OS ESPIÕES
Fritz Lang, Spione, Alemanha, 1928

O Testamento do Dr. Mabuse

Por que Os Espiões permite a impressão de ser ao mesmo tempo a crítica impiedosa de Metropolis e um delineamento de muito do que Lang obteria com M – O Vampiro de Düsseldorf; de ser uma peça fundamental para a compreensão tanto dos Mabuse de 22 quanto das dificuldades que Lang encontrou em todos os seus filmes anteriores ao sonoro? Difícil sair com uma resposta de qualquer tipo, uma vez que o filme não parece respondê-las fácil ou simplesmente. De um lado Os Espiões de fato abraça a miríade de territórios e questões – do social ao geopolítico, do estético ao ensaístico – que fazem a fortuna de Lang nas suas maiores obras-primas, como M, Os Corruptos e o dístico O Tigre de Bengala/O Sepulcro Indiano; do outro é difícil notar o mesmo tipo de desenvolvimento intenso destes "parques" ou o tipo de inacreditável facilidade que Lang parece ter em envolver tudo aquilo que lhe é fecundo e produtivo numa única e enorme teia de relações. Mas por que ele deveria já ter essa facilidade aqui? Afinal de contas Os Espiões é um rascunho brilhante (ênfase aqui em "brilhante"), de imediato o adiantamento e a subseqüente lapidação de um olhar intransferível.

Uma vez que Lang não apenas é um monstro rigoroso mas também e igualmente um espírito astuto, lhe interessa muito em Os Espiões – precisamente para finalidades de avanço – aquilo que o material desenvolvido por ele e Thea Von Harbou apresenta de crítica aos seus trabalhos anteriores. Pois para a sua própria fortuna criativa Lang havia descoberto com Metropolis uma maneira de utilizar os movimentos de uma cidade para desenvolver e desempenhar diversas modalidades do metacinema, sempre comparando os percursos de sua arte com o estudo das ações (isto é, a cena) e a subseqüente circulação de informações (a representação desta cena, o 'pôr em cena') que preenchem tanto o funcionamento quanto a existência de uma "polis" (o filme em sua totalidade, não mais apenas o agrupamento de alguns vértices e alicerces mas uma estrutura tornada completa, essencial e inescapável). O que essencialmente falta em Metropolis – e o que ajuda a tornar problemáticas as glórias constantemente dedicadas ao filme – é curiosamente algum tipo de método que subvencione a criação deste sistema. Em outras palavras, se existe algo de encantador e interessante no filme é o fato de estarmos nos deparando menos com o ponto de vista firme de um indivíduo (não estamos ainda em 56 ou 57 para falarmos de No Silêncio de uma Cidade e Suplício de uma Alma) que com um olhar no seu estado embrionário, se formando pouco a pouco, cuidadosa e lentamente se cristalizando perante nossos olhos. O charme de Metropolis – e tendo em vista o restante da obra de Lang, trata-se mais de charme que de interesse – é esta crueza, este lado um tanto rude de um arsenal fantástico de formas à procura de um mestre-arquiteto.

Do essencialismo

Nada sequer remotamente semelhante aos problemas de Metropolis em Os Espiões: aquilo que em outros filmes dava vazão ao esotérico ou decorativo encontra aqui uma exposição muito mais acertada, coerente e justa. O início do filme é um grande exemplo deste mergulho em direção àquilo que apenas e tão-somente importa: em alguns poucos planos, na maioria closes ou planos médios (o que mostra como os tão festejados planos abertos d'Os Nibelungos e de Metropolis não são os que melhor servem à técnica do diretor), Lang dispõe todas as informações necessárias para compor o entrecho de seu filme e dar início aos procedimentos de narração (introdução dos personagens principais, dos ambientes ocupados por esses personagens e onde grandes partes do filme serão situadas etc.). Neste filme em que a informação é o mais valioso de todos os bens, o próprio Lang é quem mais tem cuidado em não desperdiçá-la. Este será o momento – independente deste momento ser Os Espiões, Trágica Obsessão, A Mulher de Todos ou Laura – de surgimento do grande cineasta.

Isso se chama a aurora, e é assim que em Os Espiões Lang se desfaz de tudo aquilo que facilmente o tiraria de seu percurso, precisamente para se concentrar no mais complexo e irresolúvel de todos os problemas já postos aos cineastas de todo o mundo e todos os tempos: os enviesamentos de um rosto, a incapacidade em se dar conta de um semblante, de uma figura, de uma máscara. Seu trabalho – o de manter uma máscara para desmontar outra, para demonstrar outra – só se torna plenamente possível uma vez que todo seu esforço vá direta e exclusivamente nas expressões, nos gestos, nos movimentos, nas hesitações, no fulgor... enfim, em toda a sorte de instrumentos que externam algo de seus envoltórios, de seus proprietários. É o que o cenário da cidade faz por Lang (cidade criada por ele mas que num momento posterior o envolve: seja pelo filme que tem que fazer nela, seja por todas as passagens que precisa realizar por ela) e o que as tramas rocambolescas fazem por Haghi, Tremaine e Sonja (mesma operação aqui: são eles que criam as tramas e são eles os mais consumidos por elas, Haghi ironicamente sendo o mais atingido por este fenômeno).

Morte do expressionismo

É aqui, em Lang, que vem ao mundo toda uma idéia de cinema: de Losey a De Palma, de Preminger a Godard, passando por Hellman e Bava, Argento e Chabrol, Rivette e Welles. O que está em jogo aqui é nada menos que um absurdo jogo de máscaras e bifurcações, uma enorme peça que ao final aniquilará justamente a si mesma. O trabalho de Lang é menos o daquele que acende o pavio que daquele que assiste ao percurso da chama: as falhas, os excessos, os pontos de nós, as fagulhas, nada nos é poupado. Nenhum adiantamento, nenhuma precipitação: aqui, a arte apenas espera, uma vez que as coisas já estão dispostas de forma a não se traírem, não se deformarem por uma fraqueza ou pela impaciência de um criador onisciente (coisa que Lang, aliás, jamais foi). Poucas vezes a idéia de arte enquanto processo encontrou uma expressão tão forte, tão impressionante quanto em tudo aquilo que Os Espiões tornou possível para Lang (o restante de sua obra, a saber). O pulo do gato e o sinal de um cinema do futuro (já passado), de um horizonte que não só o cineasta alemão poderá vislumbrar como toda uma (futura) geração de realizadores: há todo um cinema a se fazer depois de M e O Testamento do Dr. Mabuse, e demorará uns bons 30 anos para que esse cinema comece a ser feito. "Ele nos lembra que um cineasta é antes de tudo alguém que está adiante das coisas", disse Jean-Luc Godard a respeito de Renoir. Ironicamente, foi Lang quem refilmou dois filmes de Renoir e nunca o oposto. Estranhos os percursos desta arte...

É necessário acabar de uma vez por todas com Mabuse. Fantasma em O Testamento..., espectro televisual em Os Mil Olhos..., ele é a presença mais sorrateira, a mais enganadora de todas em Os Espiões. Mabuse não é Haghi, pois afinal de contas não temos o personagem de Mabuse em Os Espiões; mas Haghi é a máscara de Mabuse, a encarnação final de todas as encarnações, todas as nuances, cuidados, maneirismos, exageros e pequenos orgulhos do mestre-enganador. Nada mais verossímil que matar o signo Mabuse não através do personagem Mabuse mas sim através de sua máscara, de sua maior performance mabuseana. É a morte de Mabuse que catapultará o surgimento do Fritz Lang dos filmes norte-americanos, do artista maduro que ao final de sua carreira realizará Moonfleet, Suplício de uma Alma e O Tigre de Bengala, e de lambuja da obra que provocará e possibilitará cineastas a realizarem filmes como Encontro Com a Morte, La Bande des Quatre, O Signo do Caos, Missão: Impossível, Agente Triplo, Modesty Blaise, Grilhões do Passado. O coup de théâtre final não deixa nenhuma dúvida quanto a isso: é aqui que, através do assassinato do signo Mabuse, Lang finalmente se resolve com a questão (esgotada e ilegítima) do expressionismo.

Morte do expressionismo = Essencialismo

A verdade de uma máscara jamais é o seu excesso; uma máscara nada mais é que uma máscara. Quanto à ausência da máscara, esta não é jamais a verdade nem a mentira de um corpo mas sim sua contradição, seu tormento – um corpo sem máscara é aquele que à busca de uma acaba invariavelmente passando por todas. Nada mais cinematograficamente verdadeiro portanto que o final de Os Espiões, a resposta sensata de Lang aos que insistem em rótulos (como "expressionista", "cruel") e facilidades (como "alemão" ou "norte-americano"): a máscara do palhaço como a verdade do arqui-criminoso de mil faces. Na pequena performance que realiza no placo, diante de uma enorme platéia, aquele que antes era um mastermind criminal apenas repete as ações mais básicas de um show grosseiro. Tendo em vista a completa debilidade de seus gestos e suas ações, o performer aqui nada faz senão chamar atenção para si próprio (ele está no palco de um teatro, e alguma coisa precisa ser feita para o agrado da platéia – mas ele se encontra na boa e velha situação Langiana de não poder escapar, uma vez que a polícia empreende por causa de seus atos criminosos uma caçada pelo teatro). No completo impasse em que Haghi se encontra – entre se ocultar por trás da máscara de palhaço para despistar alguns e fazer de si mesmo um grande show para agradar outros – está talvez a maior auto-crítica já feita por Lang de seu próprio cinema (e conseqüentemente da própria arte). Haghi acaba tendo nenhuma escolha senão o suicídio, algo que ele incorpora ao processo de sua performance de palhaço. Essa morte – a de Haghi, que talvez também seja a do expressionismo – não deixa também de ser uma possível verdade sobre Lang, Os Espiões e tudo aquilo que se seguirá na obra do diretor.


Bruno Andrade

(VHS Continental)