Não quero convencer
ninguém mas, se me perguntarem porque não
há eleições diretas para Presidência
há mais de um quarto de século eu responderei
(acreditem se quiser) que há pouco menos do que
isso o imaginário nacional foi ocupado por uma
manipulação de natureza escatológica,
muito mais do que escapismo ou válvula de escape,
é alienação 100% embrutecedora,
chamada novela. Não é arte, diga-se de
passagem, aqui não vai nenhum preconceito contra
uma fórmula (não há forma) de dominação
mental de 120 milhões de humilhados pela gratuidade
descartável do universo baixo entretenimento;
a fórmula deriva do folhetim, um gênero
igualmente periódico, alimentador de sonhos e
pesadelos descartáveis, mas com uma incomparável
qualidade artística e estilística que
a telenovela, infelizmente, não tem... Se tivesse
alguma qualidade de informação artística
ou cultural, com seu quarto de século de insistência
redundante, já teria apresentado. Afora o comportamento
(freqüentemente falso, deformado e classista) a
novela nada tem a ver com arte ou cultura. Já
o folhetim, seu antecessor em letra de forma, ao contrário,
muito tem a ver com a melhor literatura em certos casos
especiais (Machado de Assis escreveu Helena e
Yayá Garcia inicialmente para jornal,
tendo sido tipógrafo; igualmente Lima Barreto
publicou folhetins etc., entre nós).
No exterior, o teledrama
da televisão novayorquina dos anos cinqüenta
influenciou todo o melhor cinema polêmico da época:
The Left Hand, estréia de Arthur Penn
na direção, proveio de um sucesso eletrônico,
pontualmente dividido em capítulos que por sua
vez determinariam a fórmula fragmentária
de um novo tipo de cinema; Doze Homens e Uma Sentença
também proveio de um texto escrito especialmente
para a televisão, revelador de inúmeros
talentos como Paddy Chaiefsky de Despedida de Solteiro
etc.
Claro, lá fora
é diferente. Mas, aqui o que surgiu, além
de ibope e exploração sentimental de uma
platéia inculta e analfabeta?
De minha parte, lembro
bem das vexaminosas correrias em torno de Albertinho
Limonta e sua troupe por ocasião da vidiotização
lacrimejante da colônia via O Direito de Nascer.
Foi o início da "nossa" revolução
cubana: a cretinização de um veículo
e de uma sociedade em nome da exploração
comercial. Pouco tempo depois surgia também outro
vexame histórico: a passeata das mal-amadas,
manipuladas para derrubar um regime democrático,
com a desculpa de conter dois itens em que o regime
implantado iria bater todos os recordes de agressão
à opinião pública: a corrupção
e a inflação.
A televisão espontânea
morreu quando conheceu o video-tape, perdendo o sabor
inventivo de espontânea inquietação
– passou a ser "cozinhada" nas mesas de edição.
Com o predomínio da novela, ainda popularesca,
virou um prato feito para débeis mentais, devido
à pretensão provinciana de seus detentores.
No início da década de setenta, salvavam-se
os programas de humor e os instantes de liberdade de
informação, devido a competência
de seus apresentadores. No entanto, as novelas não
eram boas, mas pelo menos não eram tão
assépticas, modernosas e medíocres como
hoje em dia.
Não há forma
mas fórmulas: ti-ti-ti, fuchico, alcoviteiros.
E só... jogam conversa fora.
Atualmente, além
de só jogar conversa fora não há
conflito na novela. O apelo ao "plot" tenta justificar
o ti-ti-ti permanente. Na verdade, os personagens (às
vezes delineados por autores sensíveis e atores
talentosos) não lutam ou discutem entre si; freqüentemente
falam mal de um outro personagem fora de cena (geralmente
acabou de sair). Ora, falar mal da vida alheia com desculpa
da ausência não sustenta dramaturgia e
não há ninguém inteligente que
agüente essa apelação, além
do mais um péssimo exemplo para a fragilidade
mimética das crianças (eis também
uma das razões da apoplexia, afonia e inexpressiva
vacilação de milhões de débeis
mentais, vítimas inconscientes da lavagem cerebral
eletrônica, um veículo novo mas totalmente
dominado e falido em sua vocação de educação
ou informação progressiva, um crônico
mau exemplo para as novas gerações e aqueles
que ainda não nasceram mas já estão
sendo roubados pelo sistema de babilônia). Desse
jeito o veículo mais novo tornou-se o mais velho:
uma torneira aberta, inferior ao rádio (que exigia
certa concentração)... Não sou
contra as pessoas que fazem a televisão ser tão
mesquinha e devagar mas contra os preconceitos impostos
por uma minoria que não soube compreender o veículo.
Imitar demais a televisão americana só
poderia dar em cópia subserviente, colonialismo
provinciano ou macaquismo de auditório e, sobretudo,
em anacoluto e deformação pleonástica.
Quanto ao ganha-pão de atores e técnicos,
tudo bem. Se bem que a deformação aí
seja igualmente intolerável, considerando-se
que por ano despejam setecentos enlatados estrangeiros
e uma dezena de nacionais (os piores nacionais, típicos
desse modelo de ocupação da moda pelo
medo ou vice-versa, sempre excluindo a inventiva criatividade
de nosso cinema do presente ou do passado, do curta
e do longa, do bom e não só do ruim teor
transmitido eletronicamente). Não falemos dessa
área mas poderíamos falar. A deformação
formulizadora é a mesma: novela, cinemão,
enlatado, tudo "telefone-branco"... E o que tem a ver
isso com o fracasso das diretas ou a grande ausência
de uma verdadeira democracia representativa entre nós?
Tem tudo a ver. Só
um burro, ou um vidiota não percebe. Por quê?
A cada dia e noite milhões
de brasileiros são ludibriados pela gratuidade
ostensiva de cenários alheios à encenação,
em que a desejável ação interior
é substituída pela multiplicação
de coadjuvantes que só servem para encher lingüiça
ou – suprema descoberta da "modernidade" mais irritante...
– o império pouco criativo e previsível
do "merchandising" abusivo. Da arte moderna, os clichês;
dos efeitos cinematográficos, os defeitos televisivos;
da liberação de costumes, a coisificação
mercadológica. A fórmula antimágica
da novela brasileira só retira e expropria, confisca
o público, oprimido pelo custo de vida, sem pão
nem circo (mal servido pelo cinema, traído pelo
futebol, bombardeado pelo rádio) não tem
muitas opções senão suportar o
discurso, resistindo à saturação
pelo esquecimento de sua criatividade, negada há
decadas nas urnas, câmeras e microfones.
O povo brasileiro, tradicionalmente
espontâneo e inventivo, se esquece de sua famosa
intuição, bossa, sexto sentido através
do quê? A novela é um dos mais destacados
capítulos da história do desespero alienado
de um povo humilhado pela infeliz marcha dos acontecimentos...
Bate-bocas e têtes
a tete (reuniões) que só levam à
galinhagem pura e simples.
Resultado: a classe média
sobrevive sob a síndrome da passarela.
A população
não quer ver, nem ouvir com olhos e ouvidos livres,
mas tão somente ser vista, aparecer, fazer fama
para deitar na cama do sub-sucesso fácil, talvez
virar sub-super-star de uma hora para outra, trair sua
condição colonial, enganando aos outros
e, pior de tudo, a si mesmo. O brasileiro não
quer ver mas ser visto. Nem escolher mas ser escolhido
pelo sistema babilônico...
Macaquear é preciso...
Estão aí os videotismos, cacoetes e maneirismos.
Passar a perna, levar
vantagem, tirar proveito próprio explicam mais
a nação ocupada pela má-consciência
do que o complexo de culpa e a culpabilidade colonial
de autores (às vezes competentes, em luta contra
o aparelho repressivo no interior da produção/distribuição
do sub-produto pasteurizado, censura igualmente primária).
O videotismo é
total. Isso sem falar no provincianismo, redundância,
ausência de expressão e dicção,
mediocrização do ser humano, cretinização
da opinião pública, desacerto dos cortes
entre uma seqüência e outra, imposição
de bandas sonoras importadas de péssima qualidade,
mitificação da mediocridade, abuso de
autoridade e desrespeito ao próximo, nível
ginasiano da representação...
Não falaremos dos
comerciais porque aí o panorama é ainda
mais desolador.
A novela só não
é pior que o enlatado, igualmente gratuito e
agressivo em suas tomadas externas. Pelo menos, um atributo:
ensinou o público brasileiro a ouvir a ação,
devido às qualidades do som de freqüência
modulada que o cinema não apresentou. Afora isso
suas qualidades provêm exclusivamente do cinema.
Mas e o nosso mal-tratado cinema nacional – do qual
o veículo seguiu o exemplo, sem apresentar a
espontânea inquietação, sobretudo
dos anos sessenta – onde fica? Se você pensar
que um clássico como O Pagador de Promessas,
Palma de Ouro em Cannes, premiado em S. Francisco, só
foi projetado na televisão brasileira com uma
década e meia de atraso, dá vontade de
esquecer o assunto que deveria estar na pauta da, mísera
ou não, necessária Constituição
feita para salvaguardar direitos e obrigações,
sobretudo nas questões de trabalho e destinação
da informação nacional. Ora, tudo isso
é ficção; o máximo que fazem
é uma novela sobre o assunto e durma-se com um
barulho destes.
E no entanto o cinema
brasileiro faz noventa anos em 1988.
Não se esqueçam
que o velho e bom Irineu Marinho, além de corredor
de automóveis, foi cineasta: o que acontecerá
com documentos da vida moderna como Limite, O
Canto da Saudade, O Canto do Mar, Agulha
no Palheiro, O Grande Momento, Absolutamente
Certo, O Rei do Samba, O Bandido da Luz
Vermelha, Blá-Blá-Blá
e muitos outros (existem cópias e o público
está cada vez mais carente de verdadeira informação
filmológica)?
Que tal Viagem ao Fim
do Mundo, magnífico trabalho de 1967 assinado
por Fernando Campos? Deveria estar incluído entre
os filmes que precederam e assumiram o movimento de
1968.
O Anjo Nasceu é
de 1969 mas representa um tipo de revelação
que todos poderiam, pelo menos, tomar conhecimento e
vibrar com sua textura...
Biscoito fino na prateleira
é uma raridade generalizada no deserto de idéias
chamado mercado.
Da produção
à veiculação, talvez a única
possibilidade de afirmação da nacionalidade,
permitida pelo atual sistema babilônico, seja
a novela que, assim, apesar de feita por pessoal competente,
com autores ágeis e atrizes de expressão
não é, nunca será arte. O folhetim
jornalístico aproximava-se do romance e tinha
uma vida própria. A novela só copia, dilui,
deforma e dificulta a relação do homem
brasileiro com seu consciente e inconsciente. A perda
de tempo é imensa, se contarmos os períodos
de tempo em que a idiotia se transforma em convencionalidade.
Ela existe para fazer boi dormir, enganar os otários
e desviar a atenção do assunto principal:
acesso ao próprio mercado por parte de outras
artes industriais.
Em nenhum país
do mundo a televisão é tão centralizadora
e renitente em relação ao veículo
cinematográfico.
As televisões oficiais
são menos cumpridoras do seu dever e direito
de veicular o filme brasileiro de livre exportação
poética.
Enlatado por enlatado,
projetem-se as antigas chanchadas, por exemplo, aliás
muito mais modernas do que os pretensos modernosos.
Rogério
Sganzerla
(Cine Imaginário, maio de 1988)
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