A REVOLUÇÃO MEXICANA DE
FERNÁNDEZ E FIGUEROA

Se já não existissem, seria necessário inventar o time formado pelo diretor Emilio "El Indio" Fernández (1904-1986) e pelo diretor de fotografia Gabriel Figueroa (1907-1997). Seu estilo visual maneirista, temas folclóricos, e protagonistas exóticos – associados à fisionomia característica de Fernández – tornaram-nos elementos integrais da cultura nacionalista mexicana. Assim como vários artistas e intelectuais latino-americanos, Fernández descobriu sua pátria quando a deixou. Enquanto cavava trincheiras em Hollywood, ele teve uma visão: "Eu entendi que era possível criar um cinema mexicano, com nossos próprios atores e nossas próprias histórias... daí em diante o cinema se tornou uma paixão minha, e eu comecei a sonhar com filmes mexicanos".

Realizar filmes nacionalistas tornou-se a obsessão de Fernández, mas o extraordinário estilo visual criado pelo diretor de fotografia é o que mais distingue os filmes de Fernández e Figueroa. Durante a década de 1920, fotógrafos como Hugo Brehme exploraram ad nauseam as possibilidades pitorescas da combinação de campesinos (camponeses), nuvens e mangueys. Entretanto, eles não foram considerados os precursores das imagens que são costumeiramente associadas ao diretor soviético Sergei Eisenstein, e seu câmera, Eduard Tisse. Em 1930, Eisenstein e Tisse começaram a filmar uma obra que nunca foi terminada, mas da qual diversas versões foram editadas subsequentemente. Talvez seja o uso de tomadas de ângulo baixo e de composições expressivas de Eisenstein e Tisse que parecem apontá-los como a origem da cinematografia mexicanista, embora a influência de Paul Strand, fotógrafo norte-americano de esquerda, possa também ter sido decisiva. Strand foi convidado a fazer filmes no México em 1932 "com o povo e para o povo". O primeiro (e único) a ser produzido foi Redes (1936), um filme que retratava a vida e a luta em uma vila de pescadores, e sua excelente fotografia contém vários dos elementos típicos da Mexicanidade visual que Fernández & Figueroa propagariam na década seguinte.

A criação do estilo cinematográfico mexicano clássico de Fernández & Figueroa durante a década de 1940 deve muito a uma mise-en-scéne inspirada por Eisenstein, Tisse e Strand. Entretanto, Figueroa também reconheceu a influência do diretor de fotografia Gregg Toland, e ele sempre insistiu que a mais importante inspiração para sua arte veio dos muralistas mexicanos, particularmente David Álfaro Siqueiros. Em trabalhos como Flor Silvestre (1943), Enamorada (1946), Maria Candelaria (1943), La Perla (1945) e Maclovia (1948), tomadas de ângulo extremamente baixo foram combinadas com uma perspectiva oblíqua, profundidade de campo e filtros infravermelhos para produzir o que ficou conhecido internacionalmente como "os céus de Figueroa". Acreditando que o mais importante aspecto da fotografia é a iluminação, Figueroa afirmou a diferença entre filmar em Londres, por exemplo, onde há pouca luz natural, e no México, onde a luz do sol é dramática e penetrante. A ambiência mexicana deve ser interpretada, e as monumentais massas de nuvens rolantes refletidas pelo sol são uma parte vital do panorama, ainda que Figueroa tenha as realçado com filtros infra-vermelhos. Os elementos humanos pitorescos desta estética são figuras míticas esvaziadas de história: charros (vaqueiros) revolucionários e seus corcéis galopando em meio a cactus esculturais; rostos indígenas empedernidos realçados por camisas brancas e rebozos (xales) escuros; vendedoras de flores nos canais de Xochimilco movendo-se por longas fileiras de árvores altas e estreitas; pescadores e suas redes refletidos nas marés oceânicas rodopiantes. Entretanto, a interpretação de Figueroa para o sol e as nuvens mexicanas proporcionaram um contexto extraordinário para as narrativas fílmicas, que foram intensificadas pelos instintos de Fernández para o uso dos figurinos e para a direção de cenas com cavalos.

Mais de sessenta filmes nos quais a Revolução Mexicana de 1910-1917 serve de pano de fundo foram realizados. Os melhores filmes realizados sobre esta luta são El Compadre Mendoza (1933) eˇVámonos con Pancho Villa! (1935), ambos dirigidos por Fernando de Fuentes. Ao contrário da grande maioria dos filmes baseados neste evento divisor de águas, de Fuentes criou narrativas em que a história é uma força inesgotável que empurra incessantemente os indivíduos, movendo a trama adiante. Os protagonistas têm compromisso com grupos definidos, os quais têm interesses identificáveis e cujos programas refletem sua fidelidade de classe: Zapatistas (os campesinos sulistas liderados por Emiliano Zapata), Villistas (os revolucionários nortenhos sob o comando de Pancho Villa), Huertistas (o exército revolucionário que Victoriano Huerta criou com um alistamento, depois de derrotar Francisco Madero), e os Constitutionalistas (liderados por Venustiano Carranza e Álvaro Obregón, que representam o triunfo final da burguesia). De Fuentes conecta os destinos dos protagonistas às forças liberadas por uma guerra civil cataclísmica que limita as escolhas e confina as pessoas, mediando as decisões que elas tomam frente às situações em que estão envolvidas.

Os governos revolucionários do México deram uma guinada à direita em 1940 e, juntamente com várias coisas, as representações da luta armada sofreram uma transformação significativa. Anteriormente, o nacionalismo havia constituído um esforço vital e multi-facetado de criar uma nova identidade; com a institucionalização da Revolução, a Mexicanidad se tornou uma doutrina oficial construída para facilitar a homogeneidade da "Unidade Nacional". Como disse Carlos Monsivaís, "Nada de um ‘país pluralista’ ou de ‘diversidade cultural’, o México é um só".

Os cineastas mexicanos participaram ansiosamente desta orgia de uniformidade nacionalista subsidiada pelo estado, e a grande maioria de seus filmes guarda apenas interesse sociológico. No entanto, Fernández & Figueroa produziram filmes visualmente extraordinários que conquistaram reconhecimento internacional, gozaram de popularidade no México (até, no fim, entre a elite cultural), e continuam a atrair a atenção até hoje. Contribuintes entusiasmados da invenção oficial da identidade nacional, eles fabricaram uma terra natal essencialista, inferida pela história e pela política, que emergiu daquelas características que Fernández acreditava, "nos oferecer material inesgotável: a paisagem e os costumes do México". Os trabalhos mais conhecidos de Fernández & Figueroa se passavam no interior, onde, para Fernández, "tudo sempre foi igual". Estes dramas rurais continham doses fortes de machismo, refletindo a asserção do diretor de que sua nacionalidade é masculina: "o México é o México, e por esta mesma razão é masculino". Fernández encarnou pessoalmente o herói nacional vestindo-se como um charro, dando festas folclóricas nas quais somente comida mexicana e tequila eram servidos, e insistindo que suas mulheres usassem roupas típicas. O diretor temia que o cinema norte-americano estivesse "americanizando" seus compatriotas, e desejou "mexicanizar os mexicanos." Entretanto, sua megalomania o levou a acreditar que "até os mexicanos não sabiam como era o México até que eu o mostrei a eles," e que "há apenas um México: aquele que eu inventei." No fim, a confusão política, a falta de idéias, a tendência a pregar, e a qualidade pitoresca de Fernández não poderiam ser salvas pelas composições dramáticas de Figueroa. Depois de seus sucessos da década de 1940, ele começou a se repetir.

Os filmes mais importantes de Fernández & Figueroa sobre a Revolução Mexicana são Flor Silvestre (1943) e Enamorada (1946), melodramas filmados com extraordinária força visual. Flor Silvestre conta a história do filho de um homem rico, José Luis (Pedro Armendáriz), que ama uma mulher pobre, Esperanza (Dolores del Río). Seu relacionamento provoca atrito com os pais de José Luis, e ele ingressa na Revolução. Entretanto, estas dificuldades são rapidamente resolvidas, e eles vivem felizes juntos até que bandidos, disfarçados de revolucionários, capturam Esperanza e seu filho. Os foras-da-lei forçam José Luis a render-se e, numa cena primorosamente dolorosa, executam-no na frente de Esperanza, que agarra-se a seu filho (ele torna-se um represantante da Nova Ordem num flash-forward visto no fim do filme). Enamorada é essencialmente uma versão de A Megera Domada de Shakespeare. O General José Juan Reyes (Pedro Armendáriz) toma a cidade de Cholula, e encontra Beatriz (María Félix), a filha rebelde de um rico ancião local. O relacionamento entre os dois é tumultuado, mas depois de muita agitação, Beatriz abandona o gringo com quem iria se casar, e segue atrás do cavalo de José Juan.

Nos filmes de Fernando de Fuentes, a história é uma engrenagem viva que se impõe sobre as vidas daqueles que se deixam apanhar, modelando suas relações sociais. Nos filmes de Fernández & Figueroa a Revolução é convertida num confuso emaranhado de atrocidades sem sentido, e contextos históricos são reduzidos a "adornos", fachadas ornamentais que não têm qualquer relação com as situações que elas se propõem a representar. Estamos, é claro, acostumados a encontrar estes "adornos" naquilo que geralmente definimos como dramas de costumes, filmes que utilizam tempos antigos simplesmente para prover um contexto de época, mas que não demonstram qualquer respeito ou interesse na "alteridade" de épocas passadas. Apesar de tendermos a pensar nos adornos como violações importunas mas inofensivas da realidade histórica, Enamorada insinua que estes adornos podem não ser inocentes. Um exemplo da maneira com que os adornos escondem ideologia é a representação do General Juan José, que se veste com três uniformes diferentes. Quando ele aparece pela primeira vez no filme, ele está vestido como um Zapatista, com um grande sombrero e feixes de balas cruzados sobre seu peito; mais tarde, ele surge evidentemente como um oficial Villista, usando um chapéu característico daquelas forças; em outro momento, ele está claramente trajando um uniforme do exército federal que está combatendo os revolucionários... aqueles que ele aparentemente lidera! Qual é o significado de tal aberração histórica, de ter o protagonista trajando indiscriminadamente os uniformes de exércitos inimigos? O mito oficial crucial da Revolução Mexicana é que ela foi uma batalha dos "bons" – Zapata, Villa, Carranza, Madero e Obregón – contra os "maus" Porfirio Díaz (ditador de 1876 a 1911) e Victoriano Huerta. Fernández copia a fala oficial e, alinhado com sua visão essencialista e a-histórica, vai além ao fundir Zapatismo, Villismo e o Exército Federal, através do recurso dos uniformes de Juan José.

Ao removerem as origens sociais das motivações dos personagens, Fernández & Figueroa reduzem a Revolução a uma variedade de formas de natureza morta. Uma delas é a paisagem natural: vales panorâmicos marcados pela súbita investida de formações vulcânicas formam o fundo; agaves majestosos e cactus imponentes sobressaem nas imagens e emolduram os protagonistas; e acima de todos, os vagalhões de nuvens tornam-se inacreditavelmente luminosos pelo uso de filtros infravermelhos e perspectiva curvilínea. Paisagens arquitetônicas também são cenários importantes, quer sejam longas tomadas dos aparentemente intermináveis arcos da praça de Cholula ou a extensa tomada com a câmera livremente filmando as convoluções barrocas da capela de El Rosario. Do mesmo modo, as pessoas também são convertidas em uma forma de natureza morta por Fernández & Figueroa: campesinos pitorescos sob amplos sombreros, charros durões sobre garanhões impetuosos, mulheres cuja abnegação é registrada nos rebozos pelos quais estão envolvidas.

As faces dos astros e das estrelas dos filmes são ainda uma outra paisagem. Atores como María Félix e Pedro Armendáriz eram celebridades, um fenômeno que emergiu na cena mexicana durante a década de 1940, largamente impelido pela cultura visual do cinema e das revistas ilustradas. Os filmes de Fernández & Figueroa são "veículos" para estes atores, que geram a identificação necessária para fazer o público acreditar nas figuras histórico-fictícias que eles caracterizam, ratificando a reconstrução enormemente distorcida da Revolução, ao mesmo tempo que a tornava de alguma forma presente na vida cotidiana de seus fãs. Fernández se preocupava particularmente com o olhar projetado pelos atores – "no momento em que você pisca, a cena termina" – e ele converteu as feições de suas estrelas em representações fantasmagóricas da Revolução: os olhos cintilantes, o olhar fixo e as sobrancelhas levantadas de María Félix encaram o olhar penetrante, os dentes proeminentes e o bigode abundante de Pedro Armendáriz. É crucial contrastar mais uma vez esta estrutura estética com os filmes de Fernando de Fuentes. Os atores de Compadre Mendoza e ˇVámonos con Pancho Villa! eram conhecidos, mas não eram estrelas no sentido em que Félix e Armendáriz eram; e os atores de de Fuentes certamente não eram celebridades.

Nos filmes de Fernández & Figueroa, a centralidade das estrelas (e a presença fora-da-tela das celebridades que eram diretor e fotógrafo) combinam-se à forma curvilínea, à profundidade de campo, e aos ângulos de câmera baixos para monumentalizar a Revolução como História, uma natureza morta épica que é o equivalente cinematográfico do fatalismo e da imobilidade. Todas as extensas cenas de "paisagem" – sejam de natureza, arquitetura colonial, figurantes anônimos ou dos rostos das estrelas – oferecem a mesma narrativa mestra: a Revolução Mexicana é a eternidade de um ser mítico dado de uma vez por todas – de vulcões e nuvens, de estruturas antigas, de roupas pitorescas, de beleza superficial, da ditadura de partido que governou o México por 70 anos.

John Mraz
(Instituto de Ciencias Sociales y Humanidades,
Universidad Autónoma de Puebla.
Tradução de Fernando Verissimo)

 

 





Flor Silvestre (1943)