DESEJO PROFANO (1964)

Nature is a language, can't you read?

Já chegamos ao terço final de Os Pornógrafos quando o Sr. Ogata, um dos cineastas do título, desiludido com seu ramo de trabalho, sujeitado que fora à diversas humilhações e adversidades, num quadro em que a profissão era apenas o nó aparente de uma corda social e pessoal que se enroscava de modo cada vez mais decisivo, a corda de um suicídio involuntário, resquício de princípios num mundo mergulhado em imoralidades, num quadro em que a deriva, o isolamento no mar, mais que acidente tragicômico, era simplesmente a única possibilidade, e nesse momento em que Ogata se dá conta do tamanho de seu próprio enredo acontece em seu estúdio de filmagem improvisado uma grande cena de orgia, a última moda do mercado pornográfico. Passando pelo meio daqueles corpos espalhados pela sala, indistintos em sua voracidade sexual, o cineasta diz a seu operador de câmera, com um nojo absoluto, que aquelas pessoas ali estavam destituídas de qualquer tipo de humanidade, animais em transe, simplesmente animais. O projeto da mulher biônica, que passa a desenvolver obsessivamente após o fim de sua atividade pornográfica, aparece como uma espécie de seqüência natural daquela mesma reação diante da orgia, nada ridículo ou fruto simples da loucura, mas tão somente a tentativa de um homem em responder à um traço do mundo que o tocou de maneira definitiva.

Ainda que não divida com o Sr. Ogata a mesma reação à essa promiscuidade de existências, é também nessa linha entre o homem e o animal que Shohei Imamura vai buscar seus personagens. Escapando da simplificação quase ingênua de um "cinema humano", que não pode ser negada em nenhum momento dos filmes do diretor, mas que sempre diz muito pouco sobre que tipo de cinema e que tipo de humano se está construindo, Imamura quer exatamente buscar nesse homem um senso de primitivismo que a evolução do mundo e das coisas foi deixando cada vez mais escondida, ainda que tenha sido incapaz de liquidá-lo de vez. Esse estado primeiro só parece ser possível diante da presença daqueles que nunca saíram dele, e não deixa de ser curioso que o cinema humano de Imamura se funde exatamente no inumano. Os porcos libertos em plena noite de Tóquio pelo pequeno traficante de mercadorias em Porcos e Couraçados, a carpa presa no aquário de Ogata em Os Pornógrafos, espécie de profeta das desgraças que atingiriam sua casa, os inúmeros planos em close de bichos copulando em A Balada de Narayama, os títulos auto-explicativos de A Mulher Inseto e A Enguia, todos esses momentos em que a presença da imagem de um animal era o correspondente mais preciso das imagens dos homens que estavam sendo mostrados ali. Fonte e ao mesmo tempo desdobramento, é na natureza e em todos os seus códigos que Imamura irá se referenciar.

Quando encontramos a Sadako de Desejo Profano, sempre cabisbaixa diante de todos aqueles a quem deve respeito em sua casa, desde o menino Tadae até as anciãs amigas de sua sogra, todos eles mais dignos desse respeito do que ela própria, mergulhada num universo particular que parece começar e terminar sempre com um grunhido, de sentimentos indefiníveis porque ainda anteriores à existência de uma linguagem que pudesse verbalizá-los, a imagem que formamos dela é de algo que se perdeu entre a civilização e a humanidade em estado bruto. Não que Sadako tenha modos primitivos, não saiba se comportar, conviver socialmente. É que algo na sua maneira de escorregar pelo plano, sempre atrapalhada pelo excesso de peso e roupas apertadas, no desajeito de suas ações, deixa claro que seu pertencimento àquele mundo se mantém apenas por uma amarra muito frágil. Lidar com a vida prática e decodificada é uma dificuldade, e por isso o simples registro de maternidade de seu filho pode levar anos para ser efetivado, porque as regras da burocracia parecem sempre complexas demais. Essa carga animal é reforçada pela insistência dos velhos moradores de sua vila em lembrá-la de sua origem. Filha bastarda de uma ex-empregada, à Sadako é atribuída sempre uma herança maldita inalienável, como se as aventuras imorais de sua mãe fossem ser transferidas integralmente para ela, sexualidade pulsante passada pelo sangue, numa cadeia evolutiva que não tem nada de evolução, apenas a prisão eterna a um modo de vida recusado por todos os que vivem ali, mas inevitável para quem nasceu dele.

O que era a vibração muda de uma animalidade tolhida pela obrigação de civilidade só poderá explodir como a força da natureza que verdadeiramente é no contato com alguém com quem se pudesse dividir essa mesma relação gutural com o mundo. Desejo Profano coloca Hiraoko na frente de Sadako, baterista num grupo de jazz que precisa fazer pequenos furtos para comprar um remédio que impeça seu coração doente de falhar, e que numa noite invade justamente a casa da moça. Também filho das mesmas pulsações primitivas, Hiraoko revelará à Sadako a potência do sexo, algo que ela sempre vira deslocado de sua própria natureza, espécie de agrado incômodo que devia oferecer ao patrão e marido não-oficial sempre que ele chegasse estafado do serviço público. Mais do que instrumento de prazer, o sexo se mostrará a tradução mais fiel de todo um arsenal de sentidos que permanecia invisível por falta de um canal que pudessem transmiti-los sem barreiras ou preconceitos. A história da natureza de Sadako passa a ser escrita com o sexo, linguagem de corpos combinados e desejos livres de qualquer ataque sacralista.

Diante desses dois personagens e do relacionamento sem meios termos que desenvolverão, era possível que Shohei Imamura se dispusesse a enquadrá-los na mesma chave que o pornógrafo Ogata criara para responder a um dado do mundo que escapasse dos códigos dominados de relação. Era possível que, diante da bestialidade de Sadako e Hiraoko, Imamura reagisse com mecanização. De fato, um olhar apressado por Desejo Profano pode dar mesmo essa impressão, a de um filme biônico. Tudo aparece sempre tão meticulosamente construído, o repertório de linguagem do diretor se exibe de modo tão declarado, que a idéia de exercício robótico de um esteta não parece tão equivocada. Este é um daqueles casos raros no cinema em que não há um único plano que não tenha sido construído com rigor absoluto, quase sobrehumano, desde a mera imagem informativa de um objeto esquecido por alguém até a mais complexa das seqüências dramáticas, tudo ali para nos fazer lembrar que por trás existiu o trabalho de um cineasta programado para reproduzir beleza em série. Com o tempo percebemos, no entanto, que a disposição de Imamura é outra. O que parecia afetação acaba sendo exatamente isso, mas não no sentido pejorativo de uma opção esnobe e fútil pelo belo; Imamura se permite ser literalmente afetado pela força de Sadako e Hiraoko, de modo que o que era primitivo para o casal passa a sê-lo para o filme, a reação animal de um personagem recebe uma resposta igualmente animal do fotograma que o registra, e dessa obsessão em corresponder à força natural que seus protagonistas representam, o próprio Desejo Profano acaba se apresentando como uma força da natureza. Cinema é cachoeira tanto quanto é o ratinho na roda de exercício do primeiro plano do filme, faces diversas de um mesmo manancial de energias.

Do jogo dialético que Imamura irá propor entre a materialidade do plano e a inconstância indomável de seus protagonistas surge um cinema tão bem organizado que sua origem só pode ter sido o caos, e Desejo Profano acaba sendo o melhor exemplo imaginário do que seria do universo caso o Big Bang, ao invés de ter gerado planetas, tivesse gerado cinema. Depois de todo o suspense da seqüência em que Hiraoko invade a casa de Sadako, onde vemos planos fixos dos espaços da casa, avançando em compasso de modo a anunciar que algo ali está fora do lugar, finalmente bandido e vítima se encontram, e iniciam uma luta. Trocando tapas e socos atrapalhados, Hiraoko e Sadako são acompanhados agora por uma câmera na mão (de lente cinemascope) em plano-seqüência, e para longe de toda a violência que aparece desse primeiro contato físico entre os dois, violência que será uma constante nos encontros futuros, Imamura busca seu ponto de apoio justamente no oposto daquele sentimento. O equilíbrio da luta se dará pela lâmpada acesa pendurada no teto, que está no meio dos corpos de Hiraoko e Sadako e é atingida várias vezes por eles, de modo a alterar a luminosidade do ambiente de acordo com a intensidade dos golpes desferidos, e é essa lâmpada que Imamura elege como princípio organizador do plano. A ferocidade dos personagens recebe da câmera um tratamento igualmente feroz, mas para que a relação entre essas duas pessoas que acabam de se conhecer e que viverão uma história de amor tão radical possa seguir adiante, nenhum dos dois pode ocupar uma posição central no plano, o que significaria o reinado de um sobre o outro, e não a cumplicidade que se pretende, e por isso a lâmpada e só a lâmpada pode ficar no centro do quadro. Atores e câmera dançam um balé de explosão em volta dela, e a seqüência termina num susto, aquietando forçosamente tudo aquilo que se conjugara entre a ordem e o caos.

Assim Desejo Profano irá adiante, produzindo composições de quadro e movimentos de câmera nada menos que estonteantes. Com esse filme, Imamura prova que é possível um cinema do plano que, ainda assim, não perca vida em sua construção tão precisa. É como se, preocupados demais com todas as possibilidades do espaço fora-da-tela, os cineastas tivessem se esquecido de tudo o que pode acontecer dentro dela. O cinema de Imamura acontece exatamente ali, mas que não se esqueça que o quadro, como uma tela, é apenas o lugar de ocorrência da imagem. Essa mesmo só se cria a partir da conjunção dos elementos de que disponha o diretor/pintor. E, mesmo que perfeitamente organizados, é preciso ainda garantir a respiração do que se coloca em cena, sob o risco de criarmos filmes biônicos que sejam destinados à deriva no mar. Reconhecer nos personagens e no choque entre eles uma força que possa emprestar ao filme um pouco de sua energia, e eventualmente contaminar-se pela idéia de proporcionar o melhor palco para o espetáculo das emoções de pessoas que se dispuseram tão humildemente a expor suas vidas em película. Uma vez tocado por essa força da natureza, ler estes sinais, que são sua linguagem, seu modo de expressão, torna o plano tão instintivo quanto o caminho que um bicho-da-seda faz naturalmente pela superfície lisa da pele de uma mulher. Sadako descobre nesse símbolo, um pequeno animal que caminha por suas coxas rumo a seu sexo, a gramática de seu desejo. Imamura gosta de ver os planos caminhando vagarosamente na pele de seus filmes, pequenas partes de um desejo de cinema que mistura verbos e substantivos, sujeitos e predicados numa mesma linguagem natural que não é outra senão a do êxtase absoluto com as possibilidades da imagem.


Rodrigo de Oliveira

 

 





Sadako e o bicho da seda em Desejo Profano (1964)