ponto de partida avançado
subtítulo

Quando eu me refiro à necessidade de, por exemplo, o Senhor Presidente da República assistir aos nosso filmes ainda sem acesso ao próprio mercado – não penso somente em Sua Excelência prestigiar a um trabalho de grande diretor como Nelson Pereira dos Santos por ocasião da assinatura de contratos de exportação cinematográfica em Brasília. Não, somos boicotados há dez anos e temos que bradar: para achar a sua identidade o primeiro passo é conhece-te a ti mesmo, Brasil... Isto é, assistam nossos filmes; sejam mais ativos; eles desenvolvem a noção preciosa de formação conseqüente de novo homem/nova humanidade e por aí afora...

Leitor amigo, ponha-se na minha situação: o que fazer diante do arbítrio de incompetência treinada? Eu, que não sou burro, sempre soube que existe um boicote contra meus filmes. Falei demais? Saibam que por idealismo nunca calei-me diante do fato de intuir precocemente as coisas. Serei tão importante e ameaçador assim? Se fui considerado dos mais criativos realizadores do País, por que cuidadosamente não deixam ir às telas... ou seja tenho filmes arquivados há dez anos... que tal leitor? Não seria um boicote armado pelos intelectuais de araque?

Abismu, produção minha com Norma Bengell, Jorge Loredo, Mojica Marins, Wilson Grey, está pronto – cartaz, trailer e tudo – há dois anos – e só passa por iniciativa minha... repito: Serei tão importante assim? Consegui a duras penas lançá-lo em São Paulo... Para utilizar publicidade gratuita, me dispus a levar a atriz comigo para os programas de rádio e televisão. Além de não sermos pagos, recebemos um telegrama fonado ("é cômodo, telefone hoje e pague depois" conforme o epigrama) vazado nos seguintes termos: "DPP/96/80 – Comunicamos seu pedido passagens e diárias, com fins promocionais, em São Paulo, para o filme O Abismu, em nome de Rogério Sganzerla e Norma Bengell, foi indeferido visto baixo potencial de rendas circuito exibidor nessa cidade, estaria comprometido pelo valor total do investimento na viagem. Atenciosamente, Luiz Gonzaga A. de Luca, Chefe Departamento de Promoção de Propaganda da Embrafilme."

Sem comentários... O pior é que o filme já tem certificado de censura correndo há quase um ano e nunca foi projetado a não ser por iniciativa minha, isto é daqui a cinco anos terá um ano menos de vida, sua imagem está lá embaixo (é isso que queria, Senhor Marcondes? Quem ri por último ri melhor) e nenhum exibidor quer lançá-lo – embora tenha um rolo inteiro de Jimi Hendrix executando "In from the Storm" em Whight – porque já foi dolorosamente "queimado" pelas nossas queridas incompetências treinadas na cidade maravilhosa... O pior de tudo é que foi financiado com recursos próprios (não eram nem meus: o mais grave é que a querida Helena Ignez vendeu seu apartamento próprio – sabendo-se que numa época de inflação não se vende nada... para produzir uma importante aula, lição, intuição de um novo Brasil que, precisa-se conhecer a si mesmo; isto é, não faltam arqueologia, religião, Hendrix no experimento). Será Abismu tão importante assim para ser tão ostensivamente retirado de competição?

Pois com Noel e Hendrix ao meu devido lado eu digo: Abismu é o trailer de minha futura obra, sob a égide, invocação, proteção do gênio número um das Américas (que são uma só), ou seja, a ele dedico todos meus planos fixos, travelings e panorâmicas, ao pensador James Marshall Hendrix.

Sete anos longe da câmara – um recorde de abstenção – não me fez parar nem um segundo, pelo contrário. Ultimamente, escrevi três ensaios irresponsáveis, três romances, três roteiros e faço ao mesmo tempo três filmes – são doze, e não um, pontos de partida avançados.

Rogério Sganzerla
(Folha de São Paulo, 10 de agosto de 1981