Nature
is a language, can't you read?
Já chegamos ao terço final de Os Pornógrafos
quando o Sr. Ogata, um dos cineastas do título,
desiludido com seu ramo de trabalho, sujeitado que fora
à diversas humilhações e adversidades,
num quadro em que a profissão era apenas o nó
aparente de uma corda social e pessoal que se enroscava
de modo cada vez mais decisivo, a corda de um suicídio
involuntário, resquício de princípios
num mundo mergulhado em imoralidades, num quadro em
que a deriva, o isolamento no mar, mais que acidente
tragicômico, era simplesmente a única possibilidade,
e nesse momento em que Ogata se dá conta do tamanho
de seu próprio enredo acontece em seu estúdio
de filmagem improvisado uma grande cena de orgia, a
última moda do mercado pornográfico. Passando
pelo meio daqueles corpos espalhados pela sala, indistintos
em sua voracidade sexual, o cineasta diz a seu operador
de câmera, com um nojo absoluto, que aquelas pessoas
ali estavam destituídas de qualquer tipo de humanidade,
animais em transe, simplesmente animais. O projeto da
mulher biônica, que passa a desenvolver obsessivamente
após o fim de sua atividade pornográfica,
aparece como uma espécie de seqüência
natural daquela mesma reação diante da
orgia, nada ridículo ou fruto simples da loucura,
mas tão somente a tentativa de um homem em responder
à um traço do mundo que o tocou de maneira
definitiva.
Ainda que não divida com o Sr. Ogata a mesma
reação à essa promiscuidade de
existências, é também nessa linha
entre o homem e o animal que Shohei Imamura vai buscar
seus personagens. Escapando da simplificação
quase ingênua de um "cinema humano",
que não pode ser negada em nenhum momento dos
filmes do diretor, mas que sempre diz muito pouco sobre
que tipo de cinema e que tipo de humano se está
construindo, Imamura quer exatamente buscar nesse homem
um senso de primitivismo que a evolução
do mundo e das coisas foi deixando cada vez mais escondida,
ainda que tenha sido incapaz de liquidá-lo de
vez. Esse estado primeiro só parece ser possível
diante da presença daqueles que nunca saíram
dele, e não deixa de ser curioso que o cinema
humano de Imamura se funde exatamente no inumano. Os
porcos libertos em plena noite de Tóquio pelo
pequeno traficante de mercadorias em Porcos e Couraçados,
a carpa presa no aquário de Ogata em Os Pornógrafos,
espécie de profeta das desgraças que atingiriam
sua casa, os inúmeros planos em close de bichos
copulando em A Balada de Narayama, os títulos
auto-explicativos de A Mulher Inseto e A Enguia,
todos esses momentos em que a presença da imagem
de um animal era o correspondente mais preciso das imagens
dos homens que estavam sendo mostrados ali. Fonte e
ao mesmo tempo desdobramento, é na natureza e
em todos os seus códigos que Imamura irá
se referenciar.
Quando encontramos a Sadako de Desejo Profano,
sempre cabisbaixa diante de todos aqueles a quem deve
respeito em sua casa, desde o menino Tadae até
as anciãs amigas de sua sogra, todos eles mais
dignos desse respeito do que ela própria, mergulhada
num universo particular que parece começar e
terminar sempre com um grunhido, de sentimentos indefiníveis
porque ainda anteriores à existência de
uma linguagem que pudesse verbalizá-los, a imagem
que formamos dela é de algo que se perdeu entre
a civilização e a humanidade em estado
bruto. Não que Sadako tenha modos primitivos,
não saiba se comportar, conviver socialmente.
É que algo na sua maneira de escorregar pelo
plano, sempre atrapalhada pelo excesso de peso e roupas
apertadas, no desajeito de suas ações,
deixa claro que seu pertencimento àquele mundo
se mantém apenas por uma amarra muito frágil.
Lidar com a vida prática e decodificada é
uma dificuldade, e por isso o simples registro de maternidade
de seu filho pode levar anos para ser efetivado, porque
as regras da burocracia parecem sempre complexas demais.
Essa carga animal é reforçada pela insistência
dos velhos moradores de sua vila em lembrá-la
de sua origem. Filha bastarda de uma ex-empregada, à
Sadako é atribuída sempre uma herança
maldita inalienável, como se as aventuras imorais
de sua mãe fossem ser transferidas integralmente
para ela, sexualidade pulsante passada pelo sangue,
numa cadeia evolutiva que não tem nada de evolução,
apenas a prisão eterna a um modo de vida recusado
por todos os que vivem ali, mas inevitável para
quem nasceu dele.
O que era a vibração muda de uma animalidade
tolhida pela obrigação de civilidade só
poderá explodir como a força da natureza
que verdadeiramente é no contato com alguém
com quem se pudesse dividir essa mesma relação
gutural com o mundo. Desejo Profano coloca Hiraoko
na frente de Sadako, baterista num grupo de jazz que
precisa fazer pequenos furtos para comprar um remédio
que impeça seu coração doente de
falhar, e que numa noite invade justamente a casa da
moça. Também filho das mesmas pulsações
primitivas, Hiraoko revelará à Sadako
a potência do sexo, algo que ela sempre vira deslocado
de sua própria natureza, espécie de agrado
incômodo que devia oferecer ao patrão e
marido não-oficial sempre que ele chegasse estafado
do serviço público. Mais do que instrumento
de prazer, o sexo se mostrará a tradução
mais fiel de todo um arsenal de sentidos que permanecia
invisível por falta de um canal que pudessem
transmiti-los sem barreiras ou preconceitos. A história
da natureza de Sadako passa a ser escrita com o sexo,
linguagem de corpos combinados e desejos livres de qualquer
ataque sacralista.
Diante desses dois personagens e do relacionamento sem
meios termos que desenvolverão, era possível
que Shohei Imamura se dispusesse a enquadrá-los
na mesma chave que o pornógrafo Ogata criara
para responder a um dado do mundo que escapasse dos
códigos dominados de relação. Era
possível que, diante da bestialidade de Sadako
e Hiraoko, Imamura reagisse com mecanização.
De fato, um olhar apressado por Desejo Profano
pode dar mesmo essa impressão, a de um filme
biônico. Tudo aparece sempre tão meticulosamente
construído, o repertório de linguagem
do diretor se exibe de modo tão declarado, que
a idéia de exercício robótico de
um esteta não parece tão equivocada. Este
é um daqueles casos raros no cinema em que não
há um único plano que não tenha
sido construído com rigor absoluto, quase sobrehumano,
desde a mera imagem informativa de um objeto esquecido
por alguém até a mais complexa das seqüências
dramáticas, tudo ali para nos fazer lembrar que
por trás existiu o trabalho de um cineasta programado
para reproduzir beleza em série. Com o tempo
percebemos, no entanto, que a disposição
de Imamura é outra. O que parecia afetação
acaba sendo exatamente isso, mas não no sentido
pejorativo de uma opção esnobe e fútil
pelo belo; Imamura se permite ser literalmente afetado
pela força de Sadako e Hiraoko, de modo que o
que era primitivo para o casal passa a sê-lo para
o filme, a reação animal de um personagem
recebe uma resposta igualmente animal do fotograma que
o registra, e dessa obsessão em corresponder
à força natural que seus protagonistas
representam, o próprio Desejo Profano
acaba se apresentando como uma força da natureza.
Cinema é cachoeira tanto quanto é o ratinho
na roda de exercício do primeiro plano do filme,
faces diversas de um mesmo manancial de energias.
Do jogo dialético que Imamura irá propor
entre a materialidade do plano e a inconstância
indomável de seus protagonistas surge um cinema
tão bem organizado que sua origem só pode
ter sido o caos, e Desejo Profano acaba sendo
o melhor exemplo imaginário do que seria do universo
caso o Big Bang, ao invés de ter gerado planetas,
tivesse gerado cinema. Depois de todo o suspense da
seqüência em que Hiraoko invade a casa de
Sadako, onde vemos planos fixos dos espaços da
casa, avançando em compasso de modo a anunciar
que algo ali está fora do lugar, finalmente bandido
e vítima se encontram, e iniciam uma luta. Trocando
tapas e socos atrapalhados, Hiraoko e Sadako são
acompanhados agora por uma câmera na mão
(de lente cinemascope) em plano-seqüência,
e para longe de toda a violência que aparece desse
primeiro contato físico entre os dois, violência
que será uma constante nos encontros futuros,
Imamura busca seu ponto de apoio justamente no oposto
daquele sentimento. O equilíbrio da luta se dará
pela lâmpada acesa pendurada no teto, que está
no meio dos corpos de Hiraoko e Sadako e é atingida
várias vezes por eles, de modo a alterar a luminosidade
do ambiente de acordo com a intensidade dos golpes desferidos,
e é essa lâmpada que Imamura elege como
princípio organizador do plano. A ferocidade
dos personagens recebe da câmera um tratamento
igualmente feroz, mas para que a relação
entre essas duas pessoas que acabam de se conhecer e
que viverão uma história de amor tão
radical possa seguir adiante, nenhum dos dois pode ocupar
uma posição central no plano, o que significaria
o reinado de um sobre o outro, e não a cumplicidade
que se pretende, e por isso a lâmpada e só
a lâmpada pode ficar no centro do quadro. Atores
e câmera dançam um balé de explosão
em volta dela, e a seqüência termina num
susto, aquietando forçosamente tudo aquilo que
se conjugara entre a ordem e o caos.
Assim Desejo Profano irá adiante, produzindo
composições de quadro e movimentos de
câmera nada menos que estonteantes. Com esse filme,
Imamura prova que é possível um cinema
do plano que, ainda assim, não perca vida em
sua construção tão precisa. É
como se, preocupados demais com todas as possibilidades
do espaço fora-da-tela, os cineastas tivessem
se esquecido de tudo o que pode acontecer dentro dela.
O cinema de Imamura acontece exatamente ali, mas que
não se esqueça que o quadro, como uma
tela, é apenas o lugar de ocorrência da
imagem. Essa mesmo só se cria a partir da conjunção
dos elementos de que disponha o diretor/pintor. E, mesmo
que perfeitamente organizados, é preciso ainda
garantir a respiração do que se coloca
em cena, sob o risco de criarmos filmes biônicos
que sejam destinados à deriva no mar. Reconhecer
nos personagens e no choque entre eles uma força
que possa emprestar ao filme um pouco de sua energia,
e eventualmente contaminar-se pela idéia de proporcionar
o melhor palco para o espetáculo das emoções
de pessoas que se dispuseram tão humildemente
a expor suas vidas em película. Uma vez tocado
por essa força da natureza, ler estes sinais,
que são sua linguagem, seu modo de expressão,
torna o plano tão instintivo quanto o caminho
que um bicho-da-seda faz naturalmente pela superfície
lisa da pele de uma mulher. Sadako descobre nesse símbolo,
um pequeno animal que caminha por suas coxas rumo a
seu sexo, a gramática de seu desejo. Imamura
gosta de ver os planos caminhando vagarosamente na pele
de seus filmes, pequenas partes de um desejo de cinema
que mistura verbos e substantivos, sujeitos e predicados
numa mesma linguagem natural que não é
outra senão a do êxtase absoluto com as
possibilidades da imagem.
Rodrigo de Oliveira
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