No rastro de Orson welles

Combativo, polêmico e imbatível nos anos do Cinema Novo. Ainda hoje quando fala, não nega o cineasta que foi. "Eu não acredito em renascimento de filme brasileiro. Nós não temos roteiristas e não temos nem dialoguistas".

Rogério Sganzerla, o famoso realizador de O Bandido da Luz Vermelha (1968) e Nem Tudo É Verdade (1986) falou ao Diário, por ocasião do VIII Festival de Cinema de Natal.

Sganzerla, em que filme você está trabalhando no momento?

Chama-se Tudo É Brasil. É uma coletânea de assuntos fechando a trilogia sobre Orson Welles no Brasil. Onde ele mesmo diz: "Tudo é Brasil". Ele fala em português e até canta em português. É uma pequena tentativa de voltar às nossas raízes, coisa que eu acho tão importante como o nosso cinema. A presença de Welles repete o que aconteceu com Eisenstein, no México. Embora o Eisenstein não seja mexicano, e sim, um grande cineasta russo, deu uma contribuição fabulosa com aquele filme inacabado. Foi o mesmo caso do Welles, embora não seja tão transparente. Porque ele criou um estilo de filmagens exteriores, as grandes seqüências de multidões, de enterro, de jangadas, de números musicais e até um sentido patriótico ele trouxe, por ocasião da II Guerra Mundial. Que incutiu, mesmo, em Grande Otelo e em Linda Batista uma noção de nacionalismo, de luta pelos poderes da democracia e contra o Eixo. De certa forma, Welles foi vítima também dessa atuação, porque naquele momento desvendara uma rede de espionagem em todo o Brasil, inclusive no Recife, no Ceará, no Rio de Janeiro. E há muitas suspeitas sobre o que de fato ocorreu com relação ao jangadeiro Jacaré, que era norte-riograndense. Welles acreditava seriamente nisso. Só contaria o segredo quando estivesse pronto o filme. Talvez por isso o filme não tivesse sido concluído, embora já totalmente rodado. Eu tenho umas duas horas de material das cenas do Nordeste de Welles. É impressionante. Parece Flaherty, Murnau, um pouco Eisenstein. Sugere muito do cinema que veio nascer depois. Lembra Barravento, de Glauber, Rio Zona Norte, de Nelson Pereira dos Santos, e o cinema brasileiro que se fez nos anos 40.

Além do longa Nem Tudo É Verdade, que você realizou entre 1980 e 1986, trabalho arqueológico de acompanhar os passos de Orson Welles quando esteve no Brasil nos anos 40 para rodar It's All True, você fez ainda um curta. Conte como foi isso.

Fiz um curta sobre a linguagem, mostrando só o poder da linguagem, os planos-seqüências e usando também aquele sistema referencial de som que tem Os Cafajestes, de Ruy Guerra, a voz em off, um programa de rádio entrecortado com uma cena sobre a construção da Base Aérea de Natal e alguns esforços significativos do ponto de vista de linguagem. Mas esse não. É uma revista, um magazine mostrando todas as fotos, todo o material, os programas de rádio brasileiros, todos os aspectos, algumas cenas dos filmes, os desenhos que Welles fez no Brasil, enfim, uma série de surpresas que vai agradar a todos, como você, que conhece a real importância de Orson Welles integrado na nossa tradição.

Como foi o apoio oficial para Tudo É Brasil?

É um filme maduro, adulto, que já mostra um domínio e ao mesmo tempo objetividade, com a informação, sobretudo, a trilha sonora que eu acho o ponto alto do filme. É maravilhosa. Nem americano, nem francês, jamais conseguiria captar aquele clima de orquestra, os solos que esse material propicia. Porque foi feito lentamente com grande sacrifício e realmente nunca recebemos recursos, mas acreditamos no projeto ao ponto de gastar aquele pouco que a gente ainda tinha. O caso da Rio Filme era garantir um contrato de distribuição e também de home video, mas ela se encarrega dos custos operacionais (laboratório, som). É fundamental que as pessoas sejam pagas (os recursos humanos), mas como é uma repartição, uma autarquia, a gente às vezes é obrigada a se submeter aos critérios dela. Mas como se vê tanto filme que não tem a qualidade desse trabalho, dá uma certa decepção com relação à política geral da Rio Filme. Não no meu caso. Acho que está aí um dos desperdícios. Quer dizer, para quem faz filmes tão primários, tem um montador pago, assistente e tal. Esse, que é um filme internacional e bem brasileiro, não tem. Há um clima de suspeição. Até o montador falou: "Somos tratados aqui como uns bandidos, como marginais". Não é um filme de livre exportação, é uma revelação para o Brasil.

Concluído este trabalho, que nos parece tão sofrido do jeito como vem caminhando, quando vai sair o filme sobre Noel Rosa?

Agora mesmo fui vítima da incompreensão. Porque tenho alguma coisa filmada. Desde 1976/77, na mesma época em que comecei a me interessar por Orson Welles no Brasil, passei a estudar as músicas, a discografia de Noel, promover um levantamento. Entrei em contato com Almirante, com o biógrafo Jaci Pacheco, primo do Noel, e então fui registrando e acabei ao longo dos tempos conseguindo fazer um curta e um média metragens, ambos realizados em condições bem profissionais. Os filmes me agradam bastante, porém jamais aquele projeto que eu tinha desde o início, que ia contar uma história, um melodrama poético.

A tal comédia dramática?

É. Eu tinha inventado uma expressão na época que hoje não é mais novidade: uma comédia dramática. Noel, além de ser um grande pensador, um filósofo do samba, basicamente foi um humorista, uma pessoa cheia de graça constante, gozador, brincalhão e vivendo intensamente a cada segundo. Isso o roteiro refletia, com fontes fidedignas, baseado em fatos reais. Vou montar uma história que mostra a relação dele com a música, com as namoradas. Namorava uma de manhã, outra à tarde e outra à noite. Ele acordava às cinco da tarde e ia dormir ao raiar do dia. Passava o dia sem comer, com aquele problema de mastigação que veio agravar sua saúde. Ao mesmo tempo, ele tinha um grande sentido da compaixão pelo ser humano. E até com os animais. Por exemplo: ofereciam a ele alguns pastéis, mas não os comia em público, a não ser diante de alguns amigos. Quando assim não agia, ia botando os pastéis no bolso e de madrugada, quando chegava em casa, primeiro olhava se os cachorros já estavam esperando, para ele passar com os pastéis. Além dos cachorros, os gatos também.

Fale de seus novos projetos.

Para o ano de 97 tenho outro filme, em produção, certamente. É Sob o Signo do Caos. O fundamental é ter o roteiro registrado, os direitos autorais assegurados, enfim, essa formalização e análise da produção. Vamos ver se novos ventos melhoram. Precisamos de sorte, não é? A gente tem que torcer para que tudo dê certo. Agora é fundamental o apoio do poder público como em qualquer país é decisivo e também dos empresários. Que a iniciativa privada acredite no cineasta brasileiro. Todo comerciante tem que partir desta confiança, já que o burocrata parte da desconfiança.

Fernando Spencer
(Diário de Pernambuco, 7 de dezembro de 1996)