DR. MABUSE – O JOGADOR &
DR. MABUSE – O INFERNO DO CRIME

Dr. Mabuse, der Spieler, Alemanha, 1922
Dr. Mabuse – Ein Bild der Zeit, Alemanha, 1922


No gozo dos mortos-vivos

De alguma forma, Dr. Mabuse, composto aqui por O Jogador e o Inferno do Crime, ambos de 1922, é uma obra sobre a experiência de olhá-la hoje.

Sim, porque temos um filme, podemos assim considerar o "pacote", de mortos-vivos. Sua agenda de imagens se sustenta na presença e no impacto da imagem dos corpos, pálidos, deformados ou quase apodrecidos, dos zumbis que povoam os porões, mais ricos ou mais pobres, não importa, alemães. E também não é exagero dizer que há uma pulsão zumbi no esqueleto do filme de Lang, visto hoje.

Não discutindo a sofisticação evidente de seu artesanato, é, em projeto e linguagem, um cinema morto, o que é mais do que claro. Mas temos aqui um zumbi, esse filme, que vagou, ou melhor, vem vagando, por aí, desde 1922, contaminando outros organismos de cinema e reaparecendo, mutante (morto, porém vivo), por meio de outras mãos. Kubrick, pelo menos.

O cinema é um pouco, ou muito, Fritz Lang, mas impressiona como por exemplo Kubrick se manifesta radicalmente no Lang de Mabuse (não o contrário). Quer dizer, é muito curioso ver Mabuse e pensar nessa lógica, que é meio uma lógica de fantasmas: o mais recente que parece vir assombrar o fantasma que habita originalmente suas propriedades.

Não por acaso, Dr. Mabuse (esse de 1922) está em, ou é visitado por, filmes fantásmicos de Kubrick, a pensar em O Iluminado (1979) e, principalmente, em De Olhos bem Fechados (1999).

De onde vem a relação?

Há, por exemplo, muito da Nova Iorque subterrânea percorrida por Tom Cruise e a Berlim subterrânea utilizada como dispositivo por Lang.

Perceptível, como no Kubrick final, é uma preocupação de Lang em montar e radiografar o movimento, em 1922, de pequenos espaços e ambientes secretos de lazer. Alguns desses espaços de festas e jogos parecem, em sua conformação, grandes brinquedos, instalações ludistas que nos dizem primeiro algo sobre o que dentro deles se desenrola e ocorre - hedonismo, tentativa de desativação de contato com a geografia que está fora de lá e ao mesmo tempo inauguração de um novo programa, de um novo fluxo, de pactos urbanos "noturnos". Mas também, como em Kubrick, dizem algo sobre a operação cinematográfica engendrada lá: não deixam, os dois, Dr. Mabuse e De Olhos bem Fechados, de ser filmes sobre os ambientes que constroem, exploram e respiram, daí que o procedimento de estruturação desses ambientes por parte dos cineastas é o coração de cada filme.

Em ambos os filmes, nesses espaços do divertimento que parecem existir por trás das paredes e por baixo do solo, espaços de certo modo lúgubres, há tapetes, lustres, artifícios e acessórios de decoração amplamente aproveitados: aparelhos cenográficos que falam e se manifestam no quadro como personagens, e para os personagens. A função arquitetônica nos dois filmes, uma concepção arquitetônica implantada nos olhos de cada um dos realizadores, pode ser dito, é, aliás, bastante similar.

No jogo da ilusão

O que é Dr. Mabuse, ou, mais apropriado, quem é esse Mabuse? Ele é, em linhas gerais, o sinistro criminoso manipulador protegido por disfarces que cria. Sempre muda de aparência, com maquiagem, bigodes e cabelos "sintéticos". Sai pela Europa, causando danos monetários gigantescos (sabotando Bolsas), pela Berlim "escondida", hipnotizando jogadores nos clubes secretos e levando-os à ruína pessoal. Dia seguinte, outro disfarce, outro clube. Mabuse é Mabuse e ao mesmo tempo é todo mundo: fácil, assim, associar sua figura à de uma Alemanha pobre, devastada física e existencialmente, de onde emergiria um Hitler, por exemplo.

Fácil, embora não equivocado, e, por isso, para cá retornaremos.

Talvez mais fácil ainda, ou ingênuo, seja associar sua figura com o cinema, com seus sistemas de linguagem. Parece-me, no entanto, ainda bastante honesto em relação ao que o filme apresenta. Ao que Lang nos dá. Partamos daqui.

Primeiro: o coração da mise em scène da primeira parte é tudo o que se passa nas mesas em que se joga cartas. Aliás, essencialmente é um jogo de cartas o que Mabuse manuseia na primeira cena do filme: não as convencionais, mas um baralho, ou coisa similar, com suas próprias imagens de travestimento em mil fantasias, embaralhadas.

Para início, bem, sabemos que o jogo de cartas mesmo, esse com ases, copas, valetes e paus, ou, na verdade, qualquer outro, trata basicamente de articular e combinar imagens com significações. Imagens e suas significações.

O personagem, sempre todo mundo e, claro, ao mesmo tempo ninguém (Lang magnificamente nunca se propõe a decifrar esse personagem, totalizar ou liquidar os mistérios de sua "arqueologia" humana, reforçando o tom ameaçador que se estabelece durante fluidas 4 horas), revela-se filosoficamente uma única vez durante o filme. É quando diz que tudo entedia, "exceto brincar com os destinos das pessoas".

Ninguém dirá que, para além das aplicações óbvias que isso possui nos expedientes que se desenrolam em uma mesa de carteado, ou mesmo nos tipos de relações que Mabuse, o grande manipulador, constrói com esses jogadores e até com seus diabolicamente convictos seguidores (quase um fundamentalismo os caracteriza), não deixa de ser uma leitura sobre o cinema. Sobre encenação, sua organização interna, ou, quem sabe, sobre o efeito da ilusão.

Ninguém dirá, portanto, que Dr. Mabuse não é um dos primeiros filmes da história a problematizar a ilusão. Questionar o espetáculo. O doutor é a ferramenta.

Essa idéia é sedimentada explicitamente naquela que é a seqüência mais forte dos dois filmes. Mabuse, com o objetivo de neutralizar o oficial do Estado que o farejava e perseguia desde o primeiro filme, arma um evento que teria como atração um suposto doutor-estudioso da mente-mágico. Trata-se de um tal Dr. Weltmann, mas na verdade é Mabuse, dentro de um personagem. Num jogo de domínio de uma platéia encantada, paralisada, seu principal "número" é, não à toa, o da simulação de uma espécie de cinema. Faz surgir das cortinas uma caravana árabe, ou de nômades, em um deserto. Uma alucinação "filmada", que abala a platéia. Tudo imaterial, mentira: evapora com um estalar de dedos de Mabuse, o falsificador que forja também cédulas monetárias.

A figura de Mabuse, desde o caráter sinistro-carnavalesco da flutuação por meio de figurinos, rostos, passando por suas habilidades como hipnotizador e "jogador de destinos" é em si uma reflexão continuada, primeiro, sobre o falso e, depois (e conseqüentemente), sobre os tecidos e mecanismos do ilusionismo.

Contudo é válido notar que Mabuse, orquestrador e anfitrião da ilusão em um evento de odor aristocrático, ou um operário vestindo farrapos e incitando uma revolta em um bar precário, trafega, nessa revisão precoce do espetáculo, em 1922, entre ser "cineasta" e ser o próprio "cinema" - nesse sentido, o do "cinema", estão estampadas já nesse seu corpo, em sua pele - um suporte -, as operações de fabulação cinematográfica. Pode-se ir além: é titerista (gestor do espetáculo) e ao mesmo tempo, incorporando a todos, a própria imagem do lugar silenciosamente convulsionado que habita. As duas funções, Mabuse associado à Alemanha, e à sua paisagem carcomida de seres e imagens cadavéricos, e Mabuse associado à feitura do espetáculo, se conciliam. Mais: se transubstanciam. O povo alemão estava à mercê desse pequeno Deus (engenheiro do espetáculo - cineasta) imensurável, indecifrável e macabro, mas era, de alguma forma, também "imagem e semelhança" dessa entidade – para Lang, pessimista (premonitório?) por excelência.


Claudio Szynkier

(DVD Magnus Opus; VHS Continental)