalho junto do grupo, para que possa deixar sua família em condições de seguir sem ele. Na execução do trabalho, Wo termina por salvar a vida do personagem de Anthony Wong, e em conseqüência ficando à beira da morte. Essa noção de dar a vida pelo parceiro está impregnada em toda a jornada destes personagens. Mais que personagens, eles são também o mesmo grupo de atores que dividiram cena em The Mission (1999), aqui reunidos como outros personagens, mas onde To claramente se usa deste sentimento de um grupo reunido. O sentimento de honra também surge na relação que estabelecem com o policial que cuida do carregamento de ouro que estava no trem. Wong, mesmo tendo condições de simplesmente tomar o ouro para o grupo, propõe que se divida o ouro em partes iguais e que se fuja com elas. Mais tarde, quando o grupo é posto contra a parede por seu antigo chefe que ameaça a família de Wo, o policial lhes garante que esperará até o amanhecer.

O momento em que chegam completamente alcoolizados para o duelo final contra Simon Yam, cientes que ali enfrentariam uma batalha que não poderiam vencer mas que era a coisa certa a fazer, remete diretamente ao filme de Peckinpah. Após um rápido embate, apenas o personagem de Wong é mantido refém; os outros calmamente levam a mulher de Wo e seu filho até o lado de fora, lhes dão um carro e avisam a respeito do policial que os aguarda. Retornam para dentro, mais uma vez cientes de que este movimento lhes custará a vida, mas que abandonar um parceiro para a morte seria pior ainda. O que se segue é o tiroteio de abertura mais apoteótica possível, onde o resultado é aquele que por mais que admirássemos os personagens, era o único possível: a morte de todos os envolvidos. Dois momentos já no fim reafirmam a capacidade de To de fazer crer suas imagens mais absurdas através de seu cinema: a lata de Red Bull voando em primeiro plano abrindo o tiroteio e o último suspiro de Wong colocando os óculos escuros para enfim poder morrer. Há ainda a imagem final, com as fotografias de três momentos daquele grupo unido. Primeiro, na juventude; segundo, junto da família de Wo no começo do filme; e, por fim, nas fotos que tiram instantes antes de partirem para a morte. Este é o cinema de Johnnie To.


Guilherme Martins