Mestre dos
mestres
No Dia 19 de Fevereiro
último, morreu, em um acidente de carro em estrada
africana, o cineasta francês Jean Rouch. Aos 86
anos e mais de 120 filmes na carreira (o último,
de 2003), Rouch é nome central e indispensável
para a toda a formação de tudo o que já
nos acostumamos chamar de "cinema moderno".
Seu cinéma-vérité (que
buscava a "verdade do cinema e não a verdade
no cinema" – conceito rouchiano que se popularizou
com o gênio expansivo de Godard) foi o momento
mais crucial para tudo o que hoje se pode pensar sobre
os pactos de encenação no cinema e sua
relação de "representação
da vida" para com o espectador. Um dos principais padrinhos
da onda de "cinemas novos" que agitou a década
de 60, Rouch foi artífice de algumas das mais
belas pérolas e um dos grandes inventores das
possibilidades do som direto no cinema.
De Godard a Eduardo Coutinho
(seja em sua França natal, seja no Brasil), todo
o cinema moderno deve muito à forma como Jean
Rouch (um etnólogo decepcionado com a academia
e com a frieza das pesquisas campais) ultrapassou os
conceitos da ilusão e do real na construção
do espaço cênico/narrativo, entrecruzando,
como nunca antes, as noções de objeto
e de observador (nesse sentido, a imagem da câmera
sendo atacada em A Caça ao Leão com
Arco, é um marco inigualável de um
cinema "documentário" reafirmando-se
como interventor físico, atravessado por seu
objeto de "observação").
Em Rouch, a câmera,
finalmente, deixa de lado sua tradição
de elemento semi-etéreo e se faz instrumento
físico, presente e indispensável para
a construção (não "captação"...)
das imagens. A "super-verdade" buscada por Rouch desde
Os Mestres Loucos (de 1954, em que a narração
marcadamente antropológica se mistura à
invenção ritualística de seus personagens)
seria cristalizada na obra-prima Moi, un Noir (1958),
ecoando até hoje no que de melhor se faz no cinema
em qualquer parte do mundo: a vontade não de
"descrever os fatos", mas de vivenciar os
signos, não de registrar as realidades, mas os
rastros da vida transformada em memória coletiva,
em "fabulações".
* * *
Nesse sentido, de uma
vez por todas, é importante discernir o lugar
do cinéma-vérité e do cinema
direto anglo-saxão: enquanto o primeiro militava
pela construção da imagem e da câmera
como elemento catalisador das verdades de seus personagens,
o segundo se preocupava com a captura, com a possibilidade
da câmera se tornar uma espiã da vida frugal,
sem intervenções. O real (do cinema direto
– preocupado com a legitimidade naturalizada de suas
imagens) e a verdade (do cinéma-vérité
– preocupado com a construção compartilhada
de suas imagens), se são atitudes complementares
da emergência por formatos mais leves de produção
de imagens (final dos anos 50, início dos 60)
são, certamente, incongruentes entre si e merecem
ser tratados como tal. Se há no cinema de Rouch
um desejo por autenticidade (objeto maior do olhar-direto
dos irmãos Maysles), ela é uma autenticidade
em-encenação, e não para além/aquém
desta.
* * *
É difícil,
hoje, não ver simbolismo na morte de Jean Rouch
durante uma viagem pelas estradas do Níger, país
essencial em sua obra, onde o cineasta encontrou/construiu
alguns de seus maiores parceiros/personagens. Um território
onde, atraído inicialmente por filmar breves
eventos etnográficos, o cineasta descobriu no
improviso e na super-interpretação do
cotidiano (e de seus rituais) um dos dispositivos mais
ricos e instigantes com que o estatuto da imagem cinematográfica
(que se evite abrir a boca para se falar em reality
shows antes de se ver a obra-prima Moi, um noir)
já se deparou.
Em seu episódio
em Paris Visto Por..., Rouch realiza um raro
filme de dinâmica marcadamente ficcional em sua
obra, se apoiando na abordagem de um fait-divers
(os "causos" cotidianos massificados pelos
jornais) para construir uma pequena fábula de
intersecção entre o olhar objetivo das
notas jornalísticas e a fruição
afetiva da manhã de um jovem casal; em especial,
da jovem que se depara com o "estranho". Câmera
na mão, num longo plano seqüência,
o filme caminha entre as quatro paredes de um pequeno
apartamento barulhento e as imediações
da Gare du Nord (uma das sete áreas de Paris
abordadas nos episódios do longa e que dá
nome ao episódio).
Nessa abordagem de crônica
espacial, o uso do som no filme há de ser destacado:
ao mesmo tempo realista (na forma com que reitera a
idéia da profusão de sons da grande cidade
indo em direção contrária ao naturalismo
de boutique da ficção bem-comportada)
e expressivo (na forma como se assume, em sutilezas,
como uma banda sonora que não corresponde ao
som captado diretamente junto à imagem).
Esse jogo entre o som
direto (ferramenta tipificada como elemento de realidade
documental, mas aqui transformado em imitação-de-som-direto)
e a fruição da encenação,
calcada numa emergência típica da imagem
ao vivo, da imagem imediata, fazem com que o filme ultrapasse
o vício fácil da apresentação
de eventos, encenando-se como imagens recriadas sobre
outras imagens (como o próprio filme é
gerado a partir de uma noticia pré-disposta pelos
jornais).
Quando Rouch cruza os
"fatos jornalísticos" com uma pequena
história conjugal (que flui do pequeno apartamento
para o caminhar pela Gare du Nord), brinca justamente
de celebrar (nessa leveza de estatutos), algo que esteja
além da narratividade: a idéia da vida
como ritual compartilhado (seja nos jornais, seja nos
pequenos gestos conjugais), do teatro cotidiano como
forma de reencontrar a vida em sua essência inexprimível,
capturada nesses gestos de repetição (da
religiosidade do Níger aos costumes burgueses
dos subúrbios de Paris) e diferença (como
os desejos diversos narrados em Crônica de
um Verão ou no menos comentado, mas não
menos genial, A Pirâmide Humana). Um cinema
que busca num pacto fluido entre personagens, espectadores
e câmera, uma verdade cinematográfica que
não se cristaliza em formatos reproduzíveis
de produção (e nesse sentido, o cinema
de Rouch, ao contrário de outras vertentes "documentais",
não se coloca como fórmula, mas como exercício
de formulação).
É nesse lugar,
nem do fato nem da fábula, que Rouch ergue seu
cinema: uma coleção de imagens re-espelhadas,
recortadas, como gravuras-em-duração
(não-estáticas) tocadas por algo que
ali não se cabe como registro, mas que se insinua,
se metamorfoseia, e não se deixa domar como definitiva.
Através de Jean
Rouch o cinema documentário refaz o caminho de
volta ao seio da ficção narrativa (esboçado
e perdido desde o Nanook de Flaherty) e leva
a ela o peso de sua câmera, o lugar do recorte
emergencial – redescobrindo as "verdades" da ficcionalização,
fazendo da encenação das identidades e
do teatro do cotidiano um evento único, efêmero
e muito além dos meros dispositivos de registro
ou das fórmulas de representação
"delicada" da monótona indústria "ficcional"...Com
Rouch, o documentário perdeu a sua empáfia
e a ficção pôde dar um adeus definitivo
à sua cínica ingenuidade.
Grande Jean Rouch. Essencial
Jean Rouch.
Felipe Bragança
Citações:
"Eu vejo as ciências
humanas como ciências poéticas em que não
há objetividade, e vejo os filmes não
como gestos objetivos. Vejo o cinema-verdade (cinema-veritè)
como um cinema de mentiras; de mentiras que dependem
da arte de contar-se as mentiras. Se você é
um bom contador de histórias, a mentira é
mais verdadeira que a realidade, e se não for
bom, a verdade não valerá meia mentira..."
(Jean Rouch)
"A câmera não
deve ser um obstáculo para a expressão
dos personagens, mas uma testemunha indispensável
que irá motivar sua expressão". (Jean
Rouch)
"A presença
da câmera é um tipo de passaporte que abre
todas as portas e faz todo tipo de escândalo possível.
A câmera deforma, mas não a partir do momento
em que ela se transforma em cúmplice. Nesse ponto,
a câmera tem a possibilidade de fazer algo que
eu não poderia fazer se a câmera não
estivesse lá: ela se transforma numa espécie
de estimulante psicanalítico, que leva as pessoas
a fazer coisas que elas não fariam se a câmera
não estivesse ali." (Jean Rouch)
Filmografia Selecionada:
Rêve
plus fort que la mort, Le (2003)
Dionysos
(1986)
Cocorico monsieur Poulet
(1974)
Jaguar
(1967/II)
Chasse
au lion à l'arc, La (1965)
Paris
vu par... (1965) (episódio "Gare du Nord")
Chronique
d'un été (1961)
Pyramide
humaine, La (1961)
Moi
un noir (1958)
Maîtres
fous, Les (1955)
Au
pays des mages noirs (1947)
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