ISTo É NOEL ROSA
Rogério Sganzerla e Sylvio Renoldi, Brasil, 1990
O fascínio, ou, melhor dizendo, a quase obsessão de Rogério Sganzerla por figuras com poder de renovadores ou revolucionários radicais já foi mais que demarcado. Orson Welles é a mais mítica delas, mas não a única. E tal qual Welles foi para o cinema, Noel Rosa foi para a música popular brasileira. Nada mais justo que, quando das comemorações do 80º aniversário de seu nascimento, uma monumental biografia do compositor tendo sido inclusive editada por João Máximo e Carlos Didier, Sganzerla desejasse prestar, através de um filme, sua homenagem.

Como o cineasta manifestou em uma espécie de carta de intenções sobre um filme sobre o compositor realizado antes deste (Noel por Noel, de 1986, hoje praticamente invisível), Noel, mais que um genial compositor, teria sido o porta-voz de todo um processo de transformação política, social e cultural que desembocou no Brasil, e em especial no Rio de Janeiro, durante a década de 1930. ("Antes a palavra samba tinha um sinônimo: mulher ...Agora já não é assim... Há também o dinheiro, a crise.") E é não somente sobre o homem, mas também sobre essa época o assunto do filme de Sganzerla, que, ao contrário da precisão quase científica do livro de Máximo e Didier, tenta aqui traçar nem tanto um mapa objetivo da trajetória de Noel, mas apresentar suas impressões e visões pessoais sobre Noel, sua obra e seu tempo.

Ttratando específicamente do filme, é impressionante como Sganzerla consegue, em pouco menos de 50 minutos, traçar um perfil coerente, ao mesmo tempo pessoal e objetivo, de Noel. Em parceria com o montador Sylvio Renoldi, Sganzerla, com seu talento ímpar na história para colar imagens, quadros e sons, dando a eles um encadeamento ideolólógico que traduz com perfeita clareza sua concepção de cinema, nos transporta para o mundo vivido e cantado pelo compositor de Vila Isabel. E, se como disse Noel na canção "Não Tem Tradução", o cinema falado "é o grande culpado da transformação", Sganzerla procura não falar, deixando frases e músicas de Noel darem o seu recado.

Isto é Noel Rosa privilegia uma visão de Noel como um artista desiludido, que se utiliza do humor e da ironia para retratar seu desencanto tanto com as mulheres e sua vida amorosa no mínimo atribulada, quanto com a sociedade, que não aceita oficialmente o compositor popular, por mais talentoso que seja; um artista com reconhecimento pelo povo mas eternamente em dificuldades financeiras. São especialmente comoventes as seqüências encenadas por Sganzerla retratando um Noel que agoniza em meio ao carnaval, ignorado por todos que o cercam. E o cineasta não deixa de destacar que, mesmo após a morte, a obra do mestre e sua renovação permaneceria viva através de seguidores como João Gilberto (inquestionavelmante) ou Gal Costa (discutivelmente, principalmente tendo em vista sua produção mais recente). Mas sempre Noel como um homem à vanguarda de seu tempo, um homem que certamente foi embora cedo demais, podendo ter deixado uma contribuição ainda maior que aquela que nos legou. Como Sylvio Renoldi. Como Rogério Sganzerla.


Gilberto Silva Jr.