A GRAÇA DIVINA
Jeta Amata, The Amazing Grace, Nigéria/Grã-Bretanha, 2006

As primeiras cenas de A Graça Divina são significativas. Na seqüência inicial, uma tribo africana canta as conhecidas notas de “Amazing Grace”, hino religioso mundialmente conhecido. Na segunda, após os créditos iniciais, uma pomba branca atravessa a tela. Na terceira, essa mesma tribo aparece feliz, em um concurso organizado por eles, divertindo-se e mostrando aos espectadores seus costumes. Um close-up de uma das meninas que lá vivia justifica a transição para a quarta seqüência, na qual a menina já está idosa, contando a história – em inglês – da criação do hino para sua filha. Suas palavras ratificam os planos anteriores e resumem o que o filme apresentará a seguir: os africanos viviam alegres e de bem com a vida até os malvados homens brancos chegarem e acabarem com tudo. Esse raciocínio simplista não é o grande problema de A Graça Divina. Afinal, os europeus realmente dizimaram e escravizaram as tribos africanas, apesar de, naturalmente, o processo ter características mais complexas. Não é de se esperar, porém, de uma obra desconhecida da Nigéria um grande projeto político. Infelizmente, esta mesma visão acaba por tornar o filme de Jeta Amata um retrato preconceituoso e depreciativo do povo que tencionava exaltar.

Um dos principais problemas de A Graça Divina, neste sentido, é o de partir, em sua estrutura, de uma contradição. A história contada pela escrava idosa – e, portanto, pelo filme – é a de John Newton, mercador de escravos arrependido que transformou a melodia africana em um hino mundial, compondo uma nova letra em cima dela. Em teoria, a narrativa de Jeta Amata explica – com linhas didáticas – ao público o motivo dessa conversão, de traficante de escravos a compositor religioso, revestida por valores maiores, que justificam a existência da obra: os negros não devem ser vistos como animais, mas como homens. Na prática, porém, a mesma narrativa, por mais que tente empurrar esses conceitos de cinco em cinco minutos, não chega a tais resoluções. Ao fim da história contada, descobrimos que Newton continuou a exercer seu trabalho por mais cinco anos, e que o hino que escutou naquelas terras só passou a existir oficialmente décadas depois. Se A Graça Divina ancora-se em uma lição de moral que, no fundo, o próprio filme não tem como passar, de que ele vale?

Possivelmente, de seus méritos cinematográficos. Ao contrário da produção nigeriana corrente, feita diretamente ao mercado de vídeo, A Graça Divina pode ser considerada uma superprodução. As locações paradisíacas, os costumes de época e, principalmente, a grua que permeia quase todos os planos, dão essa impressão. Jeta Amata, porém, não sabe utilizar aquilo que tem ao seu alcance. A fotografia, ao ressaltar sempre a beleza africana, transforma todas as árvores, bichos, praias, em cenários de plástico, sem vida ou função. A reconstituição histórica funciona como uma junção de sobras de algum filme hollywoodiano passado na mesma época, em seu conjunto de roupas e artefatos que, ao fim e ao cabo, não formam conjunto algum. Os atores – principalmente os coadjuvantes – não parecem saber o que fazem ali. Mas nada disso se compara aos movimentos de câmera e enquadramentos decididos pelo cineasta. Impressionado com as possibilidades técnicas, Amata brinca de mexer a câmera de um lado para o outro, em gruas tão feias quanto desnecessárias. Seus quadros, ainda que pretensamente belos (como todo o resto no filme), com suas folhas em primeiro plano, no canto da tela, compondo o ambiente, acabam por esquecer-se dos atores, da história, e mesmo da mise-en-scène pretendida. O filme cai na pior dos paradoxos: a lição de moral besta que justificava a história é sufocada por seu virtuosismo barato.

Ficamos com o quê, então? Uma narrativa tosca, mal desenvolvida e impossível de se acreditar (seqüências como a que um escravo arrisca sua vida para salvar o traficante bem-intencionado, dentro de um navio negreiro, sem razão alguma fora a sua imensa bondade natural, são moeda corrente). Uma reafirmação do mito do bom selvagem, na qual os africanos são aquele povo exótico, unido, feliz e brincalhão, contribuindo, no fundo, para que o preconceito continue a existir, ainda que algumas poucas cenas desmintam essa posição (naturalmente as melhores do filme). Principalmente, uma visão colonialista do negro, pela qual sua humanidade só pode ser garantida quando o europeu a certifica (podemos exemplificar com o clímax do filme, no qual John Newton – o europeu – diz que a mulher que ama – a africana – não é um animal porque, afinal, ele nunca amaria um animal). Enfim, de todo o constrangimento que sentimos ao assistir a Graça Divina, ficamos, no fundo, com nada.


Leonardo Levis