Paris Visto Por...
de Claude Chabrol, Jean Douchet, Jean-Luc Godard, Jean-Daniel Pollet, Eric Rohmer, Jean Rouch, França, 1965

Mestre dos mestres

No Dia 19 de Fevereiro último, morreu, em um acidente de carro em estrada africana, o cineasta francês Jean Rouch. Aos 86 anos e mais de 120 filmes na carreira (o último, de 2003), Rouch é nome central e indispensável para a toda a formação de tudo o que já nos acostumamos chamar de "cinema moderno". Seu cinéma-vérité (que buscava a "verdade do cinema e não a verdade no cinema" – conceito rouchiano que se popularizou com o gênio expansivo de Godard) foi o momento mais crucial para tudo o que hoje se pode pensar sobre os pactos de encenação no cinema e sua relação de "representação da vida" para com o espectador. Um dos principais padrinhos da onda de "cinemas novos" que agitou a década de 60, Rouch foi artífice de algumas das mais belas pérolas e um dos grandes inventores das possibilidades do som direto no cinema.

De Godard a Eduardo Coutinho (seja em sua França natal, seja no Brasil), todo o cinema moderno deve muito à forma como Jean Rouch (um etnólogo decepcionado com a academia e com a frieza das pesquisas campais) ultrapassou os conceitos da ilusão e do real na construção do espaço cênico/narrativo, entrecruzando, como nunca antes, as noções de objeto e de observador (nesse sentido, a imagem da câmera sendo atacada em A Caça ao Leão com Arco, é um marco inigualável de um cinema "documentário" reafirmando-se como interventor físico, atravessado por seu objeto de "observação").

Em Rouch, a câmera, finalmente, deixa de lado sua tradição de elemento semi-etéreo e se faz instrumento físico, presente e indispensável para a construção (não "captação"...) das imagens. A "super-verdade" buscada por Rouch desde Os Mestres Loucos (de 1954, em que a narração marcadamente antropológica se mistura à invenção ritualística de seus personagens) seria cristalizada na obra-prima Moi, un Noir (1958), ecoando até hoje no que de melhor se faz no cinema em qualquer parte do mundo: a vontade não de "descrever os fatos", mas de vivenciar os signos, não de registrar as realidades, mas os rastros da vida transformada em memória coletiva, em "fabulações".

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Nesse sentido, de uma vez por todas, é importante discernir o lugar do cinéma-vérité e do cinema direto anglo-saxão: enquanto o primeiro militava pela construção da imagem e da câmera como elemento catalisador das verdades de seus personagens, o segundo se preocupava com a captura, com a possibilidade da câmera se tornar uma espiã da vida frugal, sem intervenções. O real (do cinema direto – preocupado com a legitimidade naturalizada de suas imagens) e a verdade (do cinéma-vérité – preocupado com a construção compartilhada de suas imagens), se são atitudes complementares da emergência por formatos mais leves de produção de imagens (final dos anos 50, início dos 60) são, certamente, incongruentes entre si e merecem ser tratados como tal. Se há no cinema de Rouch um desejo por autenticidade (objeto maior do olhar-direto dos irmãos Maysles), ela é uma autenticidade em-encenação, e não para além/aquém desta.

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É difícil, hoje, não ver simbolismo na morte de Jean Rouch durante uma viagem pelas estradas do Níger, país essencial em sua obra, onde o cineasta encontrou/construiu alguns de seus maiores parceiros/personagens. Um território onde, atraído inicialmente por filmar breves eventos etnográficos, o cineasta descobriu no improviso e na super-interpretação do cotidiano (e de seus rituais) um dos dispositivos mais ricos e instigantes com que o estatuto da imagem cinematográfica (que se evite abrir a boca para se falar em reality shows antes de se ver a obra-prima Moi, um noir) já se deparou.

Em seu episódio em Paris Visto Por..., Rouch realiza um raro filme de dinâmica marcadamente ficcional em sua obra, se apoiando na abordagem de um fait-divers (os "causos" cotidianos massificados pelos jornais) para construir uma pequena fábula de intersecção entre o olhar objetivo das notas jornalísticas e a fruição afetiva da manhã de um jovem casal; em especial, da jovem que se depara com o "estranho". Câmera na mão, num longo plano seqüência, o filme caminha entre as quatro paredes de um pequeno apartamento barulhento e as imediações da Gare du Nord (uma das sete áreas de Paris abordadas nos episódios do longa e que dá nome ao episódio).

Nessa abordagem de crônica espacial, o uso do som no filme há de ser destacado: ao mesmo tempo realista (na forma com que reitera a idéia da profusão de sons da grande cidade indo em direção contrária ao naturalismo de boutique da ficção bem-comportada) e expressivo (na forma como se assume, em sutilezas, como uma banda sonora que não corresponde ao som captado diretamente junto à imagem).

Esse jogo entre o som direto (ferramenta tipificada como elemento de realidade documental, mas aqui transformado em imitação-de-som-direto) e a fruição da encenação, calcada numa emergência típica da imagem ao vivo, da imagem imediata, fazem com que o filme ultrapasse o vício fácil da apresentação de eventos, encenando-se como imagens recriadas sobre outras imagens (como o próprio filme é gerado a partir de uma noticia pré-disposta pelos jornais).

Quando Rouch cruza os "fatos jornalísticos" com uma pequena história conjugal (que flui do pequeno apartamento para o caminhar pela Gare du Nord), brinca justamente de celebrar (nessa leveza de estatutos), algo que esteja além da narratividade: a idéia da vida como ritual compartilhado (seja nos jornais, seja nos pequenos gestos conjugais), do teatro cotidiano como forma de reencontrar a vida em sua essência inexprimível, capturada nesses gestos de repetição (da religiosidade do Níger aos costumes burgueses dos subúrbios de Paris) e diferença (como os desejos diversos narrados em Crônica de um Verão ou no menos comentado, mas não menos genial, A Pirâmide Humana). Um cinema que busca num pacto fluido entre personagens, espectadores e câmera, uma verdade cinematográfica que não se cristaliza em formatos reproduzíveis de produção (e nesse sentido, o cinema de Rouch, ao contrário de outras vertentes "documentais", não se coloca como fórmula, mas como exercício de formulação).

É nesse lugar, nem do fato nem da fábula, que Rouch ergue seu cinema: uma coleção de imagens re-espelhadas, recortadas, como gravuras-em-duração (não-estáticas) tocadas por algo que ali não se cabe como registro, mas que se insinua, se metamorfoseia, e não se deixa domar como definitiva.

Através de Jean Rouch o cinema documentário refaz o caminho de volta ao seio da ficção narrativa (esboçado e perdido desde o Nanook de Flaherty) e leva a ela o peso de sua câmera, o lugar do recorte emergencial – redescobrindo as "verdades" da ficcionalização, fazendo da encenação das identidades e do teatro do cotidiano um evento único, efêmero e muito além dos meros dispositivos de registro ou das fórmulas de representação "delicada" da monótona indústria "ficcional"...Com Rouch, o documentário perdeu a sua empáfia e a ficção pôde dar um adeus definitivo à sua cínica ingenuidade.

Grande Jean Rouch. Essencial Jean Rouch.

Felipe Bragança


Citações:

"Eu vejo as ciências humanas como ciências poéticas em que não há objetividade, e vejo os filmes não como gestos objetivos. Vejo o cinema-verdade (cinema-veritè) como um cinema de mentiras; de mentiras que dependem da arte de contar-se as mentiras. Se você é um bom contador de histórias, a mentira é mais verdadeira que a realidade, e se não for bom, a verdade não valerá meia mentira..." (Jean Rouch)

"A câmera não deve ser um obstáculo para a expressão dos personagens, mas uma testemunha indispensável que irá motivar sua expressão". (Jean Rouch)

"A presença da câmera é um tipo de passaporte que abre todas as portas e faz todo tipo de escândalo possível. A câmera deforma, mas não a partir do momento em que ela se transforma em cúmplice. Nesse ponto, a câmera tem a possibilidade de fazer algo que eu não poderia fazer se a câmera não estivesse lá: ela se transforma numa espécie de estimulante psicanalítico, que leva as pessoas a fazer coisas que elas não fariam se a câmera não estivesse ali." (Jean Rouch)


Filmografia Selecionada:

Rêve plus fort que la mort, Le (2003)

Dionysos (1986)

Cocorico monsieur Poulet (1974)

Jaguar (1967/II)

Chasse au lion à l'arc, La (1965)

Paris vu par... (1965) (episódio "Gare du Nord")

Chronique d'un été (1961)

Pyramide humaine, La (1961)

Moi un noir (1958)

Maîtres fous, Les (1955)

Au pays des mages noirs (1947)