OS NIBELUNGOS: A MORTE DE SIEGFRIED &
A VINGANÇA DE KRIEMHILD

Fritz Lang, Siegfrieds Tod & Kriemhilds Rache, Alemanha, 1924

Em O Desprezo, de Jean-Luc Godard, Fritz Lang repete incessantemente a Michel Piccoli que a morte nunca é uma solução, nos diálogos em que se discute sobre a possibilidade de Ulisses, ao retornar da Guerra de Tróia para Ítaca, não ser mais amado por sua esposa Penélope. As palavras ditas por Lang quase quarenta anos à frente ecoam sobremaneira no dístico Os Nibelungos, que compreende A Morte de Siegfried e A Vingança de Kriemhild (que duram, respectivamente, 141 e 147 minutos, e não os 120 minutos que informam os DVDs da Continental/Magnus Opus): através do mito fundador do povo germânico, o cineasta expõe a inutilidade e a loucura da morte, seja esta justificada pela honra, pela dor ou pela paixão, com o extermínio sistemático promovido por Kriemhild, então rainha dos hunos, contra seus próprios irmãos nibelungos para vingar o assassinato de Siegfried. O sangue que atrai apenas mais sangue, a matança desnecessária que existe para satisfazer a si própria.

Lang dedica Os Nibelungos ao povo alemão, pois, de fato, trata-se da lenda que dá origem e molda a identidade nacional germânica. Na Europa, durante a queda do Império Romano do Ocidente, o herói Siegfried (Paul Richter), após matar o dragão e se banhar em seu sangue, dirige-se para a corte de Worns a fim de conquistar a princesa Kriemhild (Margarete Schön). Ao ajudá-lo a se casar com a valquíria Brunhild (Hanna Ralph), Siegfried torna-se irmão de sangue do rei Gunther (Theodor Loos), e recebe como prêmio a mão de Kriemhild. No entanto, as intrigas de Brunhild – que acusa o herói de tê-la violentado – levam o monarca e o fiel soldado Hagen Tronje (Hans Adalbert Schlettow) a assassinarem Siegfried. Tomada pelo ódio, Kriemhild casa-se com Átila para vingar a morte do primeiro marido: com o intuito de conseguir a cabeça de Tronje, porém, ela aniquila todos os nibelungos, feitos reféns no palácio do líder dos hunos.

Além de embasar todas as sagas pós-modernas que exploram a temática mitológica / fantástica – O Senhor dos Anéis e Harry Potter na dianteira –, Os Nibelungos renderam a magnífica tetralogia operística de Richard Wagner, a saber, O Ouro do Reno, As Valquírias, Siegfried e Crepúsculo dos Deuses. Ao contrário das óperas, Fritz Lang passa rapidamente pelos episódios da descoberta do tesouro dos nibelungos por Siegfried e da subjugação de Brunhild pelo herói a fim de se centrar na (falta de) moralidade que marca as ações desencadeadas por Kriemhild em represália ao assassinato do amado. Está em jogo, para o diretor, a incapacidade do homem em lidar com suas próprias emoções primárias: o amor que se transforma em ódio, levando à decadência individual e social, bem como à destruição da natureza (seja ela criada por Deus ou edificada pelo trabalho humano), tragada pelo caos, enquanto espaço idealizado de ordem e de harmonia terrenas.

Tanto A Morte de Siegfried quanto A Vingança de Kriemhild se estruturam sob o modelo de cantos, ou seja, de blocos narrativos em que, por intermédio dos enunciados temáticos que os precedem, reforçam o colorido épico e lendário da saga dos nibelungos. Todavia, na construção da derrocada moral de Kriemhild e, em conseqüência, de toda a humanidade, Fritz Lang se utiliza de relações diferentes, senão opostas, entre os personagens e os espaços quanto à distribuição de ambos os elementos pelo quadro. Dessa maneira, se em A Morte de Siegfried predomina a arquitetura clara e harmoniosa dos ambientes, os quais se dispõem na tela em linhas verticais, horizontais, diagonais, e, sobretudo, circulares (inclusive através dos fades in e out) – o círculo é considerado, desde a Grécia Clássica, a forma perfeita que somente o homem pode traçar, uma vez que se encontra associada à Razão e às Idéias de Beleza e de Verdade – contra fundos vazios e iluminados, onde os atores principais interagem esparsamente entre si, em A Vingança de Kriemhild impera a confusão espacial e visual, o grafismo caótico em que multidões se digladiam em cenários onde não importam as linhas constitutivas, mas antes as texturas de que são feitos, para, ao estabelecer a fisicalidade e a sanguinolência dos corpos no combate inútil, intensificar a trágica barbárie de que os homens são, ao mesmo tempo, vítimas e responsáveis.

Do idílio terrestre à violência gratuita, Fritz Lang percorre, de A Morte de Siegfried até A Vingança de Kriemhild, o tortuoso caminho das pulsões básicas do homem que, quando se aliam a estruturas de poder e, dessa feita, encontram o veículo necessário para serem divulgadas em massa, conduzem ao mal-estar coletivo e ao fim da civilização, entendida como sistema organizado de valores éticos e morais.


Paulo Ricardo de Almeida

(DVD Magnus Opus, VHS Continental)