diários de cannes XIII - em paris

Depois de um Festival como Cannes, mesmo com dois dias de descanso, a sensação ao ir ao cinema de novo é que se viu coisas de mais nos últimos tempos, e a tolerância baixou um pouco. Na prática, pelo menos comigo, o efeito exato disso é uma busca de encontrar-se algo ainda não visto, algo não esperado. Não é o caso de se querer uma busca por uma dita "originalidade" como único valor positivo possível, e sim uma vontade de ver algo que não repita tanto que se viu nestas semanas. Claro que voltar a Paris também não ajuda aos filmes, uma vez que começa a haver uma certa concorrência desleal (um destes dias, por exemplo, eu "abri os trabalhos" com Monkey Business, do Hawks, possivelmente só um dos melhores filmes que eu já vi - então fica complicado pra quem vem depois mesmo). Neste sentido, a vantagem da Quinzena dos Realizadores, que está em exibição aqui no Forum des Images (enquanto o Un Certain Regard reprisa no Reflet Medicis) é que a marca das suas seleções sempre costumou ser a de buscar o menos comum, o mais estranho, o mais diferente. Só que, como veremos a seguir, às vezes estas buscas também caem num certo esquematismo do que seja o tal do "diferente"...

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Room, de Kyle Henry, EUA, 2005 - Quinzena dos Realizadores
The president`s last bang (Gu tte gu sa ram dul) de Im Sang-soo, Coréia do Sul, 2005 - Quinzena dos Realizadores

O programa desta sexta nos colocou bem de frente com a questão acima levantada. Room começa como uma centena de filmes atuais: feito em "DV sem vergonha de sê-lo", câmera freneticamente na mão seguindo os personagens de perto, montagem cheia de cortes repentinos e pulos de continuidade (tudo aquilo que nos anos '60 era "revolucionário", e hoje é banal mesmo em termos de linguagem). Até aí, nada demais... Não é o formato que mais me atrai, mas vamos em busca dos porquês para ele... No seu retrato de um dia a dia sufocante da vida de uma dona de casa com seus dois filhos pequenos e marido, trabalhando em dois empregos, estafada e sem dinheiro, o filme até encontra alguma ressonância no trabalho da atriz e no retrato sem tantas tintas mal marcadas desta vida "tristemente comum", admirável no que se posiciona distante da imagem da "middle America" que se quer sempre vender. Isso tudo podia construir um filme de interesse, ainda que eventualmente limitado, mas Henry claramente tem outras ambições, que se manifestam de duas maneiras: a primeira, com a incessante (desde antes da primeira imagem, no som dos créditos) vontade de inserir esta história no hoje através dos sinais mais óbvios (discursos onipresentes de Bush, TV passando Guerra do Iraque sem parar etc); a segunda, com uma intrigante mudança de foco repentina da história, através de esquisitíssimas visões que a personagem tem em sua estafa (do quarto vazio que dá título ao filme), e que acabam levando a um corte repentino na narrativa do filme, levando-a dos subúrbios de Houston a perambular pelas ruas de Nova York, na busca deste tal "quarto".

É verdade que esta segunda característica dá uma mudança tão inesperada ao filme que nos coloca numa salutar incapacidade de saber onde o filme vai exatamente. No entanto, o problema principal é que o domínio da linguagem e da estética por parte de Henry é bastante limitado, e esta virada fica sendo vista lá de longe, como algo muito mais do diretor do que da personagem. Parece tudo muito bem pensado para "surpreender", e por isso mesmo a surpresa até acontece, mas satisfaz muito pouco por si só. O filme pretensamente ganha tons lynchianos, ganha perambulações menos narrativas, mas isso por si só não resolve o fato de que aquilo que se passa na tela não nos interessa tanto assim. Claro, entendemos porque ele faz isso (o que fica claro como uma mediação entre os dois pontos aqui mencionados - caracterizar a crise da personagem como uma crise da atualidade nos EUA) mas, fora do entendimento racional, pouco acontece. Então temos Henry como o exemplo de um diretor tentando fazer algo novo no meio de um sistema tão batido, mas que patina na sua própria "novidade", e não consegue dar conta dela. Novidade por si mesma, não é muito.

Já o caso de Im Sang-soo é diferente: se partimos da forma, The president`s last bang pode impressionar pouco como novidade. Passando como um filme de gênero, como um policial político, o filme poderia apenas nos fazer reconhecer o impressionante domínio de linguagem (embora isso já não nos surpreenda mais nem um pouco no cinema coreano - ou oriental como um todo), ou mais ainda a capacidade de articular com clareza e inteligência uma intrincada teia de relações políticas ou pessoais da alta esfera do poder sul-coreano. Mas, isso seria uma leitura apenas superficial daquilo que Im realmente faz, e que isso sim é incrivelmente deflagrador: ele simplesmente cria um filme de gênero a partir de uma das principais intrigas políticas da história recente do seu país (o que, se já seria feito impressionante em qualquer lugar, parece especialmente assim na Coréia), não só dando todos os nomes aos bois, como tratando com um sem cerimônia impressionante esta história e pessoas. Seria como, pra fazermos um paralelo nosso, uma reconstituição do caso PC Farias no registro do filme de gênero - embora a idéia pareça atraente, conseguimos saber quão complicado seria lidar com isso desta maneira. Im não só faz isso brilhantemente, num filme de uma hora e quarenta e cinco que passa como se tivesse meia hora (enquanto o filme de Kyle Henry tem uma hora e quinze que passam como 3 horas), como o faz com um tom muitas vezes francamente chanchadesco (que desemboca na irônica narração em off final) que debocha com precisão de toda e qualquer forma de autoridade possível. Seu retrato do patético das instituições não é nunca simplesmente bobo, e sim surpreendente, vivo.
Entre os dois filmes, a lição óbvia: surpreender e fazer o novo não é questão de fórmulas, e sim de talento.

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Une nuit (Yek shab), de Niki Karimi, Irã, 2005 - Un Certain Regard

Um dos filmes perdidos na mostra em Cannes, felizmente recuperado aqui. Falando-se em novo e fórmulas, eu desafio qualquer crítica ou análise de Une nuit que não contenha no primeiro parágrafo o nome de Abbas Kiarostami (como podem ver, esta aqui também não será uma delas). Claro, a matriz semelhante ao cinema de Kiarostami é tão clara que é impossível não dar conta dela: filme eminentemente passado em carros em movimento, local onde se dão os encontros e conversações quase todos do filme (exceção ao primeiro diálogo do filme, com a mãe, excepcionalmente filmado num plano estático com a mãe fora de quadro), com uma série de planos muito semelhantes aos do diretor iraniano (e não só os de Ten, embora este venha mais à mente, claro). Perambulação esta que aqui, como indica o nome, dura uma noite - e nisso lembra especialmente alguns momentos também de Ouro Carmin (roteirizado por Kiarostami).

No entanto, se Karimi realmente parte desta matriz inegável, ela a enfrente de frente, e consegue impor sua própria forma de lidar com ela - onde uma diferença sutil, mas clara, se faz presente. Se em Ten a protagonista dirigia o carro, e as conversas (e ao fazer isso, tornava o filme um círculo que girava em torno dela), em Une nuit a protagonista é sempre a carona nos carros - e nas conversas. Ela ouve, e não fala tanto, e nisso percebemos um claro olhar feminino de Karimi onde, se fazer cinema é sempre tentar olhar para o outro, seu foco aqui é o de ouvir (como a personagem) o que os três homens com quem ela pegará carona tem a dizer. Claro, ler o filme como uma metáfora das relações entre os gêneros no Irã de hoje não é difícil (e, vale ressaltar, o filme foi feito e continua na clandestinidade, entre outras coisas porque resvala em temas como prostituição, suicído, violência, mendicância, assassinato, violência urbana - todos estes, aliás, muito discretamente e "no fundo"), mas assim como em Kiarostami, ele é bem mais do que isso. É um muitíssimo bem filmado e narrado retrato de mediações e relações possíveis, de tentar olhar para o outro numa relação entre o espelho e o desconhecimento completo, e um pequeno ensaio realmente sobre os mistérios que cercam as relações humanas. Belíssimo trabalho.

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Seven invisible men, de Sharunas Bartas, Lituânia/França/Portugal, 2005 - Quinzena dos Realizadores
Geminis, de Albertina Carri, Argentina/França, 2005 - Quinzena dos Realizadores

Em ambos os filmes, sobressai a onipresença do conceito do "cinema de autor". Bartas talvez até ilustre também o último exemplo possível dentro destas relações com originalidades, que é a do realizador com sua própria obra. Do cineasta lituano, pudemos já ver Poucos de nós, A casa e Liberdade, todos os três exibidos na Mostra de SP. Em cada um deles, Bartas impõe sempre seu apurado senso estético e de composição de quadro, sua forma peculiar de lidar com o tempo cinematográfico e com a idéia de narrativa. Nestes sentidos todos, Seven invisible men não traz surpresas, e aprofunda o mesmo caminho (aqui, talvez, mais em contato do que nunca com um universo como o de Béla Tarr - mas isso também pode se dever a ser o primeiro filme dele que eu vejo depois de conhecer o cinema do húngaro). É um caminho sempre um tanto auto-indulgente, por assim dizer, onde a "beleza" parece sempre emergir de um gesto extremamente estudado para saber onde ir buscá-la (e geralmente é nas sarjetas do espírito e do corpo humano). Mas Bartas consegue atingir em muitos momentos esta beleza, aqui mais do que nunca pela sua exploração do rosto como paisagem, da paisagem como personagem (onde um plano pelo menos é excepcional - o dos pássaros na estrada), e da realidade como mistura da poesia com o patético (algo bastante tarriano). Não é um filme, para os que já conheçam o seu cinema, que traga muita excitação - mas é uma continuidade de pesquisa bastante consistente, com inegáveis altos e baixos, mas a qual se assiste sempre com interesse.

Já no filme de Carri, tudo que é estilo em Bartas passa a ser apenas estiloso. Cada plano do filme (com seus incessantes e francamente feios movimentos em travelling lateral) parece ter um luminoso em cima dele, onde se lê por vezes "plano genial" e por vezes "plano chocante". Difícil ver qualquer um dos dois no filme, que revela apenas um profundo tédio com o fenômeno humano. Curioso que o filme pareça quase sempre uma evocação do cinema de Lucrecia Martel (inclusive uma das atrizes principais era também de La niña santa), porque isso traz de novo à tona a questão do talento: se Martel consegue sempre um feito impressionante, que é esconder todo um trabalho incrível de elaboração de linguagem do cinema por trás de uma "verdade" que emana de cada uma das suas personagens, Carri parece sempre estar tentando revelar a verdade sobre estas suas personagens, e só conseguimos ver a linguagem do cinema tentando ser usada pra isso. Bastante difícil explicar como se dão estes dois momentos, o inegável porém é que se dão. Claro, com um elenco escolhido a dedo pra isso, não se pode negar que o aspecto "tesudo" do cinema de Martel se reproduz aqui (as cenas de sexo são realmente boas), mas o aspecto humano nem um pouco. E, qualquer dúvida que tenhamos sobre isso se esvai com a catarse final, patologizante (como todo o filme disfarçadamente é). Carri faz cinema de autor mas, infelizmente, não é autora.

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Crying fist (Ju-Meok-I-Woon-Da), de Ryoo Seung-wan, Coréia do Sul, 2005 - Quinzena dos Realizadores
Umoregi (The buried forest), de Kohei Oguri, Japão, 2005 - Quinzena dos Realizadores

Na prática, e logo explico o porquê, eu não posso analisar a sério e a fundo os dois filmes. Mas analiso então seu efeito sobre mim, rapidamente: Umoregi é quase uma pesquisa visual-narrativa de Oguri sobre tanto o uso da HD como formato de captação e das possibilidades de alteração e efeitos digitais criando uma possibilidade de mistura entre realidade e fantasia, fábula e registro; Crying Fist é um conto de redenção em duas partes simultâneas, um filme de boxe (quase sempre espaço da redenção, como em todos os filmes de esporte) que é também um melodrama. Nos dois casos, e daí vem minha impossibilidade, os filmes me deixaram eminentemente desinteressado, e por isso mesmo, em ambos tirei um considerável cochilo - embora tenha voltado a eles depois, e acompanhado até o fim. Não me atrevo portanto a sair analisando os filmes, mas digo o seguinte: neste momento de busca por algo que me faça perder o chão um pouco, nem a fantasia solta de Oguri conseguiu me parecer mais do que uma simples (embora simples talvez seja realmente a palavra errada) exploração de linguagem por ela mesma, nem o filme de Ryoo conseguiu ser mais, para mim, do que uma mistura de Zefirelli com Iñarritu (embora, claramente, ele parecesse estar tentando algo mais como uma mistura de Douglas Sirk com Scorsese). Talvez seja efeito dos dias e dias de filme, mas foi assim que a coisa "bateu".

Eduardo Valente


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