Depois
de um Festival como Cannes, mesmo com dois dias de descanso,
a sensação ao ir ao cinema de novo é
que se viu coisas de mais nos últimos tempos,
e a tolerância baixou um pouco. Na prática,
pelo menos comigo, o efeito exato disso é uma
busca de encontrar-se algo ainda não visto, algo
não esperado. Não é o caso de se
querer uma busca por uma dita "originalidade"
como único valor positivo possível, e
sim uma vontade de ver algo que não repita tanto
que se viu nestas semanas. Claro que voltar a Paris
também não ajuda aos filmes, uma vez que
começa a haver uma certa concorrência desleal
(um destes dias, por exemplo, eu "abri os trabalhos"
com Monkey Business, do Hawks, possivelmente
só um dos melhores filmes que eu já vi
- então fica complicado pra quem vem depois mesmo).
Neste sentido, a vantagem da Quinzena dos Realizadores,
que está em exibição aqui no Forum
des Images (enquanto o Un Certain Regard reprisa no
Reflet Medicis) é que a marca das suas seleções
sempre costumou ser a de buscar o menos comum, o mais
estranho, o mais diferente. Só que, como veremos
a seguir, às vezes estas buscas também
caem num certo esquematismo do que seja o tal do "diferente"...
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Room, de Kyle Henry, EUA, 2005 - Quinzena dos
Realizadores
The president`s last bang (Gu tte gu sa
ram dul) de Im Sang-soo, Coréia do Sul, 2005
- Quinzena dos Realizadores
O programa desta sexta nos colocou bem de frente com
a questão acima levantada. Room começa
como uma centena de filmes atuais: feito em "DV
sem vergonha de sê-lo", câmera freneticamente
na mão seguindo os personagens de perto, montagem
cheia de cortes repentinos e pulos de continuidade (tudo
aquilo que nos anos '60 era "revolucionário",
e hoje é banal mesmo em termos de linguagem).
Até aí, nada demais... Não é
o formato que mais me atrai, mas vamos em busca dos
porquês para ele... No seu retrato de um dia a
dia sufocante da vida de uma dona de casa com seus dois
filhos pequenos e marido, trabalhando em dois empregos,
estafada e sem dinheiro, o filme até encontra
alguma ressonância no trabalho da atriz e no retrato
sem tantas tintas mal marcadas desta vida "tristemente
comum", admirável no que se posiciona distante
da imagem da "middle America" que
se quer sempre vender. Isso tudo podia construir um
filme de interesse, ainda que eventualmente limitado,
mas Henry claramente tem outras ambições,
que se manifestam de duas maneiras: a primeira, com
a incessante (desde antes da primeira imagem, no som
dos créditos) vontade de inserir esta história
no hoje através dos sinais mais óbvios
(discursos onipresentes de Bush, TV passando Guerra
do Iraque sem parar etc); a segunda, com uma intrigante
mudança de foco repentina da história,
através de esquisitíssimas visões
que a personagem tem em sua estafa (do quarto vazio
que dá título ao filme), e que acabam
levando a um corte repentino na narrativa do filme,
levando-a dos subúrbios de Houston a perambular
pelas ruas de Nova York, na busca deste tal "quarto".
É verdade que esta segunda característica
dá uma mudança tão inesperada ao
filme que nos coloca numa salutar incapacidade de saber
onde o filme vai exatamente. No entanto, o problema
principal é que o domínio da linguagem
e da estética por parte de Henry é bastante
limitado, e esta virada fica sendo vista lá de
longe, como algo muito mais do diretor do que da personagem.
Parece tudo muito bem pensado para "surpreender",
e por isso mesmo a surpresa até acontece, mas
satisfaz muito pouco por si só. O filme pretensamente
ganha tons lynchianos, ganha perambulações
menos narrativas, mas isso por si só não
resolve o fato de que aquilo que se passa na tela não
nos interessa tanto assim. Claro, entendemos porque
ele faz isso (o que fica claro como uma mediação
entre os dois pontos aqui mencionados - caracterizar
a crise da personagem como uma crise da atualidade nos
EUA) mas, fora do entendimento racional, pouco acontece.
Então temos Henry como o exemplo de um diretor
tentando fazer algo novo no meio de um sistema tão
batido, mas que patina na sua própria "novidade",
e não consegue dar conta dela. Novidade por si
mesma, não é muito.
Já o caso de Im Sang-soo é diferente:
se partimos da forma, The president`s last bang
pode impressionar pouco como novidade. Passando como
um filme de gênero, como um policial político,
o filme poderia apenas nos fazer reconhecer o impressionante
domínio de linguagem (embora isso já não
nos surpreenda mais nem um pouco no cinema coreano -
ou oriental como um todo), ou mais ainda a capacidade
de articular com clareza e inteligência uma intrincada
teia de relações políticas ou pessoais
da alta esfera do poder sul-coreano. Mas, isso seria
uma leitura apenas superficial daquilo que Im realmente
faz, e que isso sim é incrivelmente deflagrador:
ele simplesmente cria um filme de gênero a partir
de uma das principais intrigas políticas da história
recente do seu país (o que, se já seria
feito impressionante em qualquer lugar, parece especialmente
assim na Coréia), não só dando
todos os nomes aos bois, como tratando com um sem cerimônia
impressionante esta história e pessoas. Seria
como, pra fazermos um paralelo nosso, uma reconstituição
do caso PC Farias no registro do filme de gênero
- embora a idéia pareça atraente, conseguimos
saber quão complicado seria lidar com isso desta
maneira. Im não só faz isso brilhantemente,
num filme de uma hora e quarenta e cinco que passa como
se tivesse meia hora (enquanto o filme de Kyle Henry
tem uma hora e quinze que passam como 3 horas), como
o faz com um tom muitas vezes francamente chanchadesco
(que desemboca na irônica narração
em off final) que debocha com precisão de toda
e qualquer forma de autoridade possível. Seu
retrato do patético das instituições
não é nunca simplesmente bobo, e sim surpreendente,
vivo.
Entre os dois filmes, a lição óbvia:
surpreender e fazer o novo não é questão
de fórmulas, e sim de talento.
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Une nuit (Yek shab), de Niki Karimi,
Irã, 2005 - Un Certain Regard
Um dos filmes perdidos na mostra em Cannes, felizmente
recuperado aqui. Falando-se em novo e fórmulas,
eu desafio qualquer crítica ou análise
de Une nuit que não contenha no primeiro
parágrafo o nome de Abbas Kiarostami (como podem
ver, esta aqui também não será
uma delas). Claro, a matriz semelhante ao cinema de
Kiarostami é tão clara que é impossível
não dar conta dela: filme eminentemente passado
em carros em movimento, local onde se dão os
encontros e conversações quase todos do
filme (exceção ao primeiro diálogo
do filme, com a mãe, excepcionalmente filmado
num plano estático com a mãe fora de quadro),
com uma série de planos muito semelhantes aos
do diretor iraniano (e não só os de Ten,
embora este venha mais à mente, claro). Perambulação
esta que aqui, como indica o nome, dura uma noite -
e nisso lembra especialmente alguns momentos também
de Ouro Carmin (roteirizado por Kiarostami).
No entanto, se Karimi realmente parte desta matriz inegável,
ela a enfrente de frente, e consegue impor sua própria
forma de lidar com ela - onde uma diferença sutil,
mas clara, se faz presente. Se em Ten a protagonista
dirigia o carro, e as conversas (e ao fazer isso, tornava
o filme um círculo que girava em torno dela),
em Une nuit a protagonista é sempre
a carona nos carros - e nas conversas. Ela ouve, e não
fala tanto, e nisso percebemos um claro olhar feminino
de Karimi onde, se fazer cinema é sempre tentar
olhar para o outro, seu foco aqui é o de ouvir
(como a personagem) o que os três homens com quem
ela pegará carona tem a dizer. Claro, ler o filme
como uma metáfora das relações
entre os gêneros no Irã de hoje não
é difícil (e, vale ressaltar, o filme
foi feito e continua na clandestinidade, entre outras
coisas porque resvala em temas como prostituição,
suicído, violência, mendicância,
assassinato, violência urbana - todos estes, aliás,
muito discretamente e "no fundo"), mas assim
como em Kiarostami, ele é bem mais do que isso.
É um muitíssimo bem filmado e narrado
retrato de mediações e relações
possíveis, de tentar olhar para o outro numa
relação entre o espelho e o desconhecimento
completo, e um pequeno ensaio realmente sobre os mistérios
que cercam as relações humanas. Belíssimo
trabalho.
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Seven invisible men, de Sharunas Bartas, Lituânia/França/Portugal,
2005 - Quinzena dos Realizadores
Geminis, de Albertina Carri, Argentina/França,
2005 - Quinzena dos Realizadores
Em ambos os filmes, sobressai a onipresença do
conceito do "cinema de autor". Bartas
talvez até ilustre também o último
exemplo possível dentro destas relações
com originalidades, que é a do realizador com
sua própria obra. Do cineasta lituano, pudemos
já ver Poucos de nós, A casa
e Liberdade, todos os três exibidos na
Mostra de SP. Em cada um deles, Bartas impõe
sempre seu apurado senso estético e de composição
de quadro, sua forma peculiar de lidar com o tempo cinematográfico
e com a idéia de narrativa. Nestes sentidos todos,
Seven invisible men não traz surpresas,
e aprofunda o mesmo caminho (aqui, talvez, mais em contato
do que nunca com um universo como o de Béla Tarr
- mas isso também pode se dever a ser o primeiro
filme dele que eu vejo depois de conhecer o cinema do
húngaro). É um caminho sempre um tanto
auto-indulgente, por assim dizer, onde a "beleza"
parece sempre emergir de um gesto extremamente estudado
para saber onde ir buscá-la (e geralmente é
nas sarjetas do espírito e do corpo humano).
Mas Bartas consegue atingir em muitos momentos esta
beleza, aqui mais do que nunca pela sua exploração
do rosto como paisagem, da paisagem como personagem
(onde um plano pelo menos é excepcional - o dos
pássaros na estrada), e da realidade como mistura
da poesia com o patético (algo bastante tarriano).
Não é um filme, para os que já
conheçam o seu cinema, que traga muita excitação
- mas é uma continuidade de pesquisa bastante
consistente, com inegáveis altos e baixos, mas
a qual se assiste sempre com interesse.
Já no filme de Carri, tudo que é estilo
em Bartas passa a ser apenas estiloso. Cada plano do
filme (com seus incessantes e francamente feios movimentos
em travelling lateral) parece ter um luminoso em cima
dele, onde se lê por vezes "plano genial"
e por vezes "plano chocante". Difícil
ver qualquer um dos dois no filme, que revela apenas
um profundo tédio com o fenômeno humano.
Curioso que o filme pareça quase sempre uma evocação
do cinema de Lucrecia Martel (inclusive uma das atrizes
principais era também de La niña santa),
porque isso traz de novo à tona a questão
do talento: se Martel consegue sempre um feito impressionante,
que é esconder todo um trabalho incrível
de elaboração de linguagem do cinema por
trás de uma "verdade" que emana de
cada uma das suas personagens, Carri parece sempre estar
tentando revelar a verdade sobre estas suas personagens,
e só conseguimos ver a linguagem do cinema tentando
ser usada pra isso. Bastante difícil explicar
como se dão estes dois momentos, o inegável
porém é que se dão. Claro, com
um elenco escolhido a dedo pra isso, não se pode
negar que o aspecto "tesudo" do cinema de
Martel se reproduz aqui (as cenas de sexo são
realmente boas), mas o aspecto humano nem um pouco.
E, qualquer dúvida que tenhamos sobre isso se
esvai com a catarse final, patologizante (como todo
o filme disfarçadamente é). Carri faz
cinema de autor mas, infelizmente, não é
autora.
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Crying fist (Ju-Meok-I-Woon-Da), de
Ryoo Seung-wan, Coréia do Sul, 2005 - Quinzena
dos Realizadores
Umoregi (The buried forest), de Kohei
Oguri, Japão, 2005 - Quinzena dos Realizadores
Na prática, e logo explico o porquê, eu
não posso analisar a sério e a fundo os
dois filmes. Mas analiso então seu efeito sobre
mim, rapidamente: Umoregi é quase uma
pesquisa visual-narrativa de Oguri sobre tanto o uso
da HD como formato de captação e das possibilidades
de alteração e efeitos digitais criando
uma possibilidade de mistura entre realidade e fantasia,
fábula e registro; Crying Fist é
um conto de redenção em duas partes simultâneas,
um filme de boxe (quase sempre espaço da redenção,
como em todos os filmes de esporte) que é também
um melodrama. Nos dois casos, e daí vem minha
impossibilidade, os filmes me deixaram eminentemente
desinteressado, e por isso mesmo, em ambos tirei um
considerável cochilo - embora tenha voltado a
eles depois, e acompanhado até o fim. Não
me atrevo portanto a sair analisando os filmes, mas
digo o seguinte: neste momento de busca por algo que
me faça perder o chão um pouco, nem a
fantasia solta de Oguri conseguiu me parecer
mais do que uma simples (embora simples talvez seja
realmente a palavra errada) exploração
de linguagem por ela mesma, nem o filme de Ryoo conseguiu
ser mais, para mim, do que uma mistura de Zefirelli
com Iñarritu (embora, claramente, ele parecesse
estar tentando algo mais como uma mistura de Douglas
Sirk com Scorsese). Talvez seja efeito dos dias e dias
de filme, mas foi assim que a coisa "bateu".
Eduardo Valente
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