EXPONDO/VENDO/PENSANDO NAM JUNE PAIK
 

A exposição que aconteceu no Rio de Janeiro foi, antes de tudo, uma apresentação à obra (ou no caso, aos vídeos) de Nam June Paik. Didaticamente divididos em três momentos da vida de Paik, os vídeos eram dispostos em três salas, cada uma delas com uma cor representativa. Vermelha para a década de 60 (os primeiros vídeos), verde para a década de 70 e azul para a década de 80 até seus últimos trabalhos (o último é de 2000).

Os vídeos eram projetados (em DVD) em uma tela média, ficando a distância da mesma opcional ao espectador. Ao contrário das tradicionais poltronas de cinema ou da tela individual costumeiras em exposições, a sala misturava as duas idéias. Havia bancos e almofadas (grandes e pequenas) que podiam ser deslocadas por toda sala. A luz era a do cinema: sala escura.

Mas por que começar falando da infra-estrutura e organização da exposição? Talvez por acreditar que Nam June Paik oferece, em primeiro lugar, a experimentação de sensações. De diferentes formas e utilizando-se de infinitas possibilidades de construção (e desconstrução), o pai da vídeo-arte trouxe para o campo da experimentação da imagem as tecnologias digitais, a televisão, o vídeo, as instalações. E se a exposição ocorrida propunha uma ambientação específica que certamente influía na espectatorialidade, fica válido não ignorá-la.

Quando falamos de impressões, seja ela do artista com o objeto, do artista com o dispositivo trabalhado ou do espectador com a obra, podemos falar, também, em impressões do espectador com o espaço. Paik por vezes trabalha o espaço na tela e o espectador se posiciona diante dela da maneira que lhe convém. Se no cinema tradicional há uma predisposição na distribuição do espectador na sala – ainda que a escolha de distanciamento da tela ainda exista – há um formato que nos obriga a uma posição específica e que pouco varia de espectador para espectador ou de filme para filme (para o mesmo espectador). Na exposição de Paik se a tela se apresenta sempre da mesma forma – a imagem é sempre a mesma independente da posição espacial do espectador na sala – sua posição de entrega ao filme pode variar. Uma rápida passada de olhos, em pé mesmo, por uma sala certamente proporciona sensações distintas de deitar confortavelmente em frente à tela.

Neste sentido a exposição caminhava na mesma direção da obra de Paik – oferecendo uma livre recepção. Problemas à parte como a confusão de sons (uma sala interferia na outra), fluxo constante de pessoas, repetição desordenada dos vídeos dentro de cada sala, o que vale, no final das contas é a aceitação (ou não) da obra do aclamado coreano-americano.

E já na década de 60 a experiência proporcionada exige muito do espectador. Paik convida a embarcar na sua viagem. O longa metragem de 80 minutos (9/23/69: Experiment with David Atwood) – que representava quase toda obra de Paik no período – é um compartilhamento de sensações. Se o artista pensou em fazer experimentações concretas, o que resta é uma difusão de imagens sensoriais. O som do filme, quase psicodélico, acompanha imagens de desconstrução e novas configurações do objeto. Paik não chega a resignificar o objeto que perde a sua forma, mas propõe uma série de variações e possibilidades para cada composição. Seja com os rostos de pessoas, seja com pequenas fontes de luz. O filme é uma verdadeira viagem, que é acompanhada pelo espectador num estado de quase-sono. Ora viajamos acordados em outras imagens que àquelas nos transportam, ora sonhamos com as imagens que estão projetadas. Paik propõe ao espectador um estado de suspensão. Somos deslocados do ambiente físico que nos rodeia (e aqui a infra-estrutura com almofadas grandes e confortáveis contribui) e, imbuídos dos sons e imagens propostos, transitamos pelos espaços sugeridos, dentro ou fora do filme. O deslocamento do objeto de sua posição inicial opera como desconstrução de estabelecimentos rígidos. Mas quando Paik se isenta de defender uma leitura rígida, deixando a fluidez do filme ditar a postura do espectador, fica claro a sugestão da experiência sensorial.

De maneira distinta (mas não oposta), o trabalho de Paik na década de 70 apresenta variações sobretudo na forma de pensar as imagens e no modo em que são trabalhadas. A experimentação é ainda preponderante. A confusão de imagens, causada pelos efeitos utilizados – sobreimpressão, recorte e justaposição, incrustação, trabalho de textura, entre muitos outros – é acrescida de um trabalho conceitual que está por trás. Parece, já na década de 60, haver um trabalho de imagens previamente concebido, com fundamentação e experimentações que apontavam em algum sentido (mesmo que fosse as possibilidades das novas mídias, no caso o vídeo). Mas na fase verde (ou década de 70) Paik parece dividir com o espectador-leitor um pouco da responsabilidade de entendimento da obra. É neste momento que aparece a voz off explicativa, a pausa para reflexão e a inserção de figuras concretas e identificáveis. O próprio trabalho de som já não se limita ao campo sensorial (embarcamos nas imagens impulsionados pelo som), mas é apresentado, mostrado, desconstruído, reconstruído. Seja certo fascínio por um violoncelo, seja pelo som da televisão fora do ar, seja pelo corpo-instrumento, seja Paik "cantando" (ou invocando barulhos), o objeto proporcionador do som é também alvo de reflexão. Se Paik vai pensar as imagens a partir de seus dispositivos (vídeo e televisão sobretudo) o som deve passar por tratamento semelhante.

O trabalho conceitual de Paik nos anos 70 é um trabalho cerebral. Algumas idéias que apontavam seus indícios na década de 60 – variação, velocidade, multiplicidade, textura – ganham agora um corpo-imagem que pensa (visível ao espectador) a imagem que produz. Waiting for commercials são algumas propagandas publicitárias que, deslocadas de seu espaço (e tempo) original, ganham novas configurações. Já não passam quase despercebidas, num processo de absorção espontânea. Ao contrário, são postas em local de avaliação, tanto narrativa quanto estética.

Os próprios modelos de exibição (do dispositivo e da imagem) são avaliados num processo que é o processo de construção da obra. Cada vídeo de Paik nasce de uma avaliação do que está sendo feito. Este trabalho auto-reflexivo é exposto e desvendado. Paik constrói corpos "humanos" com televisões. Este corpo, que é físico, é também internamente construído por imagens televisivas – de corpos, partes de corpos, ou outros objetos. A imagem que dali brota passa pelo filtro de Paik. Antes mesmo da recepção primeira, a imagem é interceptada e, alterada ou não, ressignificada. Para o vídeo-artista, a televisão fora do ar não é apenas um conjunto de luzes que criam efeitos no escuro. Assim como os discursos televisivos (ou televisionados) não são apenas palavras (e imagens) gratuitas.

O aclamado Global Groove (de 1973) é sem dúvida ponto de encontro do trabalho de Paik com a imagem – no que tange a experimentação formal – com as significações conceituais. A idéia do mundo globalizado, quase nascente no período, é pensada através de imagens que se compõe e se completam. Há uma coreana sobreposta (ou incrustada) em Nova York. A mixagem (e confusão) que o vídeo apresenta é próxima da "mixagem" do mundo globalizado. A mistura das imagens é a mistura dos povos. Mais do que interagir, Ocidente e Oriente passam a confundir-se, um passa a pertencer ao campo (ou quadro, da imagem) do outro.

O efeito de imagem trabalha, muitas vezes, em função do efeito do discurso. Assim como o conceitual muitas vezes se faz da própria imagem (que tem seu auge na década de 60).

Curiosamente a sala verde era das mais disputadas. Talvez por nela estarem presentes as obras mais conhecidas do vídeo-artista, talvez por numa passada de olhos serem convidativas por seus efeitos narrativos e pela presença de personagens conhecidos (Allen Ginsberg, por exemplo, é figura fácil). Mas vale pensar, ainda que arbitrariamente, que justamente no momento em que se acredita haver uma preponderância do trabalho sensorial (fase vermelha), a disposição da sala caminha no mesmo fluxo. Talvez o espectador só consiga dialogar com a obra se estiver em posição de igualdade. Esta posição é deitado nas grandes e confortáveis almofadas. Quando ocupadas, o espectador obrigado a estar em pé ou sentado desconfortavelmente, têm maior dificuldade de interação. Assim, passa-se para outro ambiente. Já na sala verde, que se acredita haver uma maior exigência de atenção e reflexão (menos fluida), estar sentado (menos relaxado) não representa barreira de recepção. Claro que estas são apenas especulações, mas que cria intersecções de Paik e do espectador.

Quando finalmente chegamos às décadas de 80 e 90, na sala azul, temos uma primeira impressão de familiaridade com as imagens. E isto não é a toa. No terceiro e último momento da carreira de Paik, o vídeo-artista faz uma espécie de retrospectiva de toda sua obra. Há repetição constante de outros trabalhos (principalmente os da década de 70). Colocados quase que inteiramente, ou pequenos trechos, os antigos vídeos são inseridos em nova linha de pensamento que o atualizam, renovam, repensam. Mas o trabalho de Paik não é apenas de auto-reflexão. O pioneiro no trabalho com a vídeo-arte continua a pensar as imagens e suas possibilidades. A inserção (ou repetição) de outros vídeos não está lá para satisfazer uma necessidade individual de Paik em reavaliar sua obra. Aparecem em novas perspectivas que tangem os rumos das novas tecnologias e seu aproveitamento.

Paik mantém as ferramentas utilizadas anteriormente nas suas mais distintas concepções, acrescidas agora de outros trabalhos que já tinham passados pela leitura do espectador. Mais do que nos preocuparmos com referências – como é comum no cinema – deixamos que o vídeo-artista nos reapresente seu objeto de estudo. Se já conhecemos os vídeos anteriores de Paik teremos nova leitura sobre a fase atual. Mas o impacto das imagens é sempre forte e marcante.

Nam June Paik pensa o vídeo da forma que ele se apresenta: múltiplo, variável, inconstante. Pensa suas infinitas possibilidades de manifestação, seja o vídeo como dispositivo (evento, instalação), seja como conjunto de obra (fazer um vídeo). Paik se apresenta como maior difusor de um estado do vídeo que Philippe Dubois cunhou: o estado que pensa. O vídeo mais do que produtor de imagens submetidas ao cinema, ou imagens de registro, se coloca com preponderância, e é a partir das suas características fundantes que podemos lhe atribuir especificidades, formando um Estado autônomo. E mais do que ninguém, Paik nos apresenta-o como tal.

Dubois fala da potencialidade proteiforme do vídeo e sugere que não devemos apenas vê-lo, mas concebê-lo, recebê-lo, percebê-lo. Pensá-lo como "um estado, não como objeto". "O vídeo como estado-imagem, como forma que pensa". Que pensa tanto as imagens quanto os dispositivos que as acompanham. Qualquer afinidade com Nam June Paik? Com certeza, pois se o vídeo se apresenta nessas mais instigantes variações, devemos dar o mérito a quem lhe é devido. E o primeiro nome é o de Nam June Paik que, no mais dos clichês, foi um artista à frente de seu tempo.


Raphael Mesquita