O PESO DE UM PASSADO
Sidney Lumet, Running on Empty, EUA, 1988

Eles e Lumet

O essencial sobre O Peso de um Passado é o fato de o filme começar e terminar da mesma forma. Aliás, quase da mesma forma. O que há no começo e no fim é um movimento tático. Um programa, acredita-se já há muito formatado, de mobilização coordenada para a desocupação e para a fuga. Observamos nos dois momentos, e sobretudo no primeiro, uma certa coreografia do fugir. E quem está fugindo é uma família: temos um pai, uma mãe, um filho adolescente e um outro, pirralho. "Fogem de quem, do quê?": seria a pergunta apropriada. Na primeira fuga, são dadas para nós as imagens que resolvem a questão. Contornando silenciosamente o quarteirão da casa dos McNally, alguns carros pretos. São objetos motorizados meio fantasmagóricos. Os rostos dos condutores são incertos, borrados, ou simplesmente não aparecem. A família quase militarmente monta e executa sua estratégia de fuga e dá no pé.

Somos informados, ao longo da narrativa, que se trata de uma família infratora, aliás, de pai e mãe infratores. Engajados no início da década de 70 em grupos radicais de esquerda contra a guerra do Vietnã, colocaram um artefato de sabotagem ou explosão em algum lugar. Ele, judeu do Brooklyn, ela, filha de um industrial poderosíssimo, tinham já o primeiro filho no colo, mudaram de nome e continuaram a vida mais ou menos ligados a certas causas, mas acima de tudo existindo como família. Sempre fugindo "wanted" pelos Estados Unidos, em disfarces que se modificavam sempre.

Mas voltando à conexão entre as imagens inaugurais e aquelas que encerram O Peso de um Passado, já no fim do filme, em que ocorre o mesmo tipo de organização tática, não temos a imagem sombria do perseguidor. Não temos mais espectros negros motorizados. A família se mobiliza sem essa, diríamos, injeção visual do medo. Aliás, a imagem da instância da lei, essa instância graficamente amedrontadora e sugestiva que acossa a tal família e, supomos, a persegue por onde vai, é abandonada pelo filme desde a primeira fuga, desde o passeio mórbido dos carros em torno da casa, quando é, importante registrar, vista pelos filhos menores (e só por eles, mas por nós também, através de planos meio "sussurrados", como se estivéssemos, nós mesmos, ameaçados). Nunca mais a vimos.

Mas é aí que a pergunta mais apropriada muda. De "fogem de quem, do quê" para "Fogem com quem?". Fogem com o gestor da imagem, com Sydney Lumet. Porque para Lumet, no filme, não haverá procedimento mais importante do que este. Se fechar com câmera no regime familiar, ou em suas variações fora da casa. Construir através do exercício cênico o sentido de "acompanhar", em qualquer circunstância, essa família, se limitando ao espaço de visualização e ação acessíveis a essas pessoas. Se a imagem da instância que persegue nunca mais aparecerá, estará excluída do filme, é porque Lumet entrou nesse regime familiar e, tão acossado quanto, tão amedrontado quanto, não saiu mais. O fato desses agentes nunca mais aparecerem nos mostra, ao final, que a câmera sempre esteve soldada nos personagens em seus percursos e em seus ambientes. A diferença do que aparece nos planos do início e do final nos fazem compreender aonde sempre esteve o olhar de Lumet.

Está bem claro: se o filme e a câmera começam externamente, na observação por vezes até meio "técnica", fria, do movimento tático de fuga da família, O Peso de um Passado será sobre o ato de entrar em casa, se internar. Entrar na nova casa dessa família – nem chegamos a conhecer a original, o lugar que os McNally habitavam no momento em que os reconhecemos, na partida, como personagens cuja "base" foi descoberta em algum ponto dos EUA (aliás, não serão mais McNally, existirão agora como os Manfield, em uma outra cidade); entrar na nova casa e se internar também em seu novo planejamento e fluxo de movimentos cotidianos, pactos coletivos ou institucionais: seja com o trabalho, com o colégio. Ou seja, O Peso de um Passado nunca está no domínio da "grande" história americana (sabotagem e militância de esquerda perpetuada desde a Guerra do Vietnã), que marca toda o esqueleto do enredo que se forma em torno dos personagens, ou de qualquer um de seus agentes. Se tornará uma história de vizinhança, de província e de cotidiano familiar, escancarada justamente pela opção de se filmar apenas essas esferas, em seus limites.

Nesse sentido, uma das tarefas desse gestor da imagem da família (Lumet), uma tarefa primordial, é a captação da ambiência que se forma no novo mundo dessas pessoas. Uma cidade perto do mar, mas com tons verdes de bosques e pequenos recantos campestres. Perto do raio metropolitano, mas ainda assim provinciana. Mais perto do complexo "funcional" da cidade, o colégio, com paredes e "olhar" (ao qual é submetido) bem anos 80, pelo qual transitará o personagem principal do filme, o filho mais velho, vivido por River Phoenix. Se a mise en scène é estruturada primeiramente na idéia de infiltração, alienada do resto do mundo, no ciclo de convivência e interação da família com um novo lugar, que se registre este lugar. Que entendamos que novo lugar é este que cerca a família, em sua pele, em suas locações e mesmo em sua face de engenharia cenográfica (a parte verde, sobretudo).

Tão importante quanto o aspecto de situação e de interação, há outro, também fortemente nutrido por essa ambiência e pelo trânsito de Lumet por ela. O cuidado na composição e no contato com essa ambiência vai fazer florescer um dos pontos mais especiais do filme, que é o romantismo adolescente. Em chave quase Mulliganiana (aliás, Robert Mulligan faria anos depois seu último filme, No Mundo da Lua, que guarda algumas semelhanças com este de Lumet), Lumet constrói, em 1988, uma história de amor cujo romantismo é provinciano - colorizado e projetado por essa ambiência meio híbrida, meio folk-paradisíaca - e também anacrônico: tanto pela conjugação dos cenários "abertos", nitidamente herdada de um imaginário "antigo" de paisagens do cinema americano, incluindo o aparato de luz que a faz se manifestar, quanto pela inserção deste romantismo no tempo.

É um romantismo – de idilismo, doação e convicção extremados, com uma porção de rebeldia indômita e purificada pela leitura de Lumet sobre os personagens de River Phoenix e da filha de seu professor de música no colégio - que remete certamente a "cinemas velhos"; um romantismo que sobretudo propõe uma dimensão sentimental, corporal e cênica desviada de "1988". Lumet parece querer nos guiar anacronicamente, numa espécie de "reartesanato", e, para que esse sentido tenha função na tela, a metodologia de processamento da ambiência, nas suas trocas com a expressão afetiva e lírica dos personagens, será chave.

Um grande tema aqui é exatamente o das existências provisórias. A existência Manfield, por exemplo. Expliquemos: ao longo de uma existência maior, a própria vida, que pressupõe fatores de identidade que não podem ser ludibriados intimamente, algumas existências menores, provisórias - engendradas exatamente para ludibriar os mecanismos de controle sociais. A família, há anos, cumpre o mesmo ritual, de tempos em tempos: fuga, pesquisa em obituários, troca de nome; encontros secretos para obtenção de novos "veículos da família", novos documentos, roupas, nova casa, novo animal de estimação, novo emprego; nova formação universitária ou colegial (um dia acorda-se como jornalista ou professor, no outro como cozinheiro); novo cabelo, novos olhos, novo nome.

Aqui, nesse jogo das existências o projeto de Lumet e do roteiro trata menos da exploração do tema da flutuação, da migração, de identidades e muito mais do peso de se lidar e se naturalizar com a idéia de construção, para efeito oficial, de uma nova identidade. O filme talvez verse sobre isso, a relação das pessoas com esses seres novos (elas mesmas, no mais), protocolares, sem história, mas abraçados como portadores de alguma história a partir desse momento; a fragilidade das pessoas (as matrizes, diríamos) submetidas aos expedientes, duros, que envolvem essa continuada reconstrução.

Nessa via da fragilidade e do fardo silencioso da reconstrução da identidade, outro mérito do diretor será o de capturar a delicadeza que envolve a idéia de esconderijo e sobretudo a de um certo teatro do esconderijo. Um teatro baseado em um nomadismo das relações de vizinhança e dos laços, fadados a artificialidade, com os estatutos da comunidade, já que há um prazo, indeterminado, mas impreterível, envolvendo tais laços e relações.

Assim, a dramaturgia, sobretudo aquela estabelecida dentro da casa em que passam a viver os Manfield, se apóia geralmente na fragilidade dos disfarces, na fragilidade dos corpos submetidos a uma agenda de transformações abruptas (barba, vestuário, acessórios, como lentes ou tintas de cabelo) e na fragilidade existencial que se origina a partir daqui. Uma dramaturgia que parece radar de uma adaptação constante, nunca completada. Por isso mesmo, dolorosa. Uma dramaturgia da dor coberta (principalmente) e do desconforto. Porém, quando bem observada, também uma dramaturgia regulada por sentido quase otimista de união (união quase regimentar, afinal tem-se nela o princípio de sustentação dessa edificação chamada família), uma união do "ir levando juntos do jeito que der", que no mais forma os vínculos dessa família.

E temos de notar: uma união tão sutilmente colocada no jogo por Lumet. Pois se ela á a regulagem da vida das pessoas na casa e do próprio jogo dramático, é ela também geradora do conflito maior. É o dilema de seguir junto ou seguir com a própria vida (havendo condições para tanto): o dilema do personagem de River Phoenix.

River Phoenix respeita o vínculo, respeita acima de tudo a necessidade de seu papel na prolongada farsa que rege a vida de sua família. Mas também sente a necessidade de se fixar, criar raízes longe da raiz, a família que depende do constante "desenraizamento" para sobreviver.

Daí é que percebemos que nessa complicada safra de sua carreira (certamente o período mais baixo do diretor), Lumet estava trafegando num mesmo terreno.

O Peso de Um Passado e Negócios de Família, lançado um ano depois, dialogam através da idéia da constituição familiar "alternativa", ou anômala, não só como modeladora dos jovens membros, mas como destino que vai (pode) levá-los a algum tipo de aprisionamento. São os dois filmes de Lumet que se sustentam a partir da "história familiar", da fidelidade ou da piedade dos mais jovens em relação a essa história, e do preço do vínculo.

A diferença é que a engenharia de O Peso de um Passado, embora seja inconfundivelmente Lumet (até naquilo que há de pesado em sua batuta), parece ter algo de especial, talvez pelo sentimento aparente de se estar andando e fugindo por aí com esses personagens. No caso do próprio diretor. É, dentro de sua carreira, um dos filmes mais ferrenhamente devotados aos personagens, ao universo cênico e às operações dramatúrgicas que propõe; um dos filmes mais cúmplices de seus possíveis exageros também (uma cena em que a família canta e dança, vestida à caráter para uma festinha de aniversário, James Taylor - a canção é Fire and Rain - é de um radicalismo da ternura quase constrangedor de tão belo) e muito provavelmente um dos grandes filmes feitos nos Estados Unidos em 1988.

Claudio Szynkier

(DVD/VHS: Warner)