Caché,
de Michael Haneke, França/Áustria/Alemanha,
2005 - Competição
Os amigos (em especial Kléber Mendonça
Filho, que tanto respeito) vão me desculpar,
mas Caché mal chega a ser um filme,
que dirá um filme bom. E, antes que se possa
dizer que eu sou simplesmente pré-concebido quanto
a Haneke, lembraria que isso é mentira, já
defendi aqui na Contra o Código Desconhecido,
gosto do Funny Games, e não acho o Temps
de loups ruim não (embora não defenda
como os outros aí citados) - mas, é verdade,
eu acho o La pianiste chato pra dedéu...
O caso com Caché é que ele só
tem uma idéia cinematográfica em si, e
ela está toda gasta no seu primeiro plano, onde
Haneke questiona o estatuto da imagem a que assistimos
com um inteligente artifício de "rebobinar"
a imagem que até lembra o Funny Games,
embora com significados completamente distintos. Ali
há até uma excitação, uma
vontade de ver onde aquilo vai dar. Mas, voilá,
pra mim o filme termina ali mesmo. Sai a ficção
da perseguição, e entra uma longuíssima
exploração da consciência culpada
européia perante os países colonizados
(em especial a francesa com os argelinos, mas claramente
ele quer falar de "algo mais") - só
que exploração essa que de cinematográfica
não tem nada. Seus personagens não merecem
este nome porque são só modelos de bonecos
que ficam passeando na tela (numa filmagem em digital
que, pra sermos gentis, chamaremos de displicente),
explorando uma mesma longa idéia: "caralho,
fizemos merda". O problema deste raciocínio,
em si um tanto primário, é que ele precisa
de um espectador com igual complexo de culpa social
pra funcionar. Mas, como a reação geralmente
positiva ao filme pode comprovar, ele certamente pode
contar com este espectador presente.
O meu problema não está nem um pouco com
a tentativa de misturar conteúdo social com cinema
de ficção, mas sim na maneira absolutamente
banal com que Haneke se dispõe a jogar fora sua
própria fabulação em nome de uma
ou outra vontade de, digamos, "causar espécie".
Portanto, se a cena "choque" do filme (que
não vou descrever aqui porque ninguém
pode ver o filme tão cedo, e ela só acontece
quase no final) é uma das mais deploráveis
sequências passadas no cinema em muito tempo,
isso se deve menos a qualquer "exposição
da violência crua" e sim pelo simples fato
de que sua presença no filme é tão
gratuita e planejada simplesmente para o choque - e
também pela maneira como a câmera se posicionou
o tempo inteiro perante os dois personagens que a protagonizam.
Para se ter uma idéia de como o filme é
fraco, e aí fica uma contradição,
como pode um "character piece" centrado
o tempo todo em Daniel Auteil, mas também com
Juliette Binoche um tanto presente, nunca ter sido sequer
considerado (nem pelos defensores) para os prêmios
de interpretação em Cannes? Pelo simples
motivo que não há atuação
aqui presente, há "sleepwalking",
onde o que importa é chamar a atenção
(e dá certo, como se vê pelo prêmio)
para o verdadeiro "artista", ou seja,
Haneke.
"Mas Haneke é um provocador!, ele causa
espanto e faz as pessoas reagirem...". Verdade...
como aliás qualquer um que tirasse a roupa em
público também seria e causaria. Já
diretor de cinema ele até é de
vez em quando, mas em Caché abriu mão
totalmente. Se não, como explicar que, justamente
aquela boa idéia inicial citada, passe completamente
não-explorada pelo resto do filme, trocada pela
barata exploração da culpa social (quão
barata? putz, a quase colisão com a bicicleta
do negão na saída da delegacia de polícia
parece cena de peça teatral infantil), somada
a uma tentativa de dar "relevância mundial
ao filme" (o enquadramento de uma discussão
caseira entre Auteil e Binoche com a TV em quadro passando
notícias do Iraque e da Palestina é tooooosca).
"Cinema da paranóia", né?
Pra mim, isso é Lynch na primeira parte de Lost
Highway. O cinema de Caché é
só o cinema da expiação - pode
até colar, mas não gruda.
Só não é pior que o filme do italiano
Marco Tulio Giordana (embora façam um fascinante
díptico "culpa social-piedade"
como forma de lidarmos com as diferenças sociais
e históricas entre países e povos desenvolvidos
ou sub), mas também porque o filme do Giordana
é uma autêntica chanchada do sofrimento
social. Haneke, mesmo nos seus momentos mais "self-appointed
provocateur", ainda tem um mínimo de
noção. Neste filme aqui, bem mínimo.
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Free Zone, de Amos Gitai, Israel/Jordânia/França,
2005 - Competição
A bem da verdade, a impressão que se tem assistindo-se
a Free Zone é que Amos Gitai ainda não
escreveu de todo o roteiro de seu novo filme, ou pelo
menos ainda não conseguiu solucioná-lo.
Claro, trata-se de um filme sobre a confusão
que é a vida das pessoas vivendo no meio do conflito
do Oriente Médio, da sequência entre atos
de violência impressionante e a banalidade da
vida no dia a dia, mas ainda assim há que se
esperar um mínimo de organização
que ultrapasse a isso. Não é de impressionar
a "fuga" de Natalie Portman, que desertou
da defesa do filme em Cannes ao ver o que havia ficado
do seu personagem: após um plano inicial realmente
pungente com ela, sua personagem torna-se uma menina
curiosa que vaga entre os personagens israelenses e
palestinos do filme, tentando entender um pouco o que
se passa com cada um, ficando sempre como um meio termo
entre eles (e Gitai encena de fato um plano no carro
com as três mulheres principais do filme, cujo
único sentido parece ser tornar esta metáfora
do posicionamento intermediário de Portman algo
físico), mas sem nunca conseguir ser um personagem
de fato.
Gitai ainda encena alguns estranhos flashbacks contextualizadores
que são apresentados numa forma um tanto enigmática
de fusões com os planos do presente, o que cria
um efeito visual até certo ponto cativante, mas
que a título de narrativa ajuda muito pouco uma
história que, aparentemente, deseja-se mesmo
confusa (ou, seria provavelmente o que ele diria, "inconclusiva").
Na verdade o filme é uma sequência de deslocamentos
entre Israel, Jordânia, e a chamada Free Zone
do título, onde descobrimos os dramas ligando
três famílias de personagens, mas que no
fundo são somente a desculpa para apresentar
o conceito básico de Gitai: o surrealismo por
trás da briga eterna em Israel. Algo que, aliás,
ficava já bem claro com a canção
que abre o filme (sobre o rosto de Portman) e que voltará
para fechá-lo. Gitai certamente diria que quis
realizar apenas uma parábola sobre a circularidade
eterna do conflito no Oriente Médio - mas não
se pode dizer que ele tenha conseguido trazer nada de
realmente novo com esta parábola pra um tema
que tanto e tanto temos visto explorado em todos os
meios de expressão recentes.
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Shanghai Dreams, de Wang Xiaoshuai, China,
2005 - Competição
O letreiro final, dedicando o filme aos pais do diretor,
que teriam vivido a mesma situação sócio-política
dos personagens do filme (trabalhadores que foram enviados
das grandes cidades chinesas para o interior para trabalhar
nas indústrias nestas pequenas cidades), explica
bastante do tom respeitoso e ao mesmo tempo extremamente
"comportado" de Shanghai Dreams.
Mesclando um (já tão visto) realismo no
seu registro com pequenos e eventuais arroubos simbólicos
delicados (os homens em capas de chuva escuras saindo
da indústria, o sapato vermelho que ilustra um
estupro), e uma história eminentemente melodramática
dos conflitos entre pais e filhos, o filme é
correto o tempo todo - sem ser brilhante ou equivocado
o suficiente para adquirir maior interesse. Para os
estrangeiros, o único ponto mais interessante
é conhecer um pouco mais desta história
chinesa, saber um pouco sobre a tensão dos que
moram forçadamente no campo, sonhando com a volta
para a cidade grande. Ou ainda perceber como um filme
passado no início dos anos 80 no interior da
China tem uma leitura (tanto visual quanto temática)
muito próxima das narrativas ocidentais dos anos
50 ou 60. De resto, um filme para não despertar
maiores paixões, e que mostra, ao levar o Prêmio
do Júri por cima de um Batalla en el cielo
ou um Election, que o júri realmente
apostou nos "acordos possíveis" ao
invés das afirmações "fortes".
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Um rápido balanço final da Competição
(com a única ausência de Sin City
entre os filmes exibidos) poderia falar de temas (paternidade
predominando - mas quando não é o caso?)
ou de cenas marcantes (sexo a dar e vender, momentos
violentos), mas isso seria apenas banal. A diferença
principal que pareceu se desenhar, segundo meu olhar
um tanto parcial, é de um lado entre os filmes
que querem dar conta dos grandes temas, que se consideram
os filmes "relevantes", e que na maioria das
vezes assassinam o que o cinema, e especialmente a fabulação,
podem trazer de único para a expressão
humana e/ou artística (onde eu colocaria com
maiores ou menores qualidades Caché,
Bashing, Quando sei nato..., Free
Zone, Kilometre Zero, Shanghai Dreams);
e do outro lado os filmes que ambicionam tirar a sua
relevância não dos "grandes temas",
mas sim de filmar o mundo com curiosidade e atenção,
antes de tudo, para os corpos e seres humanos que habitam
em frente a câmera, criando uma existência
que só pode haver no cinema, no jogo de sons
e imagens (e onde eu colocaria Last Days, Broken
flowers, Three Times, Conte de Cinéma,
Peindre ou faire l'amour). Existiu ainda um
terceiro grupo, é fato, daqueles filmes que falam
antes de tudo do cinema mesmo, seja através do
jogo com os gêneros, seja através de sua
exploração radical da linguagem (podemos
mencionar aqui Where the truth lies, Don't
come knocking, Election, Batalla en
el cielo, e sem medo de colocar sem ter visto,
Sin City - embora tanto o filme de Reygadas
quanto o de Johnny To possam dar muito mais pano pra
manga que o de Egoyan ou Wenders, sob qualquer aspecto).
Mas também é fato que faltam aí
em cima três filmes que talvez consigam escapar
desta qualificação (que como qualquer
outra, é limitada e limitadora), porque poderiam
ser encaixados por pessoas diferentes em grupos diferentes
- L'enfant (que filma o tema da exclusão
social e da marginalidade mas pela chave do ser humano
como foco), A history of violence (um exercício
de gênero que não perde a atenção
dos dramas dos seus personagens nem das ramificações
temáticas profundas do seu tema), e The three
burials of Melquiades Estrada (que talvez seja
o filme que mais atravessa as três categorias
citadas, e que talvez por isso mesmo não consegue
de todo dar conta de tantas ambições -
mas quando erra, continua interessando).
Eu acabei de ver o último filme do Festival há
menos de vinte minutos, então não me peçam
que entenda o que exatamente eu quis dizer com essa
separação e observação das
ferramentas que cada filme optou por utilizar, porque
eu realmente ainda não refleti muito mais acima
da percepção desta diferença clara
de olhar para o mundo. O que eu sei é que os
filmes do grupo 3 conseguem me interessar de maneira
estética-abstrata eventualmente com muita força,
enquanto os do grupo 1, no geral, me causam profundo
tédio (com as já citadas gradações).
Agora, os filmes que seguidamente me falam mais ao coração
ou ao olhar, o cinema que realmente mexe comigo, vêm
sempre do grupo 2 - ou no máximo dos filmes-fronteira
que passem pelo olhar do grupo 2 como dispositivo principal
de chegar aos outros objetivos. Isso sim, a cada Festival
que passa, eu fico mais certo.
Bom, obrigado aos leitores pela atenção,
e ao Daniel e ao Ruy por ajudarem a dar conta de colocar
no ar estas linhas mal-traçadas todo dia. Da
sala de imprensa completamente vazia das 22h30 de domingo,
me despeço de Cannes - e escrevo de novo de Paris,
a partir de quinta, sobre a Quinzena dos Realizadores
e o que faltou da Un Certain Regard.
Inté.
Eduardo Valente
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de Cannes
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