diários de cannes IV

É sempre assim... basta você planejar e anunciar (no meu caso, sete filmes em cada dia do fim de semana) pra tudo ir por água abaixo... Primeiro é uma daquelas marcações corajosas de sessões em lugares diferentes com dez minutos de diferença, que acaba furando quando o primeiro filme atrasa um pouco para começar. Depois, você não consegue entrar numa sessão com a sala lotada, e finalmente você desiste de um filme no meio. Voilá: o dia de sete dias virou um de quatro. Mas chega-se ao final deste muito mais descansado, inegavelmente - o que vai ser ótimo pros outros dias e certamente ajuda muito os de hoje mesmo. Quanto a amanhã, uma desistência prévia: que mané ver Star Wars às 8h30 da manhã só pra dizer que viu primeiro... Semana que vem em Paris, ou na outra em qualquer lugar da galáxia, por mais que muito, muito distante. Vamos então aos filmes do dia (na verdade o primeiro foi o de Egoyan, mas deste deu pra escrever numa das sessões furadas).

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O dia finamente viu um autêntico começo na Un Certain Regard, com dois filmes de qualidade - sendo que um deles a verdadeira descoberta do Festival até agora, pois nada se sabia dele. Mas, também foi palco da tal desistência: na verdade, o filme está longe de ser um desastre, a desistência se deve muito mais a um misto de decepção e vontade de descansar - em festivais, eu pelo menos tenho o hábito, que nunca faço em outras ocasiões, de sair de filmes no meio (ou no começo mesmo), ou até de dormir de propósito pra descansar - este segundo caso foi a opção de hoje, acordando ainda pra ver os quinze minutos finais de Dark Horse (Voksne Mennesker), do islandês Dagur Kári. Não vejo problema nenhum no crítico exercer estas opções (aliás é melhor do que textos escritos sobre filmes vistos em más condições - físicas, psicológicas, de projeção), com a única condição que nãose pode escrever texto analítico sério sobre filmes interrompidos, no máximo tecer comentários gerais sobre o motivo do seu interrompimento, em primeiríssima pessoa. Aqui, meu problema com Kári talvez seja exatamente o excesso de expectativas do seu primeiro filme que vi, o curta-quase-média Lost Weekend, seu trabalho de conclusão de curso de cinema na Dinamarca (filme que circulou um tanto nos festivais internacionais de curtas do Brasil). Trata-se de um extremamente bem-sucedido retrato de alguns dias das vidas de personagens um tanto à margem, onde de fato não acontece muito mais do que seus encontros e desencontros num hotel de segunda. O curta mostra um tal domínio narrativo e criação de climas que sempre foi fácil esperar uma continuidade de carreira muito bem sucedida de Kári. Pois se o seu longa de estréia, Noi Albinoi (exibido na Mostra de SP do ano passado), não chegava a diminuir esta promessa, por confirmar sua sensibilidade um tanto esquisita e os climas improváveis (muito ajudados pelas paisagens de sua Islândia natal), este seu novo filme comprova uma curiosa e lamentável tendência de Kári de estar se distanciando de sua melhor forma. O começo até promete, com sua narrativa dividida em capítulos e o retrato de (mais um) personagem às margens do sistema, incapaz de lidar com o "mundo dos adultos" - há ali uma (assumida) influência da primeira onda da Nouvelle Vague bastante interessante. No entanto, na medida em que o filme avança suas piadas vão ficando cada vez mais consistentemente sem graça, e seu desejo de ser "cool", cada vez mais desejo e menos "cool". De fato, se outra influência assumida é do primeiro Jarmusch, o que Kári não parece perceber é que seu filme parece muito mais com todas as derivações deste primeiro Jarmusch que o próprio cinema americano já criou. Ao invés da sensibilidade aproximada mas com olhar próprio que demonstra um Aki Kaurismaki, o que vemos aqui é uma autêntica referência sem alma. Pena - ainda dá pra esperar que Kári volte a fazer um bom cinema, mas a curva não indica este movimento.

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Down in the Valley, de David Jacobson, EUA, 2005 - Un Certain Regard

O retrato de um jovem personagem que não consegue se adaptar ao mundo é exatamente também o tema do filme do americano Jacobson - só que ele sim consegue fazer tudo aqui que falta ao filme de Kári: ser original, criar clima e personagens engajantes e, acima de tudo, dar alma, muita alma ao seu filme. Grande descoberta do Festival até agora, Down in the Valley também pode ser considerado o oposto completo de Where the Truth Lies: trata-se de um filme que se refere o tempo inteiro aos gêneros do cinema americano, que vai criando inúmeras viradas de narrativa e que lida com personagens vivendo entre a criação de personas e aquilo que eles realmente são - só que aqui não há lugar pra explicatices banais, pra separação entre universo do real e do auto-ficcional ou pra "espertezas de roteiro". Edward Norton (que apenas faz aumentar a certeza de ser o grande ator americano de sua geração) interpreta um personagem impressionantemente multi-facetado, que muda de figura ao longo do filme das maneiras mais surpreendentes, ganhando camadas e mais camadas de complexidade, sem nunca cair em nenhum tipo de chave de entendimento completo deste, sem com isso perder nem por um segundo a identificação da platéia. Mas ele não está sozinho: Jacobson mostra-se um ótimo montador de elencos e diretor de atores, e escala ainda o pequeno grande Rory Culkin (o filho no Sinais de Shyamalan), o muito impressionante David Morse, e traz de volta às telas Evan Rachel Wood, a única boa descoberta do lamentável Aos Treze. Na verdade, o primeiro gênero que o filme parece assumir é justamente uma versão deste mesmo filme (impressiona como a casa da família se parece com a do filme de Catherine Hardwicke, só que aqui temos um pai e não uma mãe lidando com sua filha adolescente). Só que Jacobson mostra exatamente como Aos Treze podia ser um filme se assim quisesse: Morse dá múltiplas facetas ao pai e Wood à filha, e acreditamos em cada cena entre eles. Com a entrada de Norton em cena, o filme assume ares de um romance pós-adolescente adorável, com algumas das melhores cenas de romance iniciático (onde sexo é parte do jogo) no cinema atual. De repente, o filme começa a ganhar tons dramáticos, e finalmente trágicos - que parecem que darão o tom final à narrativa. É quando um último (muito bem construído) twist nos joga para o terreno do western (sim!), onde o filme encontrará o seu desfecho brilhante, na encenação de pelo menos três tiroteios-duelos de armas filmados com maestria (um deles na escuridão da noite, um num estúdio de cinema onde se filma um western ao mesmo tempo e finalmente um na parte dos estúdios que a câmera não filma - as estruturas que os sustentam).

Difícil, sem ver o filme, imaginar de que forma esta narrativa consegue fazer estas transições sem nunca ser nem afetada, nem auto-centrada, nem muito menos caótica. Jacobson é um dos principais responsáveis, com seu roteiro de uma complexidade de aparência simples, e com sua direção segura, mas nisso conta muito com os atores, porque está neles e nos caminhos que seus personagens vão tomando toda a razão de ser destes andamentos todos. Dar conta de fazer disso tudo um todo coerente e tão vivo não é tarefa fácil. Jacobson filma tudo isso num scope discreto mas extremamente necessário, e traz de volta ao cinema americano um muito apropriado e belo uso de trilha de canções originais, de Peter Selett, incrivelmente não-obstrusivas à trama. Isso tudo para que Jacobson e Norton, no fundo, construam uma releitura completamente original de um personagem muito parecido com um Travis Bickle (de Taxi Driver), mais jovem, mais romântico, mas igualmente retirado da realidade pelo mundo à sua volta, alienado, incapaz de se adequar. Uma história dura, e ao mesmo tempo lírica, de romance, violência (o uso do som das armas no filme vale uma atenção especial), e finalmente um filme que se recusa a encontrar culpados ou explicações pra uma explosão de sofrimentos causados pela simples interação entre pessoas - todas elas com as melhores intenções. Poderoso filme, que chama muito a atenção pra este jovem, e até então desapercebido, autor - filme que, aliás, merecia e deveria estar na Competição, no lugar de muita coisa lá vista.

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La terre abandonnée (Sulanga enu pinisa), de Vimukthi Jayasundara, França/Sri Lanka, 2005 - Un Certain Regard

Pois é, mal nos acostumamos com Apichatpong Weerasethabul e lá vem outro nome complicado a ser guardado... Na verdade, as coincidências entre este filme e Tropical Malady são bastante impressionantes: personagens em relação direta com a natureza à sua volta (incluindo passeios nus na floresta), a presença de um esquadrão do exército que vaga por esta mesma natureza, cenas em um caminhão de transporte do exército e um ônibus na cidade, a narrativa de uma história mística-fantástica passada na floresta. Mas os objetivos dos filmes são um tanto distintos, e mesmo seu andamento pode ser considerado oposto: enquanto o filme tailandês se divide um duas partes, onde o realismo vai dando lugar ao místico, aqui o caminho é inverso - as cenas a princípio eminentemente oníricas e quase sem comunicação verbal (fala-se quase nada na primeira hora de filme) vão ganhando um realismo um pouco maior ao longo do andamento do filme.

É fato que Jayasundara exagera um pouco na sua "beleza plástica", com um claro trabalho de pós-produção digital ao longo do filme todo (embora isso em si não seja um problema, visto que muito da sua lógica narrativa se aproxima mesmo da pintura), e que falta a ele a originalidade quase absurda de Weerasethakul (o filme acaba se revelando uma tragédia familiar um tanto comum como narrativa - impressionando apenas como esta é montada). Na verdade, La terre abandonnée é ainda um tanto desigual, neste sentido é um filme de estréia típico, mas bem atípico no tanto de pretensões cinematográfica. Mas, quando consegue compor alguns planos de extrema beleza (não apenas plástica, diga-se), o filme é realmente forte na sua narrativa movida a pulsões sexuais, desejos de morte e violência onipresente, e da interação homens-natureza (entendida aqui do rio, aos animais, às árvores, à chuva ou ao nascer do sol). Se o Un Certain Regard é o lugar para promessas, Jayasundara certamente é uma delas - sendo que, se esta seção também é o lugar pro exotismo e pras "culturas distantes", este foi o filme que melhor lidou com isso até agora, satisfazendo quem quer procurar isso sem deixar de lado sua originalidade, nem oferecendo simbologismos e compreensões simples destas terras tão estranhas.

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Quando sei nato, non puoi piú nasconderti, de Marco Tulio Giordana, Itália/França/Inglaterra, 2005 - Competição

Primeira cena: garoto de família burguesa anda na rua, onde de repente um velho imigrante africano começa a gritar palavras desconexas enquanto arranca suas próprias roupas até ser preso. Pronto, em uma cena Giordana apresenta o que será seu filme: o contato de um olhar ainda em formação (o do garoto) com a realidade da imigração na Europa (no caso, no norte da Itália). Só que o problema é que, sob a desculpa de fazer um filme a partir de um olhar infantil, Giordana e sua trupe tratam os espectadores, eles mesmos, o tempo todo como membros do mesmo grupo: crianças burguesas que precisam ter seus olhares educados. É o cinema-ONG na sua encarnação mais detestável: didático, óbvio narrativamente, pesado (não em temas, e sim no tratamento destes), desumanizante no seu "humanismo", eventualmente preconceituoso (claro que não abertamente, mas em como olha para os imigrantes), e principalmente, chato demais (tanto assim que, ao simplesmente não saber acabar o seu filme, prologando-o em pelo menos meia hora excessiva de didatismo, Giordana não conseguiu nem a adesão do público mais careta entre os críticos, que certamente teriam aplaudido de pé alguns dos seus momentos mais deploráveis). Há cenas que trazem a autêntica ânsia de vômito (como a apresentação dos imigrantes frente a frente com a câmera, por dois segundos - "Fulano, Burkina Faso; Fulanovic, Montenegro"; a despedida do menino do campo de refugiados - refugiados aliás que parecem ter sido escalados na agência de casting United Colors of Benetton), mas também outras que não funcionam por pura falta de mão do diretor (em especial a do afogamento do menino). No material de imprensa, Giordana admite que só consegue fazer um filme sobre este tema a partir do prisma da culpa social e da piedade. OK, bom pra ele que saiba o que está fazendo - nem por isso precisamos aceitar o produto final.

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Falscher Bekenner, de Christoph Hochhausler, Alemanha, 2005 - Un Certain Regard

O filme vinha com um pequeno hype de "A Grande Esperança Branca", ou o filme alemão que realmente consolidaria um talento que dava outra força ao chamado Jovem Cinema Alemão do momento (Hochhausler dirigiu um outro longa muito elogiado). Bom, a julgar por este filme somente, esperanças em vão. Não que seja um mau filme, até longe disso - apenas não traz absolutamente nada que justifique um interesse maior. Mais uma história sobre um jovem alienado do mundo pela sua família burguesa com suas expectativas para o seu futuro, as entrevistas vazias e ridículas para emprego, nenhum amigo ou namorada, os irmãos mais velhos e bem sucedidos. Em suma, volta ao bom e velho tema do "rebelde sem causa", com o diferencial apenas de que a rebeldia aqui está mais perto da apatia, e é essa apatia que seguimos ao longo dos filmes - apatia que vai encontrar uma peculiar forma de ser extravasada, porém, na tentativa do jovem de "sentir alguma coisa". Há momentos bonitos nesta incapacidade de sentir que vemos na tela, mas outros tantos e tantos (e tantos) muito mais perto dos clichês já tão bonitos desta juventude desapegada de tudo. Ao final, Falscher Bekenner parece mesmo uma versão existencial (ao invés do político-social) de Edukators. Até melhor do que este (que, afinal concorreu à Palma de Ouro ano passado), mas quem me conhece sabe que isso não é lá um grande elogio.

Eduardo Valente


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