OS 12 TRABALHOS
Ricardo Elias, Brasil, 2006

Dentre algumas das características que ligam De Passagem a Os 12 Trabalhos, certamente a que mais chama a atenção é a simplicidade. E Ricardo Elias prova agora que não é preciso mais. Com enredo simples, filmado com sutileza e firmeza, sem firulas, o diretor paulista faz um grande filme e se coloca entre as interessantes promessas brasileiras.

Os 12 Trabalhos conta a história de um garoto recém-saído da Febem. Mas o interesse de Ricardo Elias não está na problematização do sistema carcerário ou de ensino do país. O personagem não fica remoendo o tempo que lá passou, tampouco sofre em demasia com os desdobramentos (sociais ou psicológicos) que a passagem pela Instituição lhe causou. Partindo da entrada do garoto num universo cotidiano, à procura e conquista de um emprego, e seu primeiro dia nele, as questões que interessam no filme são tão palpáveis a qualquer um de nós que facilmente nos aproximamos de Heracles. Aproximamos e olhamos carinhosamente para o protagonista. Este, como o personagem grego, deve executar 12 trabalhos. Mas não para tornar-se deus, mas para garantir o emprego. Na Tebas paulista, a batalha diária nos torna deuses. A recompensa é terminar o dia. E começar um novo.

A comparação pode ser arbitrária, mas a Odisséia de Heracles se dá em um dia. Como na história grega (de Homero), o protagonista perambula (de moto e não de barco, evidentemente) pelas ruas de São Paulo, deparando-se com as mais inusitadas (e por vezes esperadas) situações. Como no romance de Joyce, muitas vezes o fluxo e o andamento da narrativa interessa mais do que as próprias ações.

Mas o Ulisses de Ricardo Elias traz algo que nos toca. A simplicidade. A generosidade. E por que não, a inocência. Longe de ser bobo, ou enganado, Heracles é bastante sagaz e astuto a ponto de se desvencilhar das situações corriqueiras pelas quais tem que passar (carimbar o protocolo de entrega da encomenda, subir 25 andares de escadas, contornar uma multa de trânsito – enfim, os 12 trabalhos). No entanto, o garoto ainda nos faz acreditar no ser humano. Sem maniqueísmos, Ricardo Elias demonstra um afeto incomum por este personagem. Longe de transformá-lo em herói ou sobrevivente de um sistema, mas apenas num sujeito leal (e legal). É nele que o diretor investe trespassando o que parece ser uma visão de mundo que lhe pertence. Um olhar cuidadoso sobre o outro. A vontade de fazer em meio às contingências da rotina.

De maneira coerente, a câmera de Elias sempre se posiciona ao lado de Heracles. Planos próximos do rosto do personagem investigam pela estética o que traz a sua essência. Os planos da agitada e violenta vida dos motoboys são contrastados. Se o modo de filmar é simples, bem como as atitudes de Heracles, a movimentação (o vai e vem) está fortemente presente. A cidade não para. E são os motoboys que, como transgressores de uma lógica de trânsito, em que um segue o outro linearmente, corrompem a organização (também estética) da cidade. Como bichos geográficos, alteram os mapas de trânsito, confundindo e conturbando. Afinal, são frutos da modernidade, da aceleração, da correria que marca a contemporaneidade.

E o ponto de fuga de personagens, motoboys ou não, e diretor, está distante da cidade. É na praia, local onde o horizonte é visível, mas indeterminado. É lá que Heracles vai parar, refletir e provavelmente (pois o filme termina aí) continuar. Mais um dia, mais uma batalha. A Odisséia de Ricardo Elias por ora se completa.

O cineasta abre mão do uso da tecnologia, de efeitos chamativos ou ainda de ferramentas de linguagem que poderiam chamar a atenção para o filme. O universo dos personagens de Ricardo Elias é o mesmo que o seu. Pessoas, trânsito, violência. Mas também gratidão, afeto e esperança. É desenhando que Heracles se desliga da pressão (e pressa, vide sua futura profissão) cotidiana. Com lápis e papel o cineasta abre espaço para seu personagem viajar. Histórias mirabolantes, descolamento social, descompromisso narrativo são permitidos na belíssima seqüência em que Heracles mostra seus quadrinhos para os companheiros de profissão. Se para estes a história é apenas "muito doida", para ele, e para nós, aquele é o momento de libertação, em que frui a espontaneidade e criatividade. Mas Ricardo Elias ainda assim não faz uso de animação, clipes, rebuscamento estético, imagem em preto e branco. Uma leve alteração na textura da imagem, proporcionada pela fotografia, e uma arte que ambienta um período passado já são suficientes para que nos descolemos da dureza rotineira do filme e embarquemos nos sonhos de Heracles. Cineasta generoso, Elias divide também com o espectador a vontade de flutuar, ainda que levados por um disco voador, ou por um avião que nos faz voar pelo deslocamento do ar.

As crianças que compõe o momento de escape do filme são nada mais do que a idealização da inocência e imaturidade que Elias procura em seus personagens. Comer um sanduíche num trailer pode ter o mesmo sabor que um doce para uma criança ou um jantar de gala para a classe alta. Para Ricardo Elias, valores são individuais. Mas há aqueles que estão apenas de passagem, e aqueles a quem o outro é sempre presente. O cineasta mostrou que diferente dos primeiros, veio para ficar. E compartilhar com o espectador a beleza que está presente na rotina, no cotidiano, no dia-a-dia. Tudo muito simples.


Raphael Mesquita