DIAS DE GLÓRIA
Rachid Bouchared, Indigènes, França/Marrocos/Argélia/Bélgica, 2006

Dias de Glória, de Rachid Bouchared, é um filme necessário. Por sua importância temática, sua conotação política e sua revalorização histórica – conta-se a participação dos soldados colonizados que defenderam a França na Segunda Guerra Mundial –, não pode ser ignorado. O diretor revela uma história encoberta pela escrita oficial que, em igual grau, permanece nas relações conflituosas – e injustas - que continuam a existir entre franceses originários e descendentes de africanos (ou africanos em geral). Dias de Glória é, antes de tudo, um filme necessário, e possivelmente este é seu maior mérito e também defeito. Se esta história precisava ser contada, Bouchared optou por fazê-la sem riscos, avanços ou outras preocupações formais maiores. Afinal, é um filme necessário, e todos – da criança parisiense ao velhinho da Alsácia – precisam compreender isso. Quando, porém, o tema sobrepõe-se ao modo como é tratado, este mesmo tema acaba por perder sua força, sua importância, e, em última instância, sua necessidade. Dias de Glória padece desse mal.

Não que seja, propriamente, um filme medíocre. O diretor conhece bem os códigos do cinema clássico narrativo, e os utiliza com propriedade. Os movimentos de câmera têm uma certa elegância, as cenas de guerra uma certa força – para a qual contribui o efeito de “cobrir a lente” com a poeira saída do contato das bombas com a areia –, os enquadramentos uma certa beleza. Os personagens são bem construídos, cada um com sua função, e os atores todos estão em sua melhor forma (no caso, o fato de serem descendentes de africanos contribui para isso, e não se pode dizer que o prêmio-conjunto de atuação masculina em Cannes seja desmerecido). A história é envolvente, e seu ineditismo aumenta esse valor. Enfim, um filme bastante bem-feito, mesmo que nunca brilhante. Ainda assim, Rachid Bouchared não dirige imbuído de um espírito autoral ou um sentido de renovação da imagem. E, afinal, se o objetivo de seu filme é fazer um questionamento da história – como foi escrita –, também deveria se fazer um questionamento da imagem – como foi filmada. Ao utilizar-se dos códigos que, em certo sentido, reforçaram a colonização de seu povo, o diretor acaba por afirmar aquilo que, ao longo da projeção, nega.

Pode-se argumentar que, ao contrário, Rachid Bouchared faz o filme mais político. Se todo seu discurso é de inclusão dos africanos naquela pátria que deveria ser também deles e que, por vários fatores, não é, nada mais justo do que dar a esses africanos o direito de fazer os mesmos filmes que os franceses – por sua posição de colonizadores – têm desde que o cinema começou. Afinal, toda a luta destes homens é para provar que eles, também, são franceses. O grande problema desta noção, porém, é que, dependendo das opções estéticas do diretor, esses mesmos homens deixam de ser africanos. Não é porque, em vez de uma trilha de James Horner nas cenas dramáticas, a música incidental ganha o caráter de uma canção muçulmana que toda uma cultura está justificada. Nem porque grandes atores relegados normalmente ao papel de coadjuvantes têm agora sua chance de brilhar que eles ganharam o papel que merecem. Tampouco as constantes indagações sobre o papel dos soldados naquela guerra tomam a forma que deveriam. Um Resgate do Soldado Ryan – guardadas as devidas proporções entre o sentimentalismo exacerbado do diretor americano e o sentimentalismo contido do diretor franco-argelino – sobre o outro lado da moeda não deixa de ser, em parte, um O Resgate do Soldado Ryan, ainda. Rachid Bouchared corta quando deve cortar, fecha o plano quando um ator deve aparecer, movimenta a câmera quando a cena pede. Se o tema é profundo, o didatismo da imagem volta a discussão para o raso.
Talvez o melhor exemplo deste didatismo – e sintomático de toda a construção narrativa – seja a forma com a qual Bouchared trata os franceses e os africanos presentes no campo de batalha. Os primeiros, mesmo com poucos minutos de tela, são tachados como manipuladores, mentirosos, enfim, verdadeiros vilões. Os segundos, ainda que com suas diferenças de personalidade, são soldados de boa índole e coração. Os segundos libertam realmente a França dos alemães. Os primeiros ganham as mulheres, o dinheiro, as patentes e a História (e existem cenas para explicar cada uma dessas situações). Essa oposição simplista é a base do cinema do diretor, que, se apresenta vários méritos (em especial a discussão sobre qual é realmente a pátria de homens perdidos entre serem retirados de suas culturas e não aceitos em nenhuma outra), acaba por perdê-los, a cada close, a cada panorâmica, a cada corte. Dessa forma, a História, infelizmente, permanece a mesma.


Leonardo Levis