NA VANGUARDA DO LATIDO
Estevão Garcia e Raul Fernando falam a respeito do FBCU e de O Latido do Cachorro Altera o Percurso das Nuvens

Mescla de exercício, provocação, questionamento estético e trampolim para um posicionamento político frente ao cenário cinematográfico brasileiro (universitário ou não), O Latido do Cachorro Altera o Percurso das Nuvens retoma expedientes de linguagem das vanguardas cinematográficas da década de 20 como forma de declarar uma filiação e um desejo pela afirmação de um cinema experimental. Realizado em 2000 e finalizado apenas em 2005, o filme foi impulsionado, de um lado, por sua configuração plástica e, de outro, por discursos em defesa de um engajamento cinematográfico. Em sua passagem pelo Festival Brasileiro de Cinema Universitário, ele acabou trazendo a reboque diversas discussões e posicionamentos políticos no âmbito dos debates realizados após as sessões, e rendeu um bom papo com Raul Fernando e Estevão Garcia, dois dos cinco realizadores do filme, sobre a elaboração do filme, o contexto de difusão do curta-metragem, a relação entre filme e público, o engajamento de afirmar uma postura, entre outras coisas.  (LM & TM)

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Tatiana: Na edição do Festival Brasileiro de Cinema Universitário deste ano reparamos uma questão forte de coletivo versus individual. Coletivo como propostas coletivas de Cinema, de posicionamento, versus uma postura individual em relação à própria realização do filme, tendo no diretor a figura que organiza tudo (algo também associado a uma falta de um discurso mais articulado não apenas sobre o próprio filme, como sobre o Cinema e sobre a relação do filme em questão com o ambiente em que ele está inserido). E, neste contexto, o que mais nos chamou atenção foram justamente dois filmes vindos de grupos (por um lado O Latido Altera o Percurso das Nuvens, por outro A Estória da Figueira), que estão associados a um conjunto de pessoas que estão fazendo algo juntas. E que se apresentam como um coletivo, pensando e sentindo determinadas coisas, no entrecruzamento entre discurso e filme, que é uma característica muito própria deste Festival: temos a exibição de um filme e em seguida um debate, no qual os próprios diretores se colocam e discursam, não só sobre seu próprio filme (seja como defesa, seja como argumentação, seja como for), mas também com discursos no sentido de palanque mesmo... Considerando tudo isso, queria saber como vocês pensam o filme de vocês nesta articulação com o discurso, seja dentro do filme, seja pra além do filme, seja num diálogo com a produção da época em que ele foi realizado, seja com a de agora, que ele está sendo exibido...

Raul: Acho que essa questão do coletivo, ela se apresenta num campo político: no modo de produção do filme, que já nasce da coletividade, da vontade em comum de um grupo de fazer cinema. Durante a produção deste fazer cinema, tivemos um exercício árduo de democracia. Quando rolavam divergências (em alguns pontos havia uma aceitação de todos, mas em outros havia discordâncias de opiniões – estou pensando mais até no processo de montagem), havia uma discussão muito grande, a gente tinha que elaborar, o tempo inteiro, defesas dos nossos pontos de vista e quando não se chegava a um denominador comum, se partia pro voto mesmo: vamos votar e ver, a maioria vence. Então acho que o filme representa muito disso também, acho que esse modo de produção se mostra também na estética do filme, acaba interferindo nela... Quando você vai assistir ao filme, você não sabe de todo esse processo, de disputa, uma disputa extremamente positiva, que rolou na feitura do produto, você vê uma obra que está repleta de contradições: contradições individuais e contradições do grupo também. A diferença está sempre presente no filme, é um filme que realça a diferença. A gente pode partir dessa questão da coletividade e levá-la pra um outro ponto muito discutido hoje, que é a questão da propriedade da obra, propriedade em vários sentidos. Então, nesse sentido, o filme também se coloca como político, em vista de não ter um dono: são cinco donos, a propriedade intelectual sobre esse produto é dividida entre cinco pessoas.

Estevão: E é um filme autoral, que você vê que foi pensado, onde você vê uma marca de autor, uma marca de estilo, só que um estilo dividido, coletivo...

Raul: Plural...

Luisa: E essa coletividade acaba resultando numa esquizofrenia, que, de alguma maneira, se reflete na forma do filme, no estilo do filme, e que tem a ver com o próprio discurso dele e com as referências de vocês, referências de vanguarda dos anos 20, que utilizavam essa linguagem. O processo de construção do filme se reflete na própria forma do produto final.

Estevão: É, a gente era um grupo muito unido, o Raul morava com a Camila (Márquez) e com a Rebecca (Ramos), que são as outras realizadoras do filme; eu morava perto, era praticamente vizinho deles. A gente morava em Botafogo e o Pedro (Urano) morava no Humaitá, que é perto também. A gente sempre se reunia na casa deles, via vários filmes juntos, os filmes que serviram como referência pra gente, explicitamente citados no Latido, e discutia sobre eles... Então sempre foi uma experiência conjunta, a gente compartilhava as mesmas referências, de um tipo de cinema que a gente queria fazer, um cinema experimental, um cinema de invenção, que dialoga com esse primeiro cinema experimental das vanguardas dos anos 20, um cinema experimental em seu estado embrionário, original. Existia um diálogo muito grande, tanto a respeito dos filmes, como a respeito de textos, que a gente lia em conjunto. Isso se refletiu na elaboração do filme, na discussão do argumento: o Raul apresentou um argumento, eu apresentei outro, a gente discutiu em conjunto, depois eu fiz o roteiro, dividi em seqüências, aí a gente voltou pro coletivo, pra discutir esse roteiro já elaborado. Foi sempre uma coisa de começar no coletivo, partir pro individual e depois voltar pro coletivo, também nos outros setores: fotografia, figurino, direção de arte... Todos funcionaram assim; cada pessoa tinha sua especialidade, mas começava no coletivo, ia pro individual e retornava pro grupo.

Tatiana: E como produto acabado, essa estética que vocês conseguiram através desses processos todos, como vocês acham que ela se coloca em relação ao meio que a recebe hoje?

Raul: Isso é um problema que o Cinema Brasileiro, especialmente o Cinema Novo, se deparou: até que ponto nosso Cinema se comunica com o público, até que ponto a gente propõe uma intervenção social na alienação do público... Tanto que surgiu uma busca de um meio termo ali, de um filme que politizasse mais o povo, mas que não construísse um discurso inacessível a esse povo também. Acho que o exemplo mais bem acabado acerca dessa problemática talvez seja o Macunaíma, do Joaquim Pedro. Aí a gente volta pro momento inaugural do filme. O curta-metragem no Rio, naquela época, era basicamente consumido pelos alunos de cinema e, em parte, pela galera que estava produzindo através dos editais que rolavam por aí. Era um momento em que o Cinema estava ressurgindo, também. Com o fim da Embrafilme, rolou um marasmo e a UFF era a maior produtora de filmes durante esse período. E depois voltaram a haver as leis de incentivo e começou a se pensar o tipo de cinema que se queria fazer. A sociedade se viu mais ligada ao liberal e optou por um cinema que vinha preencher essa demanda mesmo, uma demanda pelo consumo. A universidade, de certo modo, estava pensando uma questão mais social, pelo menos era a impressão que eu tenho dos debates que rolavam ali na UFF, de pensar um cinema mais de intervenção mesmo... O Latido surgiu um pouco nesse meio. Então, eu acho que o filme se coloca como um filme feito pros nossos pares, de certa maneira, que era a galera que tava assistindo àqueles filmes naquela época. Hoje, o curta-metragem já é encarado como um produto direcionado ao mercado; existem alguns eventos, como o Cachaça Cinema Clube, o Beco do Rato, o Mate Com Angu, lá em Caxias... A gente está atingindo um outro tipo de público, de certa forma. O Latido... é um filme que, de certo modo, se comunica com esse novo público que surgiu, mas ele não foi feito tendo esse público como alvo primordial, acho que é um filme que se coloca como provocação entre os nossos pares e se coloca para um debate: que tipo de cinema é esse que a gente vai fazer? Ele se apresenta como uma grande questão, que acho que a gente mesmo não resolveu e carrega até hoje. A gente avançou, de repente, na discussão de como intervir, mas o filme se mostra como essa intervenção, por mais que não seja bem entendido, é uma ruptura com esse modelo liberal, que tenta se ocupar de uma oferta e uma demanda. Eu vejo o filme um pouco como uma ruptura e como um questionamento de que caminhos a gente deve seguir.

Estevão: Comparando o panorama da difusão do curta-metragem na época em que a gente concebeu o filme, há 6 anos, e hoje, pegando o cenário carioca especificamente, acho que existe uma diferença: tem um público, não só de estudantes de cinema, que freqüenta esses lugares, o Cachaça, o Beco do Rato... São pessoas de outras áreas, que estão nesse movimento como espectadores... Isso é uma coisa positiva. Fora do Rio, não vejo essa mudança tão evidente; acho que no Sul tem um movimento cineclubista bem forte, também, de difusão de curta-metragens, mas no Norte, Centro-Oeste, imagino que não seja tão forte ou evidente quanto nas principais metrópoles, como São Paulo, Rio, BH e no Sul. Pensando a partir disso, o panorama das pessoas que viam curta-metragem nessa época em que O Latido foi feito realmente era de um público restrito aos festivais. A gente fez o filme já sabendo, mas não de uma maneira racional: "é esse o público que vai ver", focado nisso, sabendo, de antemão, onde nosso filme ia circular, que ele não ia sair desse âmbito.

Raul: A relação com esse novo meio que se estabelece agora também seria já, digamos, entrando no campo de um mercado. Apesar de ele se comunicar, acho que a resposta que a gente teve do filme, também, com um público muito especializado, revela que esse público é muito disciplinado, condicionado, ou seja, o público já senta ali no cinema à espera de ver uma história, que vai ser contada, com princípio, meio e fim, por mais que seja meio embaralhada. O público hoje, principalmente um público sofisticado, consegue ler esse embaralhamento muito bem, mas no final das contas, espera uma moral da história. O Latido rompe um pouco com isso também, no sentido de que, no meio daquela anarquia, uma anarquia positiva, a moral escapa, não é uma moral que encerra, é uma moral que expande. Aí a gente volta praquele questionamento do público, de como o filme se relaciona com o público. É muito difícil a gente romper esse condicionamento. Talvez por isso Macunaíma seja o exemplo mais bem acabado dessa intervenção, pois desloca seu ponto de vista pra esse discurso mais disciplinado, pra subvertê-lo lá dentro. O Latido não faz esse deslocamento não, ele entra de sola, já propondo...

Luisa: Isso faz todo sentido quando você fala que o filme é uma provocação.

Tatiana: Pensando nessa coisa da provocação, O Latido se constrói basicamente como um jogo de referências a um determinado cinema, uma coisa específica. Essa provocação, essa anarquia, está na forma de construção dele, mas não propriamente nas imagens, digo, plasticamente. Está mais numa construção estética que organiza o todo e naquilo como proposição, a partir do momento em que você filma imagens como se fazia há oitenta anos e as ordena, tendo como base o coletivo e todas essas discussões... Vocês propõem isso, jogando pras pessoas, como questionamento, como o Raul falou... Como vocês acham que esse questionamento é respondido, vocês acham que ele é respondido de alguma maneira? Não em termos de resposta direta, de público, mas em relação ao que é produzido, ou mesmo ao que foi visto no Festival Universitário deste ano. De que forma vocês obtiveram uma resposta pra proposição que vocês colocaram, pra pergunta que vocês fizeram pra vocês mesmos, quando estamos em 2006 e existe um determinado panorama do cinema brasileiro, um determinado panorama do curta-metragem? Como vocês se confrontam com a diversidade do próprio cinema brasileiro? Que respostas os outros filmes atuais dão pra vocês, pra pergunta que vocês colocaram pra vocês mesmos, ou para seus pares? Pensando também no audiovisual como um todo (curtas, longas e vídeos), já que a quebra de fronteiras entre os formatos acaba fazendo com que a gente se direcione com um outro tipo de questionamento, que acredito estar muito relacionado com a imagem, sim, mas também com a proposição que essa imagem traz.

Luisa: Considerando essa articulação entre imagem e proposição, eu tenho uma inquietação muito grande em relação ao filme, que é: até que ponto ele dialogo com um cinema do qual é referência e até que ponto ele reproduz?

Estevão: Desde o início, o filme foi pensado pra ser plástico, a gente pensou declaradamente a composição, o enquadramento, buscando referências, texturas. A gente já sabia que queria fazer em Super-8, a fotografia foi discutida de maneira totalmente minuciosa. Teve uma pesquisa iconográfica consciente, mas na hora de elaborar a gente já tinha o referencial tecido, então foi uma coisa espontânea, natural, porque já tínhamos essa bagagem... O que a gente buscou, do primeiro cinema experimental, do surrealismo, foram referências das quais a gente partiu, não com vontade de fazer uma cópia, de reproduzir, mas no intuito de dialogar com uma tradição já estabelecida, penetrar nela, transitar dentro dela, do mundo do Cinema... E a partir disso, ultrapassá-la, expandi-la. A gente usou isso como um estímulo; acho que as vanguardas servem mais como um estímulo pra sair do marasmo, seja do audiovisual brasileiro, do mundial, do universitário... de propor outra maneira de sentir um filme. E embora este sentimento esteja ancorado numa coisa que já foi feita, é uma tentativa nova, pelo menos pra gente, de fazer um filme sensorial, com sensações, que possa ser visto como uma música, filme-música, que é uma coisa antiga também, mas pra gente, hoje, ainda mais se fecharmos pro Festival Universitário, acho que é uma proposição nova, especialmente na relação do público com os filmes (e com os filmes universitários), como o Raul falou. Acho que as pessoas estão condicionadas a uma estética já feita de filme universitário, elas já sabem o que esperar (não só do universitário, claro...). Acho que a gente quer sair um pouco disso, transcender essa categoria, ou seja, é um filme feito em universidade mas não tem uma cara de filme universitário.

Raul: É uma pergunta difícil... acho que não é uma mera reprodução, mas ao mesmo tempo é... A gente se apropria não só como uma fonte de plasticidade, mas também como uma fonte estética; há uma filiação nisso sim, consciente. Durante os debates do Festival, se colocou uma questão de engajamento, tratando o engajamento como algo "social". Quero desconstruir um pouco essa idéia. Eu vejo todos os filmes como engajados, alguns de forma consciente e outros de forma inconsciente. Mas sempre há um engajamento, mais ligado à corrente, mais ligado a questões sociais, ou de rupturas... E esse resgate que a gente faz, ao se "apropriar" de uma linguagem dos anos 20 não é apenas histórico e nostálgico, existe um resíduo de nostalgia, sim, nisso, mas acho que a proposição de uma ruptura é mais forte, no sentido que a gente se apropria de um cinema que foi feito antes da configuração do cinema como mercadoria, dando conta de uma demanda liberal. É um cinema muito ligado à poética, a questões que não sejam só essa demanda do lucro, da oferta e da procura... Então vejo algo no nosso engajamento no sentido de "calma, vamos repensar...". A problematização surge como um convite à discussão, ao debate, ao interrompimento desse modelo que está aí, que é um modelo que a mim não agrada, ao Estevão também não... E é curioso... Geralmente o público encara O Latido como uma coisa dadaísta, que não tem o menor sentido, como se não existisse nenhuma tensão unitária dentro daquilo. Pra mim, essa tensão é presente, mas acho que ele é aberto pra percepção de outras tensões ali dentro. Por causa desse condicionamento de que eu falei anteriormente, as pessoas têm uma certa dificuldade de fazer qualquer associação livre, elas entram como numa experiência, alguns gostam, outros não, e alguns entram, outros não. Para além disso, se gosta ou não gosta, as pessoas que tentaram trazer questionamentos em relação ao filme não conseguiram sair desse universo disciplinado, as críticas geralmente vêm em relação à plasticidade do filme, à sonoridade do filme, à reprodução de técnicas antigas, mais de uma curiosidade nesse sentido. A gente teve pouca resposta em relação a essa proposta política que estamos tentando colocar neste debate. O prêmio da ABDeC, talvez tenha ido um pouco nessa direção, por ter sido o prêmio que apontou a coletividade como uma questão. Mas, de um modo geral, não vi muita resposta nesse sentido. A provocação foi bem assimilada, foi encarada como uma "porralouquice" qualquer ou foi ressaltada no aspecto da plasticidade.

Estevão: O Latido foi concebido e realizado em 2000 e finalizado há um ano... Nós fomos evoluindo, tanto individualmente como coletivamente. No meu caso, atualmente estou terminando meu filme de conclusão de curso, Que cavação é essa?, que é um filme que também dialoga com uma tradição, um referencial, um modelo, e tenta fazer essa operação de retrabalhar essa referência. No caso, ele pega mais um referencial do cinema brasileiro, também dos anos 20, dos filmes que eram feitos aqui nessa época... Comparando os dois, em seus procedimentos, talvez nesse último filme a reutilização seja mais evidente do que no Latido. Tanto no roteiro, como na concepção, e isso fica bem mais evidente na forma do filme. O Latido sugere mais essa pergunta a respeito dessa confusão que o espectador pode fazer entre reprodução e diálogo.

Tatiana: Acho que isso acontece porque a proposição do filme, o discurso que vocês acoplam ao filme, talvez não seja intrínseco ao filme. Esse discurso, da proposição, do processo, da proposta política de um determinado cinema não está exatamente no filme. Ele está acoplado por vocês ao filme, mas não está exatamente na forma dele.

Raul: Eu vou discordar um pouco. Quando falo que há um engajamento, talvez o filme não seja tão elaborado linearmente em relação a esse discurso, mas ao se optar, ao se engajar lá atrás, a partir da adesão a esse discurso, acho que a coisa vem a reboque. É intrínseco sim. Talvez a gente esteja em outro momento do discurso, mas foi uma escolha que a gente fez lá atrás, e que não parou lá. A gente foi crescendo em alguns aspectos, se limitando noutros, mas é um discurso presente desde o momento inaugural do filme, logo depois que a UFF assinou contrato com o CCBB e teve uma exibição de filmes da UFF no CCBB. A gente saiu e foi beber ali no bar da Bolsa, um bar de referência pra toda uma geração da UFF, era um ponto de encontro – e foi legal resgatar um pouco esse local esse ano no Festival, onde a galera ia debater de um modo menos hierarquizado, na mesa de bar, a discussão era mais fechada, entre duas ou três pessoas, era menos dispersa. Mas tava todo mundo ali discutindo, debatendo, pensando, se provocando, estabelecendo forças... Então, acho que o filme surgiu ali, naquele meio, daquela discussão. Acho que esse discurso, por mais que seja mais elaborado hoje, está lá, faz parte também. Existe um entrelaçamento.

Estevão: Nas discussões do Festival, o que acho mais triste no discurso de algumas pessoas, e não só nesse ano, é quando elas falam que fizeram o filme pra ganhar uma nota, ou porque tinham que fazer um exercício... Nosso filme também é um exercício, mas não se fecha só no exercício. Um exercício nunca é um exercício por si só, nunca se fecha só nisso. Agora, falar que fez o filme só pra ganhar nota, que não pretendia nada com ele... É por isso que, diga-se de passagem, a qualidade dos vídeos tem se apresentado bem melhor que a dos filmes em película, pela pré-seleção.

Luisa: As pessoas fazem os vídeos, em sua grande parte, porque querem fazer, não só pra ganharem nota em determinada disciplina da faculdade, não só porque se pediu um exercício. Elas queriam fazer um filme por si, pegaram uma câmera digital e fizeram.

Raul: Será que a produção em película, hoje, dentro da Universidade, é a mais representativa, em termos de vontade, em termos de quantidade...? Esse ano eu fiz uma crítica ao Festival relativa ao fato de ele estar se afastando da Universidade: ele saiu do Cine Arte UFF, os organizadores são, em sua maioria, pessoas que já estão formadas, ou estão na iminência de se formar. Com esse distanciamento, essa profissionalização do Festival, ganha-se por um lado, com a visibilidade, mas perde-se o mais rico, que é a discussão. Eu não vi calouros ali envolvidos, engajados, discutindo, participando... Acho que esse afastamento ocorreu porque esse Festival, de certo modo, já não representa mais eles; por que ele deixou de representar aquelas pessoas? Quando eu levei essa discussão para o Festival, não foi de modo algum tentando criticá-lo. O Guilherme Tristão absorveu muito bem, inclusive botei uma pilha nele no sentido de juntar as mostras de vídeo e de película, de que essa divisão não deve existir mais. Não acho que a seleção deva ser baseada no formato, na bitola, mas que seja nos anseios, nas vontades, nos questionamentos, no que rola dentro da Universidade. Esse ano, a produção, salvo raras exceções, era muito medíocre. Ela se mostrou como o sintoma de uma sociedade, mas não como questionamento da estrutura que leva àquele sintoma. Eu vi os filmes muito como sintomas e não como uma problematização que desse conta da questão que ele se propunham a analisar. E as pessoas pareciam estar sempre na defensiva, justificando seus erros. O Latido é um filme de erros, o filme inteiro. Tem erro do laboratório, que perdeu parte da história... Só que a gente assimila esses erros, a gente não exclui, não pega o erro pra justificar uma fraqueza do filme. A gente busca fazer com que esses erros sejam uma fonte de crescimento; é a parte que eu mais curto no cinema. A proposta inicial era montar em Super-8, então não poderia ter efeitos... A gente montou e o filme não tinha força nenhuma, tinha muito pouca, então o filme ficou na levedura, encostado, por uns quatro anos, até que passamos pro meio digital e, aí, sim, exploramos fusão, repetição de frames...

Estevão: O filme trabalha com isso... Os filmes surrealistas têm isso, essa re-elaboração da imagem, ela não apenas é captada, sempre tem uma mudança de textura... É um efeito vanguardista, e são efeitos que nos foram proporcionados pelo digital no processo de finalização e que amplificaram o aspecto surrealista do filme.

Raul: Trouxe linguagem pro filme. Acho que foi nesse momento final de montagem que ele acabou sendo todo reescrito. A gente tinha idéias-chave iniciais, mas, na feitura, o filme foi reescrito. Conversando com uma das juradas do Festival Universitário, ela me disse que a tendência da linguagem é encerrar e no nosso filme a linguagem se expande, por isso fugimos à questão moral, porque o filme está sempre expandindo, permitindo diversas leituras e muita gente se perde nessa expansão... Aí depende da pessoa, se gosta de estar perdido ou não...


Entrevista concedida a Luisa Marques e Tatiana Monassa