SUPLÍCIO DE UMA ALMA &
NO SILÊNCIO DE UMA CIDADE

While the City Sleep, Fritz Lang, EUA, 1955
Beyond a Reasonable Doubt, Fritz Lang, EUA, 1956

Um filme deve criticar alguma coisa.

Fritz Lang

"Se eu quiser mandar uma mensagem, eu chamo a Western Union": Lang considera "simply stupid" a fórmula favorita de Samuel Goldwyn. Mas era justamente por suas pretensas mensagens que seus filmes eram criticados. Se nos colocamos do ponto de vista de sua "moral", eles não deixam de realizar seu objetivo e se voltam contra o humanismo que formava a base de seu engajamento. Aqui ainda: não é o abuso dos meios de comunicação que é o objeto da crítica, mas sua simples utilização.
Frieda Grafe e Enno Patalas


Os dois últimos filmes que Fritz Lang fez nos Estados Unidos trabalham no sentido da concretização de uma idéia de mundo e de cinema, no discernimento e utilização cirúrgica de um mestre veterano em sua arte. Em ambos, Lang trabalha com seu material de predileção: essa abstração muito real em seus resultados chamada "conjunto da sociedade". Daí a natureza de seus filmes, e do problema que geralmente alguns têm com eles. Quando Fritz Lang frisa a importância da crítica num filme, quando o autor de M critica o posicionamento de Samuel Goldwyn por não acreditar nas mensagens que um filme pode trazer, o que está em jogo não é
– como muitas vezes pode parecer quando se trata de colocar a "mensagem" no terreno do "por que fazer filmes" – o estudo de um pequeno erro ou distúrbio no seio de uma sociedade que periga envenená-la, e como fazer para extirpar-lhe o veneno, mas antes o testemunho de uma sociedade em que o envenenamento é a moeda do cotidiano, aquilo partilhado a cada "bom dia" dado ao pé da escada, as víboras apenas esperando um momento de pouca atenção para saltar sobre a presa. Tratando-se de Lang, na década de 50, estamos longe do idealismo romântico de Vive-se uma Só Vez, em que os inocentes Henry Fonda e Sylvia Sidney precisavam fugir de um mundo vicioso que os persegue sem dar-lhes chance de explicação. Logo a ficção paranóica, terreno por excelência devido a Alfred Hitchcock, vai interessando cada vez menos a Lang. Seus heróis dos últimos filmes americanos não são nada virtuosos, muito pelo contrário. Todos expõem irresponsavelmente uma mulher ao perigo, por vezes até ocasionando um fim terrível: Glenn Ford manipulando Gloria Graheme para concretizar sua vingança em Os Corruptos (1953), Richard Conte submetendo Anne Baxter em A Gardênia Azul (1953), Dana Andrews fazendo de Sally Forrest sua isca para achar o assassino em No SIlêncio de uma Cidade ou comprometendo seu noivado em Suplício de uma Alma para entrar numa experiência que lhe evitará um problema e ainda possivelmente fará dele uma estrela da literatura. Nenhum deles pode ser uma fonte total de identificação com o espectador sem criar alguns problemas morais – é no tratamento desses problemas que Lang aí insere sua "crítica". Não aquela que estamos acostumados a ver nos filmes "políticos" que nos identificam ao mocinho positivo e que fala que os errados são um eles fantasmático (os corruptos, os mafiosos, as grandes corporações), mas uma crítica ao nós que se identifica com o personagem e não tem como não repudiar certas ações dele. Criticar é perspectivar.

Daí uma certa dificuldade em se assistir aos filmes de Fritz Lang. Tudo parece muito ressecado, sobretudo nos últimos filmes. O espectador tem dificuldade para se instalar no filme, a catarse é sugerida mas jamais consegue se realizar a contento. É importante notar que esse dado vai surgindo à medida que Lang, como um diretor que nos Estados Unidos dificilmente teve a chance de realizar projetos mais pessoais, precisa inserir sua personalidade nos filmes a despeito do roteiro, dos atores e da produção lhe serem alheios. Nasce daí um humor muito particular, referido por Serge Daney na mania de acabar certos filmes de uma maneira meio ridícula, porque o próprio dos filmes e do mecanismo impetrado por Lang não permitiria, a propriamente dizer, um fim1. É esse o caso do começo de Suplício de uma Alma, um filme tão depurado, tão destituído de artifícios ficcionalizantes (distrações) que parece apenas uma leitura de roteiro (assim evocado na crítica de Jacques Rivette, "A Mão", para os Cahiers du Cinéma quando do lançamento francês do filme2). É que em Fritz Lang, mesmo quando há personagens com quem se identificar, o ponto-de-vista decisivo não está ancorado à visão do personagem, mas ao mecanismo das ações e das reações que fazem com que cada personagem se comporte de tal maneira ou tal outra. Em No Silêncio de uma Cidade, a questão central não é o distúrbio provocado por um serial killer que mata mulheres porque tem um problema não resolvido com a mãe, mas o sensacionalismo de uma empresa jornalística ávida por vender mais exemplares às expensas do pânico instaurado na sociedade. Um é pontual: basta capturar o assassino para fazer tudo voltar à normalidade. Mas Lang, como em M, foca no endêmico: o problema não é a irrupção de um problema, um "fato narrativo", mas um status quo que existe na sociedade e que mostra suas garras em momentos chave, colocando a irrupção como bode expiatório. E, para o endêmico, não há propriamente fim, mas uma lenta persistência monótona, um crime social bastante identificado com a "dívida infinita" kafkiana em sua forma. Da mesma forma, Suplício de uma Alma não é apenas um filme contra a pena de morte – um tema muito caro a Lang –, mas também um tratado sobre a inocência impossível, sobre a empáfia da inocência, sobre a partilha da culpa.

Todo filme de Fritz Lang, ou quase, é a reatualização de um cenário de disseminação do mal através de um meio fechado, numa topologia muito particular: uma cúpula, os comandados, e aqueles que recebem os efeitos (as vítimas e os "mocinhos" da fita). Cena matricial dos Mabuse ou de Os Espiões, ela irá se repetir por toda a obra norte-americana de Fritz Lang, mas com inversão de papéis. Agora não se trata mais de uma organização criminosa que opera o complô através do esquema cúpula-bando-sociedade, mas segmentos constituídos da sociedade, instituições: segredos de um cônjuge (O Segredo da Porta Cerrada, Suplício de uma Alma), segredos no ambiente de trabalho (No Silêncio de uma Cidade), segredos que montam um teatrinho social (ainda Suplício), segredos que põem em risco a vida de quem não tem nada com isso (ainda Suplício, ainda Silêncio). Cúpula em No Silêncio de uma Cidade formada pelo chefão, difundida através da luta pelo poder de três editores-chefes (bando) de partes diferentes de uma mesma empresa jornalística, e a secreção do veneno é disseminada para os outros funcionários e para o seio da sociedade através dessa luta. Cúpulas em Suplício de uma Alma que decidem o teatro (Dana Andrews e Sidney Blackmer), mas também do promotor que abusa do seu poder não para promover a justiça, mas para se promover como candidato político (Philip Bourneuf). A disseminação aí só afeta diretamente os mais próximos, mas se pensarmos em toda encenação feita com a sociedade para provar uma tese (mesmo que válida), existe também aí um veneno que é secretado pelas autoridades (um grande editor, um grande promotor, um lutando contra o outro).

Quando alguém, algum dia, conseguir dar conta tanto plástica quanto especulativamente do significado desses reenquadramentos que Fritz Lang opera em seus filmes, em que o plano conjunto se desloca para plano médio e como que captura – e é exatamente a palavra nesse caso – os personagens, diminuindo o espaço em que eles podem se deslocar, esse alguém vai decifrar de forma completa toda a arte de Fritz Lang. Porque a minúcia das linhas de composição (sempre associada a sua origem como arquiteto), a depuração da trama a suas necessidades básicas, um desapego a tudo que é prescindível, a impossibilidade do herói positivo, etc., tudo isso serve justamente para inscrever seus personagens num mundo e numa visão-de-mundo sem saída. Criticar, para Fritz Lang, é elucidar e trazer para o claro o sem saída do mundo (menos um pessimismo do que um perspectivismo: identificar o mal inerente ao mundo é ao mesmo tempo desenhar a melhor maneira de lidar com ele), e não apresentar uma realidade que pode voltar a se tornar agradável porque identificamos onde o mal está e como é possível nos livrarmos dele (ficções sobre a política, geralmente). Impiedoso, ele tira a nossa paz de espírito para melhor poder fazer operar nosso próprio senso de distância. Achávamos que tudo sairia bem, que o herói inocente conseguiria se safar de seu joguinho perpetrado de forma astuciosa? Haverá complicações que porão em jogo a inocência do rapaz. Achávamos que a prisão do criminoso colocaria um fim à avidez da imprensa? A coisa não é tão simples assim...

Fritz Lang é o único diretor do mundo que consegue provar uma tese (a falibilidade do princípio da "reasonable doubt" para colocar alguém no corredor da morte) e ao mesmo tempo provar a culpabilidade partilhada, e logo a impossibilidade da inocência. Não é porque o filme tem uma reviravolta em seu final que a contestação da pena de morte está menos provada. Da mesma forma, em No Silêncio de uma Cidade, a culpabilidade do maníaco não é bode expiatório para o mal constitutivo e reproduzido, a manipulação da opinião pública inerente ao jornalismo (não é a entrada de alguém "ético" que vai fazer a diferença, Lang sabe isso muito bem; a posição que se ocupa é que faz a "ética", não o bom-mocismo). A esse respeito, a cena inicial de No Silêncio de uma Cidade, um dos inícios mais belos de toda a história do cinema, tem muito a dizer. Uma câmera que inicia seu movimento, sai do plano objetivo para o subjetivo do assassino, e capta por último um grito de mulher diretamente para o espectador, menos pedindo que ele o ajude (ela está olhando para o algoz) do que fazendo-o atentar para o que está em vias de acontecer (sua morte, o horror extremo da existência, o "sem saída" de Lang). Lang malvadinho, que faz de sua câmera o ponto-de-vista do vilão? Não exatamente. O propósito é sobretudo curto-circuitar o papel do espectador e estabelecer de forma imediata uma relação com o perigo, tornar incômoda uma situação que tinha tudo para apresentar de forma voyeurística mulheres sendo assassinadas. A opção de Fritz Lang, sempre que lhe é permitido, é fazer do filme de narrativa clássica uma chance para provocar uma perturbação sobre a natureza humana e sobre como determinadas instituições lidam com o código e a aceitação da sociedade para continuar envenenando-a aos poucos. Se saímos do objetivo para o subjetivo nesse plano tão extraordinário, é porque o ponto-de-vista não deve nem começar com o subjetivo (o que concluiria num sadismo ontológico da câmera, algo que não tem nada a ver com a estética de Lang: está mais para David Fincher), nem ser apenas objetivo (isso não iria inserir ativamente o espectador no crime). É nesse sentido, aí sim, é que podemos falar de Lang crítico. Qual seria o filme mais languiano feito após a morte de Lang? Eles Vivem? Olhos de Serpente? Ambos?

Ruy Gardnier

1. Serge Daney, "Sur Salador", in La Rampe, Éd. Cahiers du Cinema-Gallimard, 1996 (1983), p. 26: "É sem dúvida em Fritz Lang que se vê melhor essa repugnância a concluir e humor bastante crispado que preside a fins sempre simulados (O Segredo da Porta Cerrada). No cinema, escrever significa "não terminar".

2. Cahiers du Cinéma 76, p. 48: "[...] como se aquilo que nós assistíssemos fosse menos a encenação de um roteiro do que a simples leitura desse roteiro, que nos seria mostrado como tal, sem ornamentos. Seríamos então tentados a falar de mise-en-scène puramente objetiva, se uma tal mise-en-scène fosse possível; é então mais prudente acreditar em algum ardil, e esperar a seqüência.