| Quando 
                          se tenta travar contato com a obra e a bibliografia 
                          em torno da obra de Alberto Cavalcanti, somos imediatamente 
                          conduzidos ao mundo dos muitos projetos, nacionalidades 
                          diversas, estéticas contrastantes, enfim a toda 
                          uma trajetória compartimentada em blocos geralmente 
                          tidos como estanques, como se a cada passagem de um 
                          grupo para outro, de uma produtora para outra, de um 
                          país para outro, houvesse ou Alberto Cavalcanti 
                          diferente. Um que, como certos animais, descamasse e 
                          se tornasse irreconhecível à medida que 
                          passa de uma etapa para a outra. Assim, muito se escreve 
                          sobre a fase francesa e o namoro com a avant-garde, 
                          mais ainda sobre o encontro com John Grierson em Londres 
                          na G.P.O., outro tanto sobre o período Vera Cruz, 
                          menos sobre alguns intermediários, como a época 
                          da Ealing ou os três longas-metragens depois de 
                          abandonar o sonho da produtora de Franco Zampari, ou 
                          o final pan-europeu da carreira. Como se o vanguardista 
                          se transformasse em documentarista através de 
                          um passe de mágica, o documentarista virasse 
                          artesão inglês, o artesão inglês 
                          virasse produtor da burguesia emergente paulistana, 
                          e assim por diante, ao toque de uma varinha de cristal. 
                          É possível ver uma continuidade ao longo 
                          de uma obra tão separada em momentos bem definidos 
                          e associados a momentos tão fortes dos movimentos 
                          cinematográficos da primeira metade do século 
                          passado?. Como traçar uma linha de pertinência 
                          e um percurso lógico que conduz um homem da advocacia 
                          para o teatro, e depois para o cinema  terreno 
                          em que trabalhará inicialmente como assistente 
                          e chefe cenógrafo de Marcel L'Herbier nos anos 
                          20 , e logo para o cinema como diretor, 
                          na França mas à moda da vanguarda cinética 
                          (Rien que les heures), na Inglaterra no momento 
                          que se estabelece a primeira escola documentária 
                          propriamente dita, no Brasil quando surge o primeiro 
                          grupo a tentar transplantar o glamuroso star-system 
                          hollywoodiano para a indústria nacional, e que 
                          por fim migra de país em país atrás 
                          de projetos?
 Não é fácil, mas nos parece igualmente 
                          difícil acreditar numa compartimentação 
                          assim, esquemática por conveniência. Em 
                          pessoas com demandas muito pessoais e exigentes de cinema, 
                          de gênio difícil de amansar como era o 
                          caso de Cavalcanti, uma tal volatilidade na aceitação 
                          de propostas já formatadas de cinema parece ainda 
                          mais implausível, mais incoerente com a trajetória 
                          pessoal (era um brigador convicto) e com as exigências 
                          artísticas do autor de En Rade e Coal 
                          Face. Mais que tudo: a experiência de ver 
                          os filmes, sobretudo com a possibilidade de cruzar informações 
                          sobre diversos filmes em diversas fases diferentes  
                          como possibilitou a recente mostra em homenagem a Cavalcanti 
                          realizada na Cinemateca do MAM , nos mostram que 
                          existe uma forte coerência de princípios 
                          e de aproximação com o cinema que salta 
                          aos olhos à medida que passamos de um de seus 
                          filmes para outro, de uma época a outra, de país 
                          em país. O homem que inova na cenografia de Marcel 
                          L'Herbier é o mesmo que realiza prodígios 
                          na sonorização altamente conceitual dos 
                          primeiros documentários da escola inglesa. A 
                          mesma tentativa de captar o espírito da cidade 
                          ou do país filmado está presente em Rien 
                          que les heures e O Canto do Mar, nos curtas 
                          da G.P.O. e nos longas da Ealing. Então, de que 
                          Cavalcanti(s) falamos?
 
 1) Cavalcanti experimentador. Há uma intriga 
                          técnica e aventureira de pioneirismo que passeia 
                          junto com ele por onde quer que ele vá. Não 
                          exatamente um experimentalismo plástico, dramático 
                          ou estrutural do filme  que de fato só 
                          existe mais pronunciadamente em sua obra francesa, e 
                          em bem pouco da inglesa , mas um pequeno laboratório 
                          de descobertas ali onde o cinema não tinha exatamente 
                          os meios, num terreno em que ou se inventava as expressões, 
                          ou se chafurdava no óbvio. Cavalcanti é 
                          o grande nome por trás de toda espécie 
                          de inovação narrativa, sobretudo sonora 
                          dos revolucionários curtas da G.P.O., muitas 
                          vezes não dirigidos por ele (mas por Basil Wright 
                          ou Harry Watt), como é a grande figura  
                          rapidamente conjurada  de uma espécie de 
                          apreensão carregada de tintas dramáticas 
                          e um tanto culturalista esboçada no começo 
                          da Vera Cruz e só levada a cabo em seu único 
                          drama de longa-metragem filmado no Brasil, O Canto 
                          do Mar. Cavalcanti, muito mais do que um técnico 
                          seguidor que paira na sombra de um L'Herbier ou de um 
                          Grierson, é o homem dos empreendimentos que começam 
                          do zero, ao ponto de fazer de sua própria carreira 
                          um eterno recomeço. É o deserto que chama 
                          Cavalcanti: começar do zero um projeto de cinema 
                          documentário, começar do zero uma indústria 
                          no Brasil, começar do zero a exploração 
                          do som (a revolucionária montagem a partir do 
                          som em Pett and Pott). Não à toa, 
                          quando a coisa começa a ficar sedimentada, o 
                          desejo é sair fora (à custa de brigas 
                          e desafetos). A Vera Cruz, a Ealing, as formatações 
                          são pesadas demais para o homem do deserto.
 
 2) Cavalcanti antropólogo. Muito mais do que 
                          um documentarista, o desejo de entrar num lugar e tentar 
                          extrair dele para o cinema um ritmo próprio, 
                          uma impressão, uma atmosfera, tudo isso faz de 
                          Alberto Cavalcanti um dos raros viajantes antropólogos 
                          do cinema. Luciana Araújo evoca em seu artigo 
                          de O Canto do Mar nesta presente edição 
                          como o filho da terra consegue imprimir na película 
                          a particularidade intraduzível do vento pernambucano. 
                          O mesmo se poderia dizer da correria da magalópole 
                          em Rien que les heures (filmado antes da Sinfonia 
                          de uma Cidade, mas exibido após o lançamento 
                          do filme de Ruttman), da ordenação metódica 
                          do cotidiano inglês nos filmes britânicos 
                          ou da investigação sobre o jogo de cintura 
                          brasileiro em Simão, o Caolho e Mulher 
                          de Verdade. Não uma sede de documentário, 
                          palavra que desagradava profundamente a Cavalcanti. 
                          "A única diferença fundamental", 
                          dizia ele das brigas com Grierson, "é que 
                          eu persistia em achar idiota a denominação 
                          de documentário. Eu considerava que não 
                          havia diferença alguma entre o cinema de ficção 
                          e o resto"1. Enquanto Grierson 
                          utilizava oportunisticamente o termo como cavalo de 
                          batalha para conseguir subvenções junto 
                          às instituições governamentais 
                          britânicas  curioso como um dos maiores 
                          filões do cinema contemporâneo ganhou seu 
                          nome a partir de uma disposição a se ganhar 
                          dinheiro tirando partido da aparente seriedade de um 
                          nome , Cavalcanti julgava que o interesse de um 
                          filme, seja qual for o grau de realidade ou o tipo de 
                          relação que o cineasta tem com o que está 
                          fora da câmera (a "realidade"), residia 
                          numa percepção do inefável, na 
                          busca de uma "alma" coletiva e na transposição 
                          desse modo-de-viver, do stimmung particular de 
                          cada localidade em expressão cinematográfica.
 
 3) Cavalcanti e nós. Dos múltiplos Cavalcantis 
                          possíveis, que não é senão 
                          um só  ah!, as querelas pré-socráticas 
                          do um e do múltiplo , resta ainda a relação 
                          conosco, um público. Curiosamente, quis o acaso 
                          que hoje mesmo sua obra seja como um deserto para nós, 
                          uma geografia que ainda não foi sondada, em que 
                          ainda não se erigiram grandes edifícios 
                          críticos, em que  na ausência da 
                          exploração do solo e da construção 
                          de formas de habitar  resta a majestosa paisagem 
                          que é essa cidade universal que engloba várias 
                          cidades, essa filmografia tão pouco conhecida 
                          e estudada que ainda é capaz de fascinar e mexer 
                          conosco. Construir uma pequena aldeia móvel, 
                          sempre nômade  algo bem à moda de 
                          Cavalcanti , que tal?
 
 
  Ruy Gardnier 1. Elizabeth 
                          Sussex, "Cavalcanti na Inglaterra", in Alberto 
                          Cavalcanti, Pellizzari e Valentinetti orgs., p. 
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