Lauren
é a estrela, Lucie é a fã. Uma canta, a outra não. Isild
Le Besco interpreta Lucie, Emmanuelle Seigner interpreta
Lauren, e ambas estão sensacionais no filme. Caindo
em muitos clichês, mas escapando de outros, Backstage
tem ao menos esse grande mérito: o trabalho inspirado
das atrizes. As melhores cenas do filme de Emmanuelle
Bercot são quando ela praticamente resume sua encenação
a criar um campo de forças no qual Le Besco e Seigner
se confrontam, se espelham ou se fundem em uma só. Ao
rosto “empalhado” da diva, coagulado em sua condição
de signo pop, Lucie responde com um olhar esbugalhado,
devorador, quase saltando do rosto, assustador e encantador
ao mesmo tempo. No começo do filme, Lauren vai à casa
de Lucie acompanhada de uma equipe de televisão que
quer gravar a surpresa da fã ao ver em sua própria casa
a artista que idolatra. O número musical que se sucede
é uma porta de entrada e tanto: a fotografia de Agnès
Godard (conhecida por seus trabalhos com Claire Denis)
consegue conciliar a luz do showbizz, do endeusamento
da pop star, com uma luz mais naturalista, que
deixa tudo no plano terreno, consubstanciando as duas
realidades, a da menina e a de sua musa. A adolescente
Lucie não consegue pronunciar uma só palavra, cai no
choro e se tranca no quarto. Enquanto os produtores
do programa e os empresários de Lauren se irritam, pois
o projeto fracassou, Lucie se recolhe à luz avermelhada
e aos milhares de pôsteres que recobrem as paredes de
seu quarto – local em que a fotografia de Godard se
sente mais à vontade no filme.
As cenas musicais começam sempre muito bem, às vezes
de maneira até extraordinária, mas por algum motivo
são interrompidas bruscamente, como se o filme não desejasse
senão parcialmente aquela atmosfera etérea e fantasiosa.
Quando Lucie sai de sua cidadezinha e vai a Paris atrás
de Lauren, esse jogo de oposição fica ainda mais nítido.
Carne e imagem, fama e anonimato, cidade e campo, fantasia
e realidade. Nada de novo nessas associações. Nada de
novo também na forma como Lucie vai ganhando espaço
na vida de Lauren, lembrando a Eve de A Malvada.
A personagem de Le Besco, embora seus ancestrais no
cinema sejam evidentes e datados, recebe um maior número
de matizes que a personagem de Seigner, que no geral
repete a composição dualista da estrela em conflito
– a selvageria escondendo uma fragilidade, a irreverência
e o desapego a tudo escondendo uma profunda dependência,
quase química, em relação às pessoas que vivem ao redor
etc. A maior parte do filme se desenvolve no hotel em
que Lauren e seus acompanhantes estão hospedados em
Paris. Uma personagem importante é a secretária dela,
Juliette (Noémie Lvovsky), que faz o clássico papel
do fiel escudeiro. Atenta, prestativa e com uma ponta
de ciúme, ela observa o filme de soslaio, como quem
se esconde em um lugar qualquer do fora-de-campo para
espionar a relação de Lauren com Lucie e cuidar para
que nada ultrapasse certos limites. É exatamente o que
acontece quando as duas estão peladas na piscina, encarando-se
num misto de morbidez e erotismo, até que ocorre um
corte seco para o plano de Juliette à beira da piscina,
informando que a mãe de Lucie a aguarda no saguão do
hotel. Há também o personagem de Samuel Benchetrit,
namorado de Lauren, outra presença fantasmática no filme.
As cenas dele com Lucie, por quem acaba se apaixonando,
estão entre as melhores de Backstage – em especial
o abraço que dão dentro do carro, com o dia começando,
em frente à casa de Lucie: dois corpos obcecados por
um terceiro (Lauren) que está ausente e que, por isso
mesmo, parece reforçar a vontade de um se agarrar ao
outro.
Por um lado, o filme magnetiza o espectador com sua
câmera inquieta e sua busca por uma dialética constante
entre presença carnal e abstração dos corpos. Mas, em
contrapartida, as mensagens são óbvias e repetidas demais
para acompanhar o entusiasmo com alguns dos momentos
de força que o filme tem. Por exemplo: Lucie diz que
não pode suportar a idéia de que Lauren se relaciona
sexualmente. Durante uma festa, ela invade o quarto
da cantora e a flagra com um homem. As duas brigam e
Lucie fala aos gritos: “Você também vai morrer como
qualquer pessoa!”. Ela volta para casa e ocorre um daqueles
planos que entregam o “texto” do filme: Lucie abraçada
a um pôster de Lauren, enquadrada de um modo que os
rostos das duas ficam espelhados, repetindo a mesma
posição e a mesma feição. O contato com a pessoa por
trás da fama, ou com o corpo por trás da imagem, fez
Lucie querer retornar a uma contemplação do ícone em
estado puro. Depois, contudo, ela tentará atingir a
esfera de encontro entre essas duas Laurens, a da imagem
e da convivência direta. O envolvimento dela com Benchetrit
irá nessa direção. Ela engravida dele, e Lauren diz
que não deseja vê-la nunca mais. Ao final do filme,
a criança que Lucie batiza com o nome da cantora realiza
a interseção, que parecia tão improvável, de seus desejos.
A pequenina Lauren, pessoa real, fruto de uma relação
carnal, é também a perpetuação de uma imagem.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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