Pois é,
estranhamente o Festival de Cannes começou em
Paris, para mim. Isso porque o filme de abertura, enquanto
passava hoje em Cannes numa sessão de pompa e
gala, já estava sendo exibido nas salas comerciais
de Paris desde o meio-dia de quarta. Trata-se de uma
equação um tanto esquisita, mas que tem
muito a ver com o filme - o qual eu fui ver hoje, então,
numa sala parisiense mesmo, já que só
parto pra Cannes amanhã. Nos últimos anos,
a noite de abertura do Festival sempre tem exibido um
filme, fora de competição, que faça
algum tipo de concessão comercial ao mesmo tempo
que mantenha uma certa dignidade festivalesca (ainda
que alguns precedentes não tenham sido considerados
tão dignos assim). Lemming, o novo filme
do diretor de Harry Chegou para Ajudar, compõe
a categoria ao pé da letra, exceto por estar
em competição - o que pode se dever à
difícil tarefa que a comissão de seleção
parece ter tido em encontrar competidores franceses.
Moll ganhou notoriedade com Harry, um filme que
fez enorme sucesso de público na França,
depois de ser bastante elogiado em Cannes como um "produto
comercial de qualidade". É engraçado
que tenha circulado hoje uma entrevista de Moll mostrando
um profundo desprezo tanto pelo ritual do Festival quanto
pela sua premiação, mas reconhecendo que
o Festival ajuda bastante (especialmente na França)
comercialmente um filme. O fato do filme ser lançado
no mesmo dia que passa em Cannes parece deixar bem claro
que era isso mesmo que todos os envolvidos queriam:
uma janela pra impulsionar o lançamento comercial,
o que certamente conseguiram ao julgar pela quantidade
de matérias que circularam hoje sobre o filme
e pela sala cheia numa quarta à noite. Lemming,
parece, usou bem o Festival. Mas, e para o Festival,
de que serve Lemming? - discutiremos isso a seguir.
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Lemming, de Dominik Moll (França, 2005)
- Competição - Filme de Abertura
Moll parece querer radicalizar com Lemming sua
opção que Harry já denunciava:
a de exercitar-se no "filme comercial de autor".
O que isso significa exatamente? Um filme que atenda
a uma série de pressupostos de identificação
do público (clareza narrativa, astros do cinema,
jogo com os gêneros), mas ao mesmo tempo queira
sempre ter um "quê a mais". Pois é
justamente no quê a mais que Moll se embanana
o tempo todo, e ficamos sempre pensando como ele podia
ser melhor se simplesmente se contentasse em fazer um
filme de gênero. Lemming expele referências
e influências de cada fotograma: uma pitada de
De Palma aqui, um punhado de Polanski acolá.
De fato a melhor maneira de descrever sua narrativa
seria uma refilmagem da primeira parte de Lost Highway,
misturada com o Sitcom de François Ozon,
sendo isso escrito por Edward Albee e filmado pelo Stanley
Kubrick - de De Olhos Bem Fechados (sim, é
para soar mesmo quase tão ridiculamente clichê
quanto aqueles falsos pitchs de roteiro que Altman mostrava
em O Jogador). E é especialmente doloroso
ver isso na tela porque Moll transfigura diferentes
idéias e obsessões de cada um destes cineastas,
sem nunca tornar nenhuma delas suas de fato - filma
a quilômetros de distância do seu objeto.
De fato, é muito sintomático que o nome
do filme se refira a um roedor parecido com um hamster,
porque Moll filma seus personagens como cobaias de algum
estranho experimento cinematográfico. Experimento
que falha tanto mais pela obsessão que toma o
cineasta e faz com que ele queira que cada plano seja
"brilhante", cheio de sacadas de luz e som
- só que ele não se dá conta que
as "sacadas" são as mais óbvias
possíveis (um personagem que vai penetrando na
escuridão de seu caráter caminha por uma
estrada até sumir na escuridão de um túnel
- uuuuuuhhh). O filme logo se torna interminável,
porque Moll teve tantas boas idéias vendo filmes
dos cineastas citados, que quer usar todas num mesmo
filme, se possível - o que não é
possível.
É uma pena, porque se o filme eventualmente parece
realmente ter algumas boas idéias (como a câmera
voadora), ou alguma força nos atores (uma Charlotte
Rampling sempre emocionante, um uso de Laurent Lucas
muito semelhante ao de Cruise por Kubrick - e funcional),
ele vai perdendo força a cada sequência,
e no final já estamos fora do filme muito antes
dele acabar (com Dream a little dream of me -
uuuuuuhhhh...). Lemming definitivamente é
da galeria dos filmes em que coçamos a cabeça
e nos perguntamos: eles viram 1.500 filmes, escolheram
vinte, e ESTE é um deles?? Um autêntico
filme de abertura, sem dúvida, mas um péssimo
competidor...
Eduardo Valente
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