UM ROMANCE MUITO PERIGOSO
John Landis, Into the Night, EUA, 1985

Um Romance Muito Perigoso poderia muito bem ser uma espécie de centro secreto da carreira de John Landis. Centro secreto: aquele filme que geralmente nunca é tido como um dos principais filmes do diretor, às vezes é admirado por muitos mas jamais considerado típico, mas que mesmo assim consegue iluminar os principais aspectos da carreira do artista como nenhum outro. E por que este filme, no meio de tantos outros, ocuparia esse posto? Uma primeira possibilidade: por ser o filme de Landis que em seu começo mais parece dissociado de qualquer experiência com o gênero, um filme entregue ao macrogênero do drama humano. Quatro imagens de Jeff Goldblum revelam sua personalidade cindida, um retrato frio e seco de café da manhã a dois terminado por um beijo na testa e um "have a nice day", imagens de desconhecidos tristes ou enfurecidos tomadas durante um engarrafamento no caminho para o trabalho, as agruras de permanecer acordado fazendo tarefas soporíferas ou estando presente em reuniões com o chefe. Mais liricamente talvez do em que seus outros filmes, Landis compõe com precisão e secura, em Um Romance Muito Perigoso, o retrato da vida no cotidiano do homem comum, indiferenciado, o personagem recorrente em seu cinema. Todo esse cenário existencial em que o início do filme nos instala é algo raro, não só no cinema americano. Ele nos instala num terreno apenas poucas vezes privilegiado pela arte, mas disseminado em nossas vidas (um exemplo anterior na obra de Landis: a passagem da tarde para a noite antes da transformação em Um Lobisomem Americano em Londres, espécie de remake landisiano de Meshes of the Afternoon) Uma proposta improvável, a de John Landis como maior poeta do ennui de sua época no cinema americano?

O título original diz "dentro da noite", e refere-se à jornada de um insone que vive geralmente o dia – as doze horas das vinte e quatro diárias em que somos iguais a todas as outras pessoas – e por uma série de coincidências adentra a noite protegendo uma beldade loira (Michelle Pfeiffer) de um grupo de gângsters iranianos (entre os quais o próprio Landis, num papel silencioso e hilariante) e que lhe acaba abrindo a possibilidade de adotar uma outra vida completamente diferente da que vivia. Intriga pra lá do comum, mas que em Landis adquire uma densidade própria de um poeta do tédio e da passagem do tédio para a aventura. Curioso que 1985 tenha sido o ano de mais outro filme com incursões de coincidências absurdas pela madrugada: Depois de Horas, de Martin Scorsese. Mas ali onde Scorsese vê a possibilidade de decantar a tensão urbana, a geografia da cidade, a tensão crescente do personagem e do filme, e, no limite, a redenção, Landis vê nessa poesia da madrugada uma oportunidade para mudança efetiva de registro, mas com a mesma manutenção de um olhar impassível, quase monótono para a progressão dos acontecimentos: Jeff Goldblum desarma o savak contando a ele a desgraçada história de sua vida, não apontando armas; a perseguição à amiga de Diana/Pfeiffer na praia assumindo uma neutralidade de filmagem em relação à ação que deriva muito mais da banalidade de gestos estúpidos e insensatos do que de algo que faça a marca dos filmes do gênero – o comentário de um vizinho para sua esposa vindo completar o sentido de algo abrupto e bizarro que irrompe no cotidiano alheio e provoca uma ausência de reação.

Qual é o valor de um instante? Como se passa de um registro de vida, modorrento e tedioso, para outro, ativo e vibrante? Essa mudança é ela mesma desejável, ou apenas uma fantasia? O filme não responde com uma tese, mas antes com diversas amostras que servem como hipóteses: o Cadillac do irmão de Diana, que ganha a vida fazendo imitações de Elvis Presley, em que está escrito "The King lives" (como ser "normal" dirigindo um carro desses?); um homem (Don Siegel) saindo constrangido de uma cabine de banheiro, e uma mulher desavergonhada (conforme o crédito final do filme) que sai da mesma uma dezena de segundos depois, diante dos olhos permanentemente mornos de Goldblum; uma enorme suíte de hotel aparentemente vazia, fazendo ressoar apenas o barulho da televisão, e que se revela o cenário de um banho de sangue entre quadrilhas; o antigo magnata boa-vida que vive agora estirado numa cama, inválido, incapacitado de dirigir qualquer um dos maravilhosos e caríssimos carros que ostenta na garagem. Situações que não passam de um escalonamento de ocorrências individuais que ilustram e relativizam o dilema do personagem central, e como a "mundanidade" de John Landis adiciona uma camada de pura especulação sobre a camada de thriller absurdo em que a história se desenvolve.

Espécie de O Mágico de Oz em que a personagem de Dorothy seria a exemplificação da insuficiência existencial de um determinado modo-de-vida (logo, engajamento social em algum nível, e isso sempre está de alguma forma presente, mesmo que de viés em Landis) e da tentativa de constituição de um outro, Um Romance Muito Perigoso trabalha o encantamento da madrugada de uma forma muito curiosa. Nada do mundo encantado que sai da cabeça de Dorothy, mas um mundo que não é exatamente o esperado por Ed Okin – desejoso de fugir de uma vida formatada que é mais aviltante do que a própria traição da mulher –, cujos deslumbres residem unicamente na maneira que têm de propulsá-lo para fora de suas expectativas de vida de então. É nesse sentido que o encontro com David Bowie é uma espécie de encontro mágico, que só serve para que alguém de dentro deste novo mundo entregue a Ed seu passaporte ("Você é bom nisso"), revele a ele sua vocação, aparecendo do nada e desaparecendo quando um carro de polícia se insinua pela avenida. Interlúdio brilhante que faz o filme confirmar a certeza dos passos de Ed, ao mesmo tempo que leva o desafio a um segundo nível: é preciso agora não mais fugir de sua vida (ou dos savaks), mas negociar seu lugar dentro do novo território. Uma vez que o passaporte está na mão, todas as senhas estão disponíveis. Não foi apenas um sonho: sua guia voltará para buscá-lo.

Ruy Gardnier

 

 







Dois retratos do tédio americano...


...e David Bowie apresentando aventura ao herói.