Jimi, gênio total

De 1965 a 1970, um gênio reinou sobre a Terra – Jimi Hendrix (27/11/45 – 18/9/70); mais uma vez a Terra não soube coroar seu rei. E se assim não o foi mais porque por dentro de altas estruturas astrais (isto é, físicas, e seguindo do princípio único a lei de encarnação) ele como rei sabia que iria partir breve. "He’s not gone, is just dead", prediz Hendrix em 1965, numa gravação com Curtis Knight, de uma canção intitulada justamente "Ballad of Jimi", onde fala, com diferença de um dia, a exata data – mês e ano – de passagem deste para outro(s) mundo(s) onde segundo ele estará nos esperando para a próxima revoada de trovões que transformará a face da Terra, mas até lá ele voltará ("I’ll return" – repete em "Highway Chile", presciente de sua vida transitória e abissalmente genial, em péssimo estado como Noel que por sua vez desabafa: "... tenho passado tão mal/a minha cama é uma folha de jornal..."). Gênios ceifados na flor da idade não fazem senão rejeitar: "I don’t live today/maybe tomorrow". "Até amanhã, se Deus quiser". "I will return". Rejeição deste mundo, mente e sociedade do medo, não fazem senão recusar tudo que deve ser recusado – e nome do novo homem, nova sociedade e tudo que é de Deus.

Desvendo o véu de Isis: tenho para mim que antes de mais nada é necessário pensar em Hendrix como uma divindade. Não uma "divindade do som", se assim posso exprimir, mas divindade do homem. Total mente gênio total – pois ele próprio é uma divindade que se alimenta de sua própria aura; um gênio encarnado suntuosamente num negro-índio; gênio da América e americano por dentro número um.

Hendrix já é século 21 e 23 – além de 20. Três séculos atravessam e informam com sua maneira típica de tomar com a mão esquerda, cordas (12 na stringuitar) na posição invertida por exemplo.

Suas letras devem ser ouvidas como um ideograma, com grande elegância e concisão de forma – referindo-se ao essencial – se fala do poder (e formas subalternas de usar o poder – dinheiro medo moeda repressão chicletes e metralhadora, por aí afora): "Sweet talks in vain".

Já a música é uma explosão de luz (e cor; como a língua-raiz sânscrito e o tupi – or not to be), onde o som representa um valor tonal e é escrito sob uma pauta musical novamente Hendrix reina sob nossa mente. Não divaga sobre anedota ou deslumbramento menor: ele diz o essencial, isto é, o supérfluo: vinho, o uno, poder, tudo é possível. Fala sobre "quetzal", o poder de transformar tudo e a mente à medida positiva de desmedido negar. Sobretudo diz tudo sobre tudo com pouco ou quase nada: três homens – guitarra, baixo, bateria – soam como multidão em músicas escritas, cantadas e freqüentemente mixadas por ele em seu estúdio "Electric Ladyland". Mal admitido, claro, pelos que tolhem o pensamento com medo, quem necessita e tal artigo (seu empresário fez questão de "apagá-lo" e só relançá-lo em sucessivas gravações dispersas, voluntariamente mal escolhida entre as duas mil horas gravadas em dezesseis canais...).

Tocando "Red House" ou "Voodoo Chile" simplesmente varre do planeta toda perda de tempo, levando-nos até altura inalcançada por qualquer outro ingênuo ou gênio terrestre. Para todos e para ninguém: mente livre, homem superior, relação com divindade – eis o abc hendrixiano onde como em qualquer revolução tudo começa e termina na mente livre (sem esforço partido medo ou classe).

Jimi era um rei e ele sabia. O rei nasceu, em Seattle filho de índia e negro. Gostava de passar as férias em companhia da mãe alcoólatra (perdeu-se aos dez anos) em tendas de antepassados "cherokees" na reserva de Vancouver, Canadá. Segundo o pai, um jardineiro austero, "Jimi era um verdadeiro sagitário, obcecado com a justiça, com a idéia de fazer as coisas certo. Uma personalidade muito forte, difícil de curvar e individualista. Vivia interessado em coisas não comuns nos garotos; uma delas era a música. Em sua casa não faltavam discos de Robert Johnson, Muddy Water e B.B. King, todo domingo os amigos paternos após o serviço religioso iam tocar "blues" e beber cerveja. Aos quatro anos irrompeu sala adentro soprando uma gaita "como um maluco mas dentro do ritmo", aos sete recebeu de uma tia um violino ("e eu cheguei a tocar mesmo, sempre curti os instrumentos de corda, foi aí que descobri que era canhoto para tocar também.

Eu só dedilhava a vassoura com a mão esquerda! – tocava-a com a mão esquerda". Ganhou um violão e uma guitarra usada ("ele ouvia um disco uma vez, e minutos depois, já tocava igualzinho"). Alisou-se no Exército como para-quedista. Desmobilizado vinte e seis saltos depois, com fraturas na costela e tornozelo – rolou dez anos pelas estradas no circuito de música negra americana, aprendendo ou ensinando (tocou com Litle Richard, B.B. King, Sam Cooke, Salomon Burke e o grupo de "twist" Joey Dee e the Starlights e o "Isley Brothers" até chegar só e desconhecido em Nova York em 1965).

Mudou nomem para Jimmy James com um grupo próprio o "Blue Flames" – fracasso completo – teve que empenhar e vender guitarra para continuar num hotel miserável no Greenwich Village. Aceitou gravar com Curtis Knight e salvou sua situação financeira. "Eu acho que nunca cheguei a conhecer Jimi, declara Curtis Knight. "Acho que nunca ninguém o conheceu. Ele não se deu a conhecer a ninguém. Era fechado, se guardava como quem guarda um segredo. Mas nós nesses tempos em Nova York nós conversávamos muito.

Jimi estava sempre intrigado, preocupado com coisas como a origem da vida, o problema da morte. Nunca curtiu uma de orgulho racial ou preconceito. Estava mais preocupado com a noção de humanidade e conceito de fraternidade". Lia muito, nunca soube o quê. Não conseguia acompanhar suas conversas. Certa vez me disse acreditar que os seres humanos devem passar por várias encarnações em nove diferentes planetas cada um mais evoluído que o outro até chegar á eternidade, à perfeição (Nirvana? Sem sânscrito significa extinção). Ele dizia também que esse mundo em que vivemos é apenas um imagem distorcida de um outro mundo, espiritual e perfeito".

Em 1969, apara o cabelo, reduz a quantidade de anéis e colares. Com a palavra, o rei: "Isso já foi importante para mim, agora não é mais.

O que é importante? Minha música e minha mente é o que conta. Quanto a elas, me sinto ilimitado. Tentei sempre fazer minha música honestamente e se as pessoas não me entendem, é porque não ouviram direito. Até "Electric Ladyland" eu queria basicamente pintar paisagens do céu e da terra com a guitarra para as pessoas se soltarem dentro delas. Sofri muitas mudanças, descobri muitas coisas que ainda não contei. Gostaria agora de pintar a realidade de uma forma simbólica capaz de levar as pessoas a pensar. Eu sou tantas raças... como poderia tocar uma música... como poderia trair uma dessas raças, se eu sou todas elas ao mesmo tempo? Tenho pensado muito sobre o futuro, sobre essa era em declínio. Mas não quero acabar, quero continuar, vá para onde for o futuro.

Talvez escrevendo mais para os outros, fazendo arranjos. Talvez com uma orquestra... não uma dúzia de harpas e violinos mas uma banda de verdade para que eu possa reger músicos competentes... e talvez algo visual como filme ou slides que alarguem aquilo que a música quer dizer. Assim tudo poderia ser novo, excitante. Acho que é isso que virá. Música é tão importante agora. Política já teve sua importância e é a música e as artes que vão mudar o mundo. Aprecio Strauss e Wagner – eles são muito bons. Acho que servirão de base dessa minha nova música.

Mas acima de tudo, quero "blues" e um pouco de western tudo misturado. Estamos tentando fazer um terceiro mundo acontecer mas ainda há tanta coisa para aprender, tanta coisa nova para fazer. Como o mundo, a música está ficando pesada demais... quando, como o mundo, a música fica assim pesada eu simplesmente quero me chamar hélio, o gás mais leve que o homem conhece".

Foi sua última entrevista. Como uma fera do astral parece ter vindo ao mundo para sacudir-nos de nosso terrestre e passageiro sono – grandeza, consciência e humildade – saber-se bom é para o bom demais um limite ou uma tentação – como ele prematuramente falecido ou desfalecido.

Não existe maldição mas há sortilégios, sinas e sinais.

Rogério Sganzerla
(Folha de São Paulo, 11 de agosto de 1980)