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                          O Lang arquiteto-urbanista é sempre ressaltado 
                          na análise de filmes como M, Sepulcro 
                          Indiano, Os Corruptos, ou mesmo Metropolis. 
                          Mas quase nunca se destaca o principal da arquitetura 
                          langiana: sua capacidade de construir um teto sobre 
                          o espectador, de encobri-lo com uma ficção 
                          que, de tão perfeitamente ficcional, acaba parecendo 
                          real e nos tornando parte dela. Sua dupla saga indiana, 
                          embora no desfecho revele um mergulho às fundações 
                          da construção (ou seja, ao subsolo), é 
                          um excelente exemplo desse cinema-teto, pois bastam 
                          alguns minutos de filme para que estejamos efetivamente 
                          dentro daqueles palácios (invertendo a fórmula: 
                          tão reais que se fazem crer imaginários). 
                          O projeto é construir um teto, mas revolver o 
                          subterrâneo – esgotos, fundações, 
                          arcabouços secretos, populações 
                          reclusas (ou excluídas) – se mostra uma etapa 
                          fundamental.  
                           
                          M, cânone dos cânones quando o assunto 
                          é a transição mudo-sonoro, segue 
                          o mesmo princípio, dando a cada espectador a 
                          chance de, simultaneamente, mergulhar na dinâmica 
                          da organização urbana e compor o coro 
                          histérico da cidade aterrorizada por um serial 
                          killer (provavelmente o primeiro a aparecer no cinema 
                          de forma tal que, na sua esteira, adviria um subgênero). 
                          Com o mapa da cidade sobre a mesa, o comissário 
                          de polícia traça uma enorme circunferência, 
                          cujo centro é a casa da vítima recém-descoberta 
                          (a casa desenhada detalhadamente, em escala completamente 
                          desproporcional ao resto do mapa – mesmo num cenário 
                          realista, Lang abre espaço para o lado fantástico 
                          de seu cinema), e em seguida o comissário aumenta 
                          o raio, aumenta a área em que os cidadãos 
                          serão interrogados, vigiados, sondados. Mais 
                          do que uma matriz para a exploração ficcional 
                          de assassinos em série, M forneceu um 
                          novo paradigma de espaço para o cinema clássico 
                          – justamente a organização espacial que 
                          os filmes policiais jamais abandonariam a partir de 
                          então (até porque a polícia é 
                          uma autoridade local, portanto se pressupõe uma 
                          integração com o espaço em que 
                          atua). A cidade, em sua dialética de mundo-submundo, 
                          como personagem de destaque: de Don Siegel a Clint Eastwood 
                          (Sobre Meninos e Lobos, por sinal, é o 
                          grande sucessor de M dos últimos tempos), 
                          todos aprenderam a lição – de que os esgotos 
                          resguardam a superfície das cidades, de que a 
                          sociedade democrática é apenas um outro 
                          modo de recolocar a lei do forte, de que a criminalidade 
                          e a lei nem sempre divergem em seus interesses, de que 
                          uma justiça paralela muitas vezes ultrapassa 
                          a justiça oficial.  
                           
                          Mas, para além de qualquer sociologia urbana, 
                          M é também o momento de um amadurecimento 
                          técnico e estético de que o som é 
                          apenas uma das muitas partes em funcionamento pleno. 
                          Por mais que o uso do espaço em off seja 
                          assustadoramente evocativo e invasivo, por mais que 
                          a montagem encontre uma feliz negociação 
                          entre a organização editorial do clássico-narrativo 
                          e a mais abstrata concepção de visualidade 
                          (nada de confusão, contudo: imagens encadeadas 
                          com uma clareza suprema), por mais que Fritz Arno Wagner 
                          tenha conseguido uma luz tão soturnamente bela 
                          e a câmera se movimente com tamanha criatividade 
                          (com destaque para o plano-seqüência pré-Welles-De 
                          Palma que passeia pela sede dos mendigos e chega a atravessar 
                          uma janela após ascender ao andar superior), 
                          enfim, por mais que haja uma força quase mística 
                          regendo as partituras desse filme de importância 
                          inqualificável, nunca sentimos a aura barroca 
                          de um esteta em autopromoção permanente. 
                          Muito pelo contrário: M é o resultado 
                          de uma concisão, do preenchimento do impulso 
                          de uma veia cronista diretamente proporcional à 
                          pretensão artística. Os enquadramentos 
                          (não raro sobre-enquadramentos, ou seja, quadros 
                          com moldura extra) que parecem já nascidos para 
                          a antologia, de tão perfeitamente equilibrados, 
                          com linhas e contrastes combinados à alusão 
                          de uma forma pictórica, são apenas o convite 
                          à fatalidade, ao gesto que, antes de romper um 
                          equilíbrio, põe harmonia e caos em pé 
                          de igualdade. Levar o assassino à forca significa 
                          tão-somente apagar os traços mais visíveis 
                          (logo menos ofensivos) de uma estrutura maléfica 
                          cuja cartografia se espelha no mapa da cidade, um desenho 
                          cabendo certinho no outro. Assim como no cinema haverá 
                          sempre o fora-de-quadro (de onde surge pela primeira 
                          vez o assassino, ou melhor, sua sombra), na sociedade 
                          existem instâncias que lhe são tão 
                          inseparáveis quanto inclassificáveis, 
                          incontroláveis. Do mal irremediável exposto 
                          por M, sobressai um rosto trágico que 
                          abre caminho para o que os filmes subseqüentes 
                          comprovariam ser o rosto langiano por excelência: 
                          neutro na maior parte do tempo, anestesiado pela mise 
                          en scène, ótimo condutor de sensações 
                          extremas, mas insensível a oscilações 
                          menores, esse rosto se oferece – como uma máscara 
                          branca à espera de um molde – às virtualidades 
                          contidas em toda e qualquer proposição 
                          da trama. Quando finalmente estimulado, o tal rosto 
                          responde com questões fundamentais: um olhar 
                          que só pode ser dor ou deleite, uma fala que 
                          só pode ser agonia ou vivacidade. A opacidade 
                          da tragédia, o seu inexplicável, ganha 
                          uma forma que Peter Lorre investe de uma estranha intensidade, 
                          e a contemplação do intolerável 
                          aparece-nos como o último e mais poderoso dos 
                          delírios estéticos.  
                           
                          Mais ou menos como Michel Mourlet indicou, M proporciona 
                          a embriaguez de uma palavra, àquela altura, ainda 
                          não domesticada por uma mise en scène 
                          que interioriza e esconde sua expressão nua e 
                          crua. Naquela cena clímax, Lang nos dá 
                          o som bruto das palavras, sua energia e não sua 
                          semântica; é possível acompanhar 
                          a seqüência inteira sem ler uma só 
                          legenda, ou sem dar atenção ao significado 
                          de uma só palavra. Perante a multidão 
                          que o ameaça engolir, Lorre mescla uma narrativa 
                          facial da era muda a uma eloqüência vocal 
                          ímpar, que o sonoro inventou e encerrou em cerca 
                          de dez minutos – a saber, os dez minutos em que o personagem 
                          de Lorre tenta se defender do júri popular que 
                          o quer morto. Seu rosto revela um devir inelutável, 
                          uma transformação não programada, 
                          uma monstruosidade para além do indivíduo, 
                          um mal que é patrimônio público. 
                          Não há melhor constatação 
                          do que a de Jonathan Rosenbaum: M traz a nostalgia 
                          de um tempo em que era possível ao artista, não 
                          sem ousadia, lançar-se a um exame de todo o organismo 
                          de uma grande metrópole, física e psicologicamente. 
                           
                           
                          Sem negar a já mais que revisitada noção 
                          de M como a síntese precoce do valor estrutural 
                          do som (que rende desde piadas de humor negro – como 
                          na cena com a mulher semi-surda que leva o policial 
                          a falar cada vez mais alto – até a engenhosidade 
                          das escolhas dos pontos de escuta), é preciso 
                          destacar que a passagem de Lang ao sonoro incidiu prioritariamente 
                          na expansão da narratividade. M encheu 
                          o cinema de novas e sofisticadíssimas ferramentas 
                          narrativas (o hoje comum procedimento que transforma 
                          diálogo em narração e vice-versa 
                          tem sua origem ali). A montagem em cross fade 
                          (frases ou ações que começam num 
                          lugar/momento e terminam em outro), por seu turno, antecipa 
                          o famoso corte de Cidadão Kane em que, 
                          entre um "Merry Christmas..." e um "... and a happy 
                          new year", Welles faz a narrativa avançar 25 
                          anos. Com M surge a possibilidade de começar 
                          a migração para o plano seguinte antes 
                          do término do plano anterior, criando-se uma 
                          nova espécie de elipse, que não é 
                          senão a interseção de tempos distintos. 
                          A mise en scène passa a poder se dar ao 
                          luxo de ser eterno movimento adiante, de se construir 
                          à medida que apaga os próprios rastros. 
                          Os flashbacks e os flashforwards – assim como outras 
                          modalidades de enxertos narrativos – adquirem um dinamismo 
                          estranho ao formato silencioso, mesmo se apanhado nos 
                          anos áureos do triunfo de sua linguagem visual. 
                           
                          Do exame completo da grande cidade (agora podendo ser 
                          mais detido, já que o DVD disponível pela 
                          Magnus Opus possui 110 minutos, ao invés dos 
                          95 das cópias que conhecíamos antes), 
                          nenhum resultado parece reconfortar. É sob um 
                          céu de chumbo que Lang nos abandona após 
                          o arrepiante ciclo de julgamentos que encerra seu filme. 
                          O teto que Lang constrói através de M 
                          fica na iminência de desabar e soterrar o 
                          espectador num peso irredutível, que somente 
                          poucos tiveram a coragem e a responsabilidade de assumir 
                          (hoje, como já foi indicado, há Eastwood 
                          numa fase – pós-Dívida de Sangue – 
                          profundamente langiana). M é uma descida 
                          aos porões da vida urbana, que, no grosso da 
                          produção do início dos anos 30, 
                          estava mais acostumada a elogios entusiastas do que 
                          a radiografias críticas. Os ambientes excessivamente 
                          esfumaçados de M não deixam dúvida: 
                          esses homens vivem já no inferno. E ao inferno 
                          só se chega uma única e definitiva vez. 
                           
                            
                          Luiz Carlos Oliveira Jr. 
                        (DVD Magnus Opus e Continental; 
                          VHS Continental e FJ Lucas) 
                          
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