O FÍGADO DE HIROSHIMA
Imamura, a bomba atômica e a Segunda Guerra
 

Black Rain, A Coragem de uma Raça
Kuroi Ame, 1989, Japão

Dr. Akagi
Kanzo Sensei, 1998, Japão/França

11 de Setembro (segmento Japão)
11'09''01 / September 11 (segment "Japan"), 2002, Japão

A sociedade ruma para o caos, o homem não aprende com os próprios erros, o mundo em processo de destruição. A infâmia e a loucura sempre marcaram o cinema de Shohei Imamura, e nada é mais infame na História japonesa do que a 2a Guerra Mundial e as bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki em 6 e 9 de agosto de 1945, respectivamente, que varreram do mapa cerca de 300 mil vidas de uma vez. Em Black Rain, A Coragem de uma Raça, em Dr. Akagi e no episódio Japão para o 11 de Setembro, Imamura trata dos efeitos devastadores da guerra, verdadeira doença que corrói o corpo, a mente, os sentimentos e a alma daqueles que a vivenciam.

Shigematsu e Shigeku, os tios de Yasuko, querem casá-la, pois, aos 25 anos, ela passa da idade: a premissa de Black Rain é arquetípica dos filmes de Yasujiro Ozu, alguns dos quais com Shohei Imamura na assistência de direção. Porém, ao contrário de Ozu, a sobrinha não se rebela contra o casamento, uma vez que a crise dos valores tradicionais do Japão acontece, sobretudo, devido à bomba atômica – no fatídico 6 de agosto, Yasuko, além de receber a chuva negra radioativa, atravessou com os tios a Hiroshima contaminada. Um após o outro, os pretendentes desistem – já que não desejam esposa de pouca saúde que morra a qualquer instante –, exceto seu amigo de infância, de clã inferior que, embora talhe ídolos de pedra, voltou mentalmente perturbado da guerra: sempre que escuta a aproximação de veículos automotores, lança-se para "destruí-los", mesmo que apenas de forma imaginária.

Filme fúnebre, Black Rain se estrutura a partir das memórias de Shigematsu, que intercalam imagens do passado – visões aterrorizantes da cidade destruída, onde homens e mulheres, iguais a zumbis, vagam sem sentido – e do presente, cinco anos depois, em vila rural nas imediações de Hiroshima que concentra sobreviventes do "raio que mata" (impossível não associar o local aos antigos leprosários, em que os doentes eram separados do convívio social e abandonados à própria sorte). Enquanto aguarda a própria morte a da esposa, e torce para que a sobrinha não tenha sido irradiada, Shigematsu participa do enterro de três amigos que com ele estiveram em meio ao horror. São as transformações da sociedade que, se em Ozu integram o ciclo da vida (nascer, crescer, multiplicar, morrer, renascer), em Imamura são catalisadas pelas experiências trágicas da guerra e da bomba atômica, que desestruturam o núcleo familiar – o casamento impossível de Yasuko –, modificam as milenares relações entre os clãs e põem em crise a influência dos antepassados sobre os vivos – a loucura da avó após a reforma agrária, que retirou terras ancestrais da família; a obsessão de Shigeku com a cunhada morta que jamais conheceu.

Embora Black Rain esteja distante dos ângulos extremos e dos intrincados movimentos de câmera que Imamura realiza na década de 60 (em Desejo Profano, Os Pornógrafos, Profundo Desejo dos Deuses, por exemplo) – salvo a representação apocalíptica da Hiroshima atômica, emoldurada pela música de Toru Takemitsu, o campo é mostrado em plano longos, fixos, bucólicos, e os interiores em suaves contra-plongées à altura do chão, bem ao gosto de Ozu –, o cineasta permanece em busca de analogias entre homens e animais: Yasuko, já doente e à beira da morte, identifica-se, por contraste, à carpa-rainha, forte e vigorosa. No segmento Japão para 11 de Setembro, o soldado que volta da guerra prefere se comportar como a cobra, e não mais como homem: para que "ser humano", se este é capaz de perpetraras maiores violências e atrocidades contra seus pares? Na natureza, mata-se pela sobrevivência – somente na civilização, na vida em sociedade, ocorre o assassinato, o crime por motivos torpes. A melhor metáfora visual de Black Rain, todavia, não está na carpa-rainha, mas na própria fotografia em preto-e-branco, visto que se condiciona a cura de Yasuko ao surgimento do arco-íris no horizonte, o somente aconteceria se o filme fosse colorido.

Dr. Akagi (literalmente, "doutor fígado") termina quando Black Rain, A Coragem de Uma Raça começa: com a explosão da bomba atômica em Hiroshima.

Dr. Akagi e Sonoko, sua assistente, estão no bote à deriva (imagem que Imamura já usara em Os Pornógrafos) quando assistem ao cogumelo atômico que, aos olhos do protagonista, toma a forma de fígado hipertrofiado. Correndo para lá e para cá a fim de atender aos pacientes na pequena ilha – que contém campo de prisioneiros estrangeiros – onde trabalha como médico de família, Akagi ajuda a amiga a livrar o bordel de que é dona da suspeita de tifo, esconde e trata soldado holandês foragido, vê a morte do amigo cirurgião viciado em morfina, é preso e torturado, chora a perda do único filho na Manchúria, profana túmulos para fazer pesquisas com seu microscópio e, mais importante, diagnostica "crise de fígado" em todos os doentes que lhe consultam. O encavalar de acontecimentos, que se sucedem de maneira inverossímil; a estranha figura do herói, com calças de golfe, chapéu panamá e movimentos desordenados; a hiper-atividade sexual da assistente e todos os coadjuvantes caricaturais ao redor do par central; a trilha sonora jazzística; as imagens completamente falsas de computação gráfica conferem ao filme tom leve, quase cômico, de desenho animado ao estilo Looney Tunes.

No entanto, em Dr. Akagi Imamura não suprime as críticas aos desmandos civilizatórios e à desumanidade cristalizada na prática social, bem como identifica na guerra o momento em que a falsa ordem cede ao caos, em que o descontrole total rompe a aparente tranqüilidade do cotidiano. Para Akagi, os japoneses estão doentes do fígado: glicose, repouso e alimentação saudável servem apenas para minorar os sintomas da pandemia, não para erradicar o mal. O cineasta, ao metamorfosear a nuvem radioativa em fígado hipertrofiado, transfere-o do concreto ao simbólico, do individual ao coletivo, do corpo à alma: trata-se da sociedade inteira que padece na loucura da guerra, que abdica do pouco de humano que ainda possui em troca da insensatez. E, se nos filmes precedentes do diretor, as comparações com a natureza se davam com elementos exteriores ao homem – peixes, insetos -, em Dr. Akagi (e mesmo em Black Rain: a radioatividade invisível que entra pelos poros e tritura a carne) a metáfora se estabelece com parte constituinte do próprio homem, interna a ele, como se a corrupção já fosse indissociável do apodrecimento da civilização.

Em Black Rain, o ex-soldado com pavor de motores embarca na ambulância para acompanhar a amada ao hospital. Em Dr. Akagi, Akagi e Sonoko vêem abraçados a bomba atômica que explode. Afeto: palavra em desuso que, como leme, garante ao barco à deriva a direção que ele tanto precisa.


Paulo Ricardo de Almeida

 

 





Yasuko e a chuva negra (Black Rain)


Shigematsu à espera do arco-íris enquanto o carro que
leva Yasuko se perde na poeira da estrada (Black Rain)


O homem-cobra (11 de Setembro)