ESTAMOS BEM MESMO SEM VOCÊ
Kim Rossi Stuart, Anche libero va bene, Itália, 2006

Estréia na direção do ator Kim Rossi Stuart, o filme lida de forma direta com a figura do ator. É um filme sobre captar universos particulares, habitados por estas pessoas. Ainda assim é capaz de fugir do clichê do filme-de-ator, sem ser teatral e muito menos sem carecer de imaginação para criar imagens. É verdade que ele adota uma mise-en-scène livre de amarras, sem um rigor explícito, que permite aos atores caminhar livremente em cena. Mas o que verdadeiramente destaca é sua dedicação em captar, com cumplicidade máxima, os personagens que filma. Centrado em torno de uma família que tenta seguir suas vidas após o abandono da mãe, Stuart mergulha neste universo onde dois filhos pré-adolescentes precisam ajudar seu pai a continuar. O filme é munido de uma harmonia invejável, que no início chega a ser confundível com histeria. Aos poucos ele acerta seu tom, e começa a traçar seus caminhos.

Dentro de um universo claramente masculino, Stuart não dá muito espaço para a filha de seu personagem, retratada com carinho, mas com certa distância. Suas emoções não evoluem como as de pai e filho, sendo geralmente bem diretas. E por mais que o pai seja peça chave e um personagem nada simples, o ser que guia e dá alma à obra é o garoto. É a partir de seu olhar, desde o começo, que tudo se desenvolve. A partir de uma atuação verdadeiramente física de Alessandro Morace, que exibe poucos pensamentos e foge por completo das caretices de muitos atores mirins, Stuart vai construindo aos poucos o painel familiar. Depois de uma primeira meia-hora em que se sente que tudo parece tranqüilo com aqueles personagens e sua trajetória, ele sacode aquele universo ao trazer de volta o personagem da mãe. Se a explosão inicial contra ela é do pai e marido traído e abandonado, é do filho que vêm a resistência em lhe permitir uma segunda chance.

É nesse momento que Kim Rossi Stuart começa seu mergulho mais aberto num certo espírito absolutamente italiano de cinema. Sem alterar aquilo que vinha estruturando até ali, à medida que o garoto vai se afastando e entrando em seu universo particular que pretende excluir sua mãe, fica clara a cumplicidade entre cineasta e personagem. O garoto tenta se auto-excluir da família, se prendendo em seus rituais diários. Sua amizade com um garoto rico que vai morar em seu apartamento é também outro ponto forte, o mundo afetado e irreal em que vivem, sem o filme ter o menor pudor em mostrar que o garoto que vive a princípio num mundo perfeito será muito mais problemático que nosso protagonista vindo de uma família disfuncional. O personagem da mãe é o mais ambíguo, seu desejo de fazer parte da família é claramente sincero, mas sua incapacidade é ainda mais implacável. Quando finalmente mãe e filho parecem reatar uma relação, ela some.

É quando tudo indicava que cairíamos na obviedade e que o flerte com o melodrama poderia desandar. No entanto, mais uma vez Stuart mostra-se capaz de conduzir o filme com a maior das seguranças. Seus personagens entram em crise, as principais tensões estouram, e tudo continua a fazer todo o sentido. Stuart entende o ator no cinema, sabe captá-lo sem o tornar um problema, encontra o espaço exato onde eles se tornam a alma do filme. A fala da língua italiana é também uma questão, em sua forma cotidiana, mais um ponto que Stuart parece trabalhar com cuidado junto aos atores.

São inúmeros os momentos de grande força no filme, sempre ressaltados por uma montagem simples e exata. Stuart capta a intimidade com raro talento, como se vê em seqüências como a em que após perder uma aposta, irmã e prima têm de deixar o garoto tocá-las nuas. O cineasta não se permite uma delicadeza em excesso, mas evita com tranqüilidade a grosseria. Grosseria que assume em diversos momentos sem medo, o que retoma a questão de ser um filme obviamente masculino, cheio de explosões dos personagens. Duas cenas de encenação primorosa fecham o filme: a reconciliação entre pai e filho, feita quase à base de silêncio numa noite escura, ao perguntar de "você está bem?";; e seu último plano, onde o garoto lê a carta da mãe em que ela diz que ele é o único homem de sua vida. São esses momentos de intimidade máxima, com um senso de colocação rara entre câmera e personagens, que fazem desta estréia de Kim Rossi Stuart um grande filme.


Guilherme Martins