ABISMO
Produção: Rogério Sganzerla
Co-produção: Norma Bengell
Argumento, roteiro e direção: Rogério
Sganzerla
Diretor de produção: Ivan Cardoso
Diretor fotografia: Renato Laclete
Câmera: Rogério Sganzerla
Sonografia: Dudi
Still: Ana Lucia Sette
Laboratório: Líder
ELENCO:
Jorge Borges (Jorge)
Norma Bengell
José Mojica Marins (professor Pierson)
Wilson Grey (capanga)
Jorge Loredo (Zé bonitinho) (Medium de MU)
Edson Machado (baterista)
Mário Thomar (marítimo)
Participação: Mariozinho de Oliveira
Música: "Up from the skies", "Pali
Gap", "Wait until tomorrow", de Jimi
Hendrix
"Faceira", de Ary Barroso com Silvio Caldas
"Positivismo", de Noel Rosa com Noel Rosa
e Orestes Barbosa
"Mambo Jambo", "Sabor a mi", de
Perez Prado
SINOPSE:
Numa asa voadora, do alto da
Pedra Bonita, diante do Gigante da Gávea, e em
direção ao abismo, um jovem desportista
se atira e voa, enquanto um assassino (Wilson Grey)
agilmente monta um fuzil telescópico – engatilha,
mira, atira – e acerta – no desportista.
Um fotógrafo que é
egiptólogo e arqueólogo amador, por acaso
a tudo vê: saca de sua câmera fotográfica,
registra o incidente mas chama a atenção
do homicida, que foge em seu automóvel, seguido
pelo fotógrafo (Jorge Borges) numa rápida
perseguição automobilística numa
ladeira do Joá. Numa curva de duzentos graus,
Jorge acelera ao máximo mas é impedido
e obrigado a reduzir devido a presença – descomunal
– de um conversível Cadillac dirigido por uma
mulher, Madame Zero (Norma Bengell) – impedindo-o seguir
a pista do assassino.
Diante da asa, caída
na praia, próximo ao local do crime, Jorge promete
virar mar e terra "se preciso for para encontrar
o dono daquele cano asassino..." e vingar o amigo
morto.
Enquanto isso, observando-o
do alto o assassino previne seu cúmplice Dr.
Pierson (José Mojica) de que aquele tipo "viu
tudo e vivo é nocivo...". pierson requisita
os serviços de Madame Zero como espiã
e amante, preenche-lhe um cheque e manda-a "ganhar
o cara".
Sucede-se um diálogo
entre ela e o fotógrafo, terminando num motel.
Na suíte egípcia
do motel "Vale dos Reis", ele menciona seu
interesse por pesquisas e escavações arqueológicas,
baseado num manuscrito seiscentista de um tesouro encontrável
numa ilha da costa Atlântica, "Ilha Selvagem",
para onde convidada-a.
Fingindo-se desinteressada detrás
de um biombo chinês, Madame Zero liga uma vitrola,
muda roupa, levanta saia, desvendando na altura da coxa,
um punhal envolto em bainha de pele-de-tigre, de onde
retira uma pílula sonífera que deposita
num cálice e cantando "Drumi Negrito"
(em play-back) atravessa o quarto levando-o para Jorge,
com quem troca cálice, brinda e bebem.
Alguns minutos depois, devido
ao efeito da pílula, Jorge adormece, enquanto
ela rapidamente se transforma em veloz felina: vasculha
seu bolso, fotografa o manuscrito, encontra afinal a
câmera fotográfica que documentou o homicídio,
retirando o filme comprometedor. Ao fim da canção
em "play-back" desliga a vitrola e em seu
Cadillac dirige-se ao observatório astronômico,
ao encontro do Dr. Pierson e o assassino.
Insatisfeito com os resultados
apresentados. Pierson exige pesquisa em profundidade,
pois ela "em sua nulidade, não distingue
um faraó de um pobre diabo". Ao que, adianta
Wilson Grey: "doutor, deixe ele cavar sua própria
cova. Do tesouro, ficamos com o outro, pra ele dou a
cova" – convencendo-o plenamente.
Dirigindo-se à Ilha Selvagem
em sua lancha ultra equipada, baseado em duas teses
fundamentais, ou seja, da origem vulcânica das
rochas da costa brasileira e do principio de comunicação,
desde alta antiguidade, entre oriente e ocidente, Jorge
confessa não duvidar nem por um instante da eficácia
de seus planos, apoiado na pesquisa de ideograma e caracteres
paleográficos, isto é, desenhados do grego
arcaico. Consultada a obra de Bernardo da Silva Ramos
"Inscrições e Tradições
da América Pré-História",
a bordo decifra o manuscrito.
Um marítimo que lhe acompanha
na investigação sobe ao alto de um principício
e cai.
No dia seguinte, chega á
ilha uma lancha apressada, trazendo o assassino, sempre
armado, e Madame Zero.
Jorge empenha em mato fechado,
deparando-se bruscamente com a entrada, enorme, de uma
caverna onde ingressa e encontra, entre estalagmites
e estalactites, a figura insólita do médium
de Mu (Jorge Loredo) que lhe instrui sobre os perigos
e inimigos a serem enfrentados. Para acender seu charuto,
o médium retira-lhe algumas folhas do manuscrito
e queima-as, para espanto do pesquisador, que ao retirá-las
do fogo vê, em detalhe, misteriosamente, letras
aparecendo no papel (escrita em alumen de potassa, sob
efeito térmico) que podem lhe desvendar o caminho
a seguir.
Alterando seu itinerário,
avança por uma sombria galeria. De lá
retorna, trazendo um baú de época.
Enquanto isso lá fora,
o máximo que Madame Zero conseguiu é encontrar
o médium de Mu, que enche sua bolsa de moedas
antigas, sem que ela perceba.
Diálogo de Madame Zero
e o médium na estrada da caverna. Ele manda-a
evitar o assassino, ela responde: "por enquanto
ainda sou terrestre, meu mundo é alegre".
Vai ao encontro de Dr. Pierson
eu espera-a em seu iate com música, bebida e
mulheres...
– "Encontrou o tesouro?"
– "Não, achei a mim mesma."
– Então vá tomar banho" – joga-a
ao mar com bolsa – ao que moedas rolam ao chão,
caindo nágua.
Furioso, Pierson amarra-a no
mastro da embarcação e interroga-a, enquanto
um garçom traz uma bandeija com um frasco de
ácido expelindo fumaça.
– "Mulher, você agora
vai me contar tudo."
– "Mas eu não sei de nada".
Pierson aponta-lhe "mauser",
mas aproxima-se demais, mas ela rapidamente saca de
seu punhal (guardado na coxa) e defere-lhe golpe certeiro,
enquanto garçom ao vê-lo abatido, joga
contra Pierson o conteúdo do frasco.
O assassino não tem outra
saída senão seguir à risca as recomendações
de seu ex-cúmplice: suicida-se o mais rápido
e higienicamente possível.
A tudo observa de luneta, o
arqueólogo. Aponta o cano quente de sua arma
contra o detalhe de uma gasta fechadura de um baú,
abre-o (efetivamente cheio de jóias e estatuetas)
conduz-o à praia, entra e embarca em lancha para
seguir à vontade, vitorioso e tranqüilo,
a desafiar a maré alta – que com a terra e a
despeito dela – tudo encobre projetando-o no mar.
Chanchada fantástica
Exibido esta semana na Cinemateca
do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, O Abismo
ou Sois Todos de Mu, marcando a volta de Rogério
(O Bandido da Luz Vermelha) Sganzerla, decepcionou
de forma retumbante a expectativa imediata de primeiro
grau, ou seja, a turma que esperava um recado objetivo
do cineasta em relação ao Brasil dos anos
70 e seu cinema de grande mercado e nenhuma criatividade.
"O filme é um verdadeiro purgante",
desabafou o cineasta Luis Rozemberg Filho, um dos mais
coerentes do cinema Udigrudi, enquanto outros cineastas
torciam o nariz e se recusavam a fazer comentários.
Particularmente, porém,
considero minha ida ao Rio bastante compensadora. Rogério,
ao lado de Bressane, e ainda Glauber Rocha, é
uma das poucas bandeiras de um cinema deflagrador. Agora
ficou claro que a Embrafilme ainda não conseguiu
– nem conseguirá – dominar as poucas mentes livres
do cinema nacional, aquelas que resistem com um cinema
o independente. Só lamento que o filme do Rogério
não tenha uma dose tão grande de invenção,
já que ele não encontrou outro caminho
a não ser diluir-se a si mesmo, repetindo lances
do Luz (1968).
O que é o filme? Uma
revelação arqueológica sobre as
origens o Brasil. "O Egito é neto da América",
"Só me interessa a profecia", "O
destino do homem é uno, de Mu a um" – são
frases que o próprio Sganzerla diz no início
do filme, cortando-se em cacos de vidro. Depois passa
a dirigir um Cadillac rabo de peixe, branco, começando
a viagm (na verdade, "bad trip", isto é,
mal sucedida) ao continente perdido de Mu (localizado
na Gávea, Búzios e Alto da Boa Vista)
ou à Atlântida que o cineasta toma pelo
Brasil.
Como o filme não tem
história, sem mais nem menos surgem personagens
em meio a rochas, inscrições e ruínas
lendárias do Brasil. O primeiro é o professor
Pierson (José Mojica Marins mais elegante do
que nunca), que logo diz em primeiro plano: "Além
de ser grande, eu sou o maior". Depois surge Norma
Bengell, dirigindo o mesmo Cadillac com muito charme
e fumando um charuto de meio metro (desses alusivos
a Itu). Wilson Grey, o "vil criado" de Mojica,
exibe uma grande borracha de apagar, onde se lê:
"Para grandes erros". Igualmente delirante
é a aparição de Zé Bonitinho:
"Mulheres, cheguei. Vós sois todos de Mu
e não sabeis".
Em suma: O Abismo é
um filme finíssimo sobre a grossura, um vôo
poético avançado, uma chanchada fantástica,
situada aliás muito além dos rótulos
9a base é o Udigrudi, mas o resultado
é outro). A câmera geralmente é
péssima, o que não exclui angulações
geniais e cortes fulgurantes. Tudo isso é muito
simpático enquanto Rogério não
insiste em se auto-afirmar através de José
Mojica Marins: "Eu sou o maior mesmo. Boçais
e recalcados, uni-vos!". Uma carapuça que
certamente serve também ao autor, coisa que a
filosofia geral do filme deixa clara ("Tudo é
uma coisa só e isso é tudo").
Jairo Ferreira
(Folha de São Paulo, 16/04/1978)
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