A PONTE
Eric Steel, The Bridge, EUA/Reino Unido, 2006

A Ponte serve como um daqueles argumentos fortíssimos, quase irrefutáveis, de que o lugar da ficção ou do documentário, o lugar onde se decide em que lado dessa linha ficaremos, ou se bem no meio dela, não é nenhum outro que não a própria imagem, e o modo como ela nos é apresentada. Não está no caráter daquilo que se encena diante da câmera, nem muito menos no quociente de realidade maior ou menor que esse espaço possa oferecer, mas tão somente na vontade daquele que registra em atribuir esta ou aquela conotação à matéria visual que absorve. Essa vontade de dar sentido parece quase obsessiva a cada vez que uma nova seqüência do filme de Eric Steel aparece na tela, e a consciência desse status todo-poderoso que a imagem adquire enquanto fronteira, mais que trunfo, é exatamente aquilo leva seu filme a lugares tão baixos. Ou quantas vezes ainda poderíamos suportar o truque de acelerar a imagem de carros e faróis sobre uma ponte como grande metáfora da modernidade e seu tempo implacável, destruidor de individualidades, agressor que segue atropelando o homem comum? Ou ainda que grandes pensamentos atingiríamos diante do êxtase nebuloso das nuvens que cobrem o aço, que vencem o aço, ar e água desafiando a insistência do ser humano em ser maior que a natureza? Nas incansáveis tomadas da Golden Gate e da Baía de São Francisco, feitas e repetidas à exaustão e de todos os ângulos possíveis, nem a construção da ponte como monumento dramatizado de uma narrativa contemporânea nem o caráter de personagem de sua própria história, tão objeto de documentação quanto aqueles que pulam lá de cima, o que Steel consegue muito rapidamente é esvaziar qualquer possibilidade de relacionamento dessa imagem com o que está em volta e dentro dela, fechada num monólogo interior que acredita nos valores absolutos que pensa produzir, polarizados quase sempre entre a beleza (nuvens passando pela ponte) e o choque (pessoas que morrem dentro do quadro).

É esse absolutismo que garante a segurança que A Ponte exibe em tudo aquilo que nos parece, no mínimo, duvidoso. É esse fechamento que permite que a imagem de um suicida, acompanhada desde o salto até o impacto no mar, anuncie o título do filme, aparecendo em fade in exatamente no lugar em que o corpo do morto formara uma espuma d’água. Essa seqüência de abertura inaugura a idéia que Steel tem do tipo de registro que está fazendo, e a repetição (porque tudo aqui sempre se repete infinitamente) das imagens reais dos suicídios saem rapidamente da esfera documental, onde qualquer argumento contra a posição ética e o exercício sádico de observação da morte teria alguma aplicação, para encarnarem um espírito ficcional clássico, quase de gênero (o suspense dos grandes planos gerais onde nada aparentemente acontece, até que ouvimos o barulho de um mergulho na água e vemos um ponto branco de espuma no mar azul, e então sabemos que lá está mais um para a lista de nomes que fatalmente aparecerão nos créditos finais).

Mas é na coleta de depoimentos dos parentes e amigos de alguns dos mortos que o projeto de Steel prova a incapacidade de articulação de qualquer dos sentidos espontâneos que surgem daqueles sentidos absolutos inicialmente pretendidos. A tentativa de diagnosticar um mal secreto que tomasse todos aqueles que decidiam pular da ponte enche o filme de teorias primárias sobre a solidão, o desespero e a depressão contemporânea. Algo na solenidade com que o diretor trata essa psicologia de botequim imprime em A Ponte, num contorno diverso daquilo que as imagens da Golden Gate sugeriam, uma espécie de super documentário-verdade, onde nem mesmo a bobagem repetida por um entrevistado é passível de corte, num ato de inteireza moral que parece ignorar que todas as complicações em que o filme já havia se metido. O que vemos é uma sucessão de figuras do white trash americano se esforçando entre os cacoetes de fala para dar alguma materialidade à pessoa que, até ali, era apenas mais um ponto branco de espuma no mar. Nesses momentos, A Ponte se aproxima de um teste de elenco de qualquer um dos filmes de um Todd Solondz, por exemplo. Eric Steel, ávido por drama, acredita que o documentário tradicional, por conta própria, já basta para preencher o filme de humanidade, mas esquece que é na seleção das histórias ouvidas, de seus melhores momentos, dos melhores personagens da vida real, que o gênero se agiganta. Passos de ficção, quase, mas que o diretor ignora.

Verdade com invenção, beleza no banal, a poesia natural da vida, e seria pouco falar em clichê ou em simples calhordice. Acompanhamos, ao longo de todo o filme, trechos entrecortados da história de Gene, um roqueiro cabeludo e solitário (“que usava tudo preto, sempre de preto”), prestes a se matar. Nos primeiros minutos de A Ponte já somos apresentados à essa figura, mas é apenas na última seqüência que finalmente veremos a imagem de seu suicídio. O motivo da eleição de Gene como protagonista indireto do filme não se justifica em nenhum momento, sua trajetória não é mais ou menos interessante que a dos outros suicidas, os depoimentos de seus amigos não são mais ou menos emocionantes, o carisma que sua figura desperta não pode afiançar nenhum tipo de afinidade com o espectador. É quando está subindo no parapeito da Golden Gate que descobrimos porque Eric Steel tanto o valorizara. Desde a postura no alto da ponte até o salto, a morte de Gene era, de todas, aquela que tinha sido melhor documentada. Três câmeras simultâneas, perfeitamente editadas, permitem uma visão cristalina, sem os tremores anteriores, de toda queda livre até o choque final. E aqui já não há mais concepção estúpida da imagem, confusão de sentidos, mau-caratismo ou chatice. O que existe é apenas a utilização das ferramentas do cinema para a produção do desprezível.


Rodrigo de Oliveira