Lubitsch
era um príncipe
Antes de tudo,
temos a imagem, aquela dos filmes de antes da guerra,
e eu gosto muito dela. Os personagens são pequenas silhuetas
sombrias na tela, eles entram em cena batendo portas que
são três vezes maiores que eles. Não havia crise de habitação
naquela época, e, nas ruas, por causa das bandeirolas
de apartamentos a alugar, era 14 de julho o ano inteiro.
Esses grandes cenários disputavam a atenção com os atores,
o produtor pagava caro por eles, era preciso vê-los, e
o sujeito dos charutos prezava muito seu dinheiro e eu
creio que ele teria mandado à merda o diretor que tivesse
a petulância de fazer o filme inteiro em closes. Nessa
época, quando não se sabia exatamente onde colocar a câmera,
ela era colocada bem longe. Hoje, na dúvida, eles a atocham
nas narinas dos atores. Passou-se da insuficiência modesta
à insuficiência pretensiosa.
Essa introdução
nostálgica e reacionária não está deslocada para apresentar
Lubitsch, que – mais do que Pierre Doris afirmando que
era melhor chorar numa jaguar do que no metrô – pensava
com firmeza que é melhor rir num palácio do que suspirar
nos fundos da loja da esquina. Sinto que não terei o
tempo de resumir.
Como todos
os artistas da estilização, Lubitsch, conscientemente
ou não, aproximava-se da narração dos grandes autores
de contos de fadas. Em Anjo, um jantar tedioso e constrangedor
vai reunir Marlene Dietrich, Herbert Marshall, seu marido,
e Melvyn Douglas, seu amante de uma noite só que ela
acreditaria jamais ver novamente, e que seu marido trouxe
por acaso para jantar. Como acontece várias vezes nos
filmes de Lubitsch – voltaremos a isso –, a câmera deixa
o lugar da ação para ir ao lugar que permitirá observar
as conseqüências. Estamos na cozinha. O maître vai e
vem, ele leva primeiro o prato de madame: “Curioso,
Madame nem tocou em sua costeleta.” Depois o prato do
convidado: “Olha só, ele também não.” (Na verdade, essa
segunda costeleta está cortada em cem pedacinhos inteiros.)
o terceiro prato chega, vazio: “Já o patrão parece ter
apreciado a costeleta”. podemos reconhecer Cachinhos
Dourados na casa dos três ursos: a tigela de Papai Urso
estava quente demais, a de Mamãe Urso fria demais, a
do Bebê Urso “perfeita”. Vocês conhecem uma literatura
mais necessária do que essa?
Este,
então, é o primeiro ponto comum com o “hitchcock-touch”,
e o segundo é provavelmente a maneira de abordar o problema
do roteiro. Aparentemente, trata-se de contar uma história
em imagens e é o que eles mesmos irão dizer em suas
entrevistas. Não é verdade. Eles não mentem por prazer
ou para rir da nossa cara, não, eles mentem para simplificar, porque a realidade é complicada demais e é mais importante
passar o tempo trabalhando e aperfeiçoando, já que estamos
falando de perfeccionistas.
A verdade
é que trata-se de não contar a história e até de buscar o modo de não contá-la de forma alguma. Há, claro, o princípio
do roteiro, resumível em algumas linhas, é geralmente
a sedução de um homem por uma mulher que não o quer,
ou o inverso, ou ainda o convite ao pecado de uma noite,
ao prazer, os mesmos temas que Sacha Guitry, sendo que
o essencial é não tratar o assunto diretamente.
Então, se permanecemos por trás das portas dos quartos,
se nós ficamos no escritório quando tudo acontece no
salão e no salão quando tudo acontece na escada e na
cabine telefônica quando tudo acontece no porão, é que
Lubitsch, modestamente, quebrou a cabeça durante seis
semanas para finalmente liberar os espectadores para
fazerem o roteiro eles mesmos, com ele.
Existem
dois tipos de cineastas, e o mesmo se dá com pintores
e escritores: aqueles que trabalhariam mesmo numa ilha
deserta, sem público, e aqueles que... bem.. de que
serve? Não existe Lubitsch sem público, mas, cuidado,
o público não é “a mais”, mas “com”, ele faz parte do
filme. Na banda sonora temos os diálogos, os ruídos,
a música e nossos risos, é o essencial, e sem isso não
tem filme. As elipses de roteiro, prodigiosas, só funcionam
porque nossos risos estabelecem a ponte de uma cena
a outra. No queijo-Lubitsch cada buraco é genial.
De tempo
em tempo a expressão “mise-en-scène” significa alguma
coisa, e aqui ela é um jogo que só pode ser praticado
a três e somente durante o tempo da projeção.
Logo,
nada a ver com o cinema do Doutor Jivago. Se você me
disserem: “Acabo de ver um filme de Lubitsch em que
tem um plano inútil”, eu vou considerá-lo como um mentiroso.
Esse cinema, o contrário do vago, do impreciso, do não-formulado,
não comporta nenhum plano decorativo, nada que esteja
lá “para ficar bonito”, não, estamos diante do essencial
somente.
No papel,
um roteiro de Lubitsch não existe. Não faz sentido,
e tampouco depois da projeção, tudo acontece durante o momento em que assistimos.
Nós estávamos
lá, no escuro, a situação era clara, ela se mantinha
em tal nível que, para nos reconfortarmos, nós antecipamos
a cena seguinte recorrendo evidentemente a nossas lembranças
de espectador, mas Lubitsch, justamente, como todos
os gênios, imbuído do espírito de contradição, passou
em revista ele próprio as soluções preexistentes para
adotar aquela que nunca tinha sido utilizada, o impensável,
a enorme, o maravilhoso, o desnorteante.
Seria
possível evidentemente falar do “respeito ao público”
mas essa noção serve muitas vezes de álibi, deixemo-la
de lado e tomemos um exemplo bem-vindo.
Em Ladrão
de Alcova, Edward Everett Horton olha para Herbert Marshall
de maneira suspeita. Ele crê que viu aquela cara em
algum lugar. Quanto a nós, sabemos que Herbert Marshall
é o batedor de carteira que, no começo do filme, roubou
o pobre Horton num quarto de palácio em Veneza. Logo,
é necessário que num certo momento Horton se recorde,
e nove cineastas em dez, todos fingidores, o que fazem?
O sujeito dorme em sua cama e, de noite, no meio do
sono, ele acorda, e, mão na testa, diz: “É isso! Veneza!
Ah, o canalha!” Quem é o canalha? Em todo caso, não
é Lubitsch, que tem um trabalho do cão, que dá o seu
sangue e que vai morrer de cinema vinte anos mais cedo.
O que é que esse Lubitsch faz, hein, como diz Jean-Pierre
Léaud em A Chinesa? Lubitsch nos mostra Horton fumando um cigarro, visivelmente
perguntando-se onde ele poderia ter visto anteriormente
Marshall, fumando mais uma vez seu cigarro, refletindo,
e depois apagando o toco de cigarro num cinzeiro de
prata em forma de gôndola... Veneza! Que diabos! Bravo,
agora é o público que cai na gargalhada e Lubitsch está
lá, em pé, no fundo da sala, vigiando sua ‘audience”,
receando o menor atraso de riso como Fredric Marsh em
Ladrão de Alcova, observando o ponto teatral que vê
Hamlet se aproximara rampa e diz prontamente dá a ele
o texto: “To be or not to be”!
Eu falei
do que se aprende, falei do talento, falei daquilo que,
no fundo, eventualmente, pode se comprar e afixar um
preço, mas o que não se aprende e tampouco se compra
é o charme e a malícia, ah, o charme malicioso de Lubitsch.
eis o que fazia dele verdadeiramente um príncipe.
François Truffaut
(tradução: Ruy Gardnier)
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