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Nem Tudo É Verdade (Welles Nô Brasil)
Brasil, 1986 |
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"O Brasil produz o melhor uísque falsificado do mundo!", sentencia o carnavalesco Orson Welles encarnado por Arrigo Barnabé. Porém, o fato da bebida ser falsa em relação à escocesa não significa que ela não seja verdadeira, pois se trata de outra verdade, contraposta à original: o uísque enquanto metáfora sobre a arte, como demonstra Rogério Sganzerla em Nem Tudo É Verdade (Welles Nô Brasil).
"To see or not to see, that is que question". O que é verdade (ou não) sobre a passagem de Orson Welles no Brasil, para filmar o revolucionário It's All True – com o qual se antecipa o cinema-verdade, o neo-realismo e o cinema novo –, dado como perdido graças à mediocridade burocrática da RKO e do Estado Novo, e em parte recuperado recentemente por Bill Krohn, Richard Wilson e Myron Meisel? Ou melhor, o que é a verdade?
O senso comum vê a verdade intrinsecamente ligada aos fatos, ou seja, ela existe e precisa apenas ser encontrada. Esta interpretação, contudo, omite que a verdade dos fatos é forjada pelos vencedores, por aqueles que detêm o poder econômico, político e social, para embasar a "História oficial", que exclui os pobres, os fracos, os oprimidos, os derrotados, em suma, todas as minorias, bem como suas manifestações artísticas e culturais.
Assim, a verdade oficial é uma invenção, imposta para que os párias da sociedade não tenham voz nem vez. Cabe ao artista, conectando-se aos anseios populares marginalizados, combater a mentira que se faz verdade através de uma nova verdade, igualmente inventada: a verdade da arte, mais real que a dos fatos, na medida em que enxerga além da aparência instituída pelo poder. Luta de vida ou morte contra a verdade estabelecida, corroendo-a, destruindo-a, pois a única verdade possível se situa na liberdade de criação que um artista e que um povo possuem ao quebrarem com todas as regras.
Ninguém representa melhor a ruptura provocada pela arte, no cinema, do que Orson Welles, o estrangeiro, não somente por ser um americano no Brasil, mas devido à condição de estranhamento quanto ao país: o próprio Welles, em Nem Tudo É Verdade, denomina-se um vagabundo, um outsider em qualquer lugar. Não mais americano, e ainda não completamente brasileiro, ele se encontra desprovido de identidade, no vácuo em que simultaneamente é nada e tudo em potencial, dotado apenas de um olhar inocente pronto para ser lançado sobre nossa realidade, na procura pela verdadeira alma do povo e de sua cultura, a qual, em virtude da contestação ao establishment que carrega, causa arrepios aos burocratas, que não a querem de forma alguma na tela.
Orson Welles filma o carnaval – "negros sambando", "negros pulando", "negros se requebrando" – e gasta metros e metros de película no registro das favelas cariocas, para desespero do terrível e, ao mesmo tempo, cômico funcionário do Estado Novo (Otávio Terceiro, que depois interpretaria o ainda pior Dr. Amnésio, em O Signo do Caos) que prefere os clichês turísticos com os quais o Rio de Janeiro é normalmente apresentado, ou seja, praias, mulheres bonitas e Zona Sul. Na tentativa de mostrar o homem comum do povo como herói nacional, sobretudo o jangadeiro Jacaré (no episódio Four Men and a Raft), It's All True acaba apreendido, trancado no cofre, jogado no esgoto e queimado, para delírio da estupidez dos medíocres, que não suportam a perigosa verdade do artista.
No Brasil, a genialidade é proibida, seja pelos interesses políticos do Estado Novo nos anos 40, seja pela ditadura econômica do mercado no século XXI. Mas, em Nem Tudo É Verdade, além de Orson Welles, há outro gênio, Rogério Sganzerla, que se apropria do célebre "News on the March", cinejornal presente em Cidadão Kane, para a estrutura fundamental de seu filme, a saber, misto de documentário com chanchada. Pontuada pelo humor corrosivo de Sganzerla e pela música de João Gilberto, a figura de Welles se multiplica na tela, ao surgir em fotos de arquivo, em locuções radiofônicas antigas, na pele de Arrigo Barnabé ou na voz gutural do narrador, homenagem e paródia antropofágica do cineasta aos cinejornais.
Trata-se da qualidade mutante do gênio, que se desdobra em vários outros para dar conta não somente das múltiplas faces da realidade existente, como também das infinitas verdades a serem criadas pelo artista e pelo povo do qual aquele se alimenta. E essa simbiose entre Sganzerla, Welles e os brasileiros aponta para a desobediência radical contra a boçalidade reinante.
Paulo Ricardo de Almeida |
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Arrigo Barnabé é Orson Welles. Nem
Tudo É Verdade (1986) |
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