ATIREM NO PIANISTA
François Truffaut, Tirez sur le pianiste, França, 1961
Telecine Cult, dia 30/07/06, 22:00

Nouvelle Vague irreverente

A primeira seqüência de Atirem no Pianista mostra um homem fugindo de outros dois. A perseguição começa sem que saibamos do que se trata, e sem ao menos identificar os personagens (o ambiente escuro contribui para isso). O homem corre até encontrar de frente com um poste. O choque inevitável o derruba, mas, num acaso, acaba desviando os perseguidores. Caído no chão, é atendido por um quarto homem que, após checar o estado físico do primeiro o levanta e ambos caminham juntos pela rua escura. O homem puxa conversa e pergunta sobre uma possível vontade do outro em se casar. Com a maior naturalidade os dois começam a conversar sobre o assunto até que em determinada esquina, o rapaz vira-se e pergunta para onde aquele seguirá. Como irão para caminhos diferentes, se despedem e seguem normalmente. O primeiro após olhar para trás e checar se está sendo perseguido, volta a correr e subitamente os dois perseguidores reaparecem. E assim é este segundo longa de Truffaut. A espontaneidade, o acaso e o nonsense estão presentes não só nesta primeira seqüência, como ao longo do filme. Predomina um humor perspicaz que se dá através da naturalidade com que são tratadas as diferentes situações.

Se em Os Incompreendidos Truffaut tinha uma preocupação narrativa e sobretudo um envolvimento pessoal refletido numa trama de reconhecimento, em Atirem no Pianista o que vemos é um jovem diretor que faz um filme sem maiores expectativas além do entretenimento. As questões problematizadas no filme – os perseguidores, o irmão do pianista, o mistério que se faz em torno deles, sua dupla identidade – funciona como pano de fundo das cômicas (ainda que por vezes trágicas) situações presentes. Ao longo da narrativa a situação dramática proposta vai perdendo importância até atingir a inexpressão. Somos conduzidos a não levar a sério o que se trata, tão pouco esperar qualquer resolução verossímil.

Truffaut faz um filme cheio de vigor e humor. Ainda que resista uma certa melancolia na figura do pianista (Charlie Kohler/Edouard Saroyan, emblematizado por Charles Aznavour) o tom que perdura no filme é de leveza e satisfação. Charles Aznavour pode ser visto como o par antitético de Jean Paul Belmondo (protagonizando nesta época os filmes de Godard – Acossado, Uma Mulher É uma Mulher, Pierrot le fou). Se Belmondo faz um tipo característico, uma mistura da figura de malandro com sujeito boa pinta, o tipo simpático, Aznavour ganha a simpatia a partir da simplicidade. Se Belmondo se ornamenta de artimanhas (seu gesto típico de passar o dedo sobre os lábios), Aznavour faz o tipo bonzinho, o sujeito legal. O primeiro ganha pela esperteza desmascarada, o segundo pela simplicidade no olhar e nos dedos ágeis no piano. Se pra Godard, Belmondo atende bem a seus anseios, inserido em narrativas irregulares que apostam na provocação, pra Truffaut Aznavour vem preencher com satisfação uma narrativa despretensiosa, mas que conta com um certo afeto que faz com que nos liguemos ao personagem.

Atirem no Pianista mostra toda irreverência que a Nouvelle Vague parecia relutar. Irreverência que não é a de Godard político, é a irreverência gratuita, de um diretor corajoso, sem medo de errar, que aposta nas mais inusitadas referências e situações. Deixar uma narrativa ser conduzida sem a preocupação do que acontecerá na seqüência seguinte talvez tenha sido uma das características constantes nos filmes da Nouvelle Vague, mas cabe aqui ressaltar de que maneira Truffaut estabelece esta operação em Atirem no Pianista. Usando a janela 2:35:1 o espaço na tela torna-se imenso para mostrar apenas a simplicidade sugerida. E apesar de quase não utilizar luz artificial, há construções estéticas muito bem estabelecidas, que dão ganho ao filme sem contrapor o "despropósito" narrativo. Talvez isso só fosse possível no começo da década de 60, em que a experimentação caminhava junto com a preocupação formal do filme. E Truffaut arrisca fazer planos virtuosos, enquadramentos precisos, trabalhando uma imagem apurada, mesclando com deficiência técnica e descontrole narrativo. Apesar de quase um contra-senso, o filme torna-se primoroso, pois compartilha suas características com o espectador, deixando de canja ainda, uma trilha incidental precisa, que conta com letras, no mínimo, engraçadas. Truffaut mostra aqui, como se viu poucas vezes em seu cinema, um filme próximo do humor, da irreverência e da coragem que o caracterizava nas críticas da Cahiers du Cinema.


Raphael Mesquita