CORAÇÃO TORTURADO
Emilio Fernández, Bugambilia, México, 1944

A partir do amor impossível e proibido entre Amalita de los Robles (Dolores Del Rio), filha mimada do poderoso caudilho Dom Fernando (Julio Villarreal), e o capataz Ricardo Rojas (Pedro Armendáriz), em pleno México do século XIX, Emilio "Indio" Fernandez, antes de construir, em Coração Torturado, o simples melodrama de época pautado sobre as disparidades sociais que afligem os amantes, adentra, como sugere a possível relação incestuosa do patriarca com sua herdeira, na tragédia e na loucura de uma elite social corrupta e decadente que consome a si mesma.

Em Coração Torturado, Emilio Fernandez se desnuda da roupagem consagrada de seus melodramas, estabelecida em filmes como Maria Candelária: ao contrário das áreas rurais, cenários urbanos; ao invés da classe pobre e marginalizada indígena, a casta criolla que domina a política e a economia mexicana desde o período colonial. Na sociedade cindida que se representa na tela, onde brancos e índios, ricos e pobres, exploradores e explorados se digladiam, a única ameaça concreta ao poder exercido pelos senhores da terra não se encontra na quase inexistente capacidade de luta e de mobilização das camadas populares, há séculos humilhadas, mas na própria devassidão da elite que, cega e insensível às demandas sociais, caminha rumo à autodestruição, pois não se preocupa com nada além do imediato dia-a-dia das suntuosas mansões em que habita, isolada do restante do mundo.

A paixão de Amalita de los Robles pelo capataz Ricardo Rojas – encontro forçado pelo desabamento da mina que, ao soterrar os trabalhadores, gera animosidade contra Dom Fernando –, assim, não se constitui sozinha no motivo principal dos acontecimentos em Coração Torturado, mas sim em uma das pontas do triângulo amoroso que, por sua vez, propicia o desenrolar trágico da narrativa, bem como o subtexto que abarca o declínio moral das ricas famílias dos hacienderos, criollos (brancos, descendentes de espanhóis e nascidos na América) que detêm o poder no México já durante a administração colonial. Não é o amor paternal que leva Dom Fernando a controlar a vida amorosa da filha: trata-se, na verdade, do ciúme doentio (que aproxima Coração Torturado de O Alucinado, de Luís Buñuel) enquanto amante preterido que o impulsiona ao assassinato de Rojas, seu concorrente.

A possessividade, que conduz ao isolamento e à degeneração, pois a relação incestuosa entre pai e filha, em Coração Torturado, expande o trauma desestruturante conseqüente das instâncias psicológicas pessoal e familiar para remetê-lo à autofagia de toda a classe dominante, que, ao se reproduzir apenas internamente, propaga e intensifica os genes anômalos que causam tanto a deformação quanto a morte. Nos cenários e na decoração luxuosa, porém vazia, dos interiores, nos vestidos rebuscadíssimos de Dolores de Rio, nos intrincados movimentos da câmera de Gabriel Figueroa (que denunciam a si próprios através da extrema artificialidade, como em Max Ophüls) – cujo tom épico da iluminação não concorre para a mitificação de um herói nacional mexicano, mas antes reforça a inutilidade e, em conseqüência, o desespero dos atos dos personagens e das ações presentes na narrativa –, os sintomas derradeiros de uma elite social que, ao se encastelar para sobreviver, paradoxalmente perde os caminhos da História para se tornar mero fantasma, sombra que evoca somente o passado, sem presente e sem futuro possíveis.

Com o assassinato do amante e o suicídio do pai, que assim preserva a honra da filha no julgamento, Amalita de los Robles, em Coração Torturado, está condenada à morte em vida, como a casta que representa: esperando o tempo passar, trancafiada sozinha na imensa mansão deserta, resta-lhe apenas tocar enlouquecidamente o piano... que ninguém irá ouvir.


Paulo Ricardo de Almeida

 

 





Coração Torturado (1944)