depoimentos 1968

(Em 1968, aproveitando a seleção e a posterior premiação máxima em Brasília para O Bandido da Luz Vermelha, Rogério Sganzerla toma de assalto as redações com depoimentos ácidos sobre o estado do cinema brasileiro e o gesto que seu primeiro longa-metragem significa. Alguns deles, junto com a parte "1" de seu manifesto "Cinema fora-da-lei" [publicado em nossa edição 27], permaneceram sendo citados por anos e anos. Perdidas as referências principais, publicamos aqui as declarações de Sganzerla sobre suas influências e seu processo de criação [R.G.])

"Podia falar muito da chanchada, que considero uma das nossas mais ricas tradições culturais, como também sobre o estilo radiofônico desse filme; o rádio brasileiro é outra tradição que não pode ser desconhecida, principalmente quando se tenta merglhar nas origens e implicações do subdesenvolvimento. Não tive pudor nenhum em realizar esse ou aquele plano inclinado, tal diálogo ou situação cafajeste. Fiz questão, inclusive, de filmar como habitualmente não se deve filmar, isto é, utilizando angulações preciosistas e de mau gosto, alterando a altura da câmera, cortando displicentemente, não enquadrando direitinho, sendo acadêmico quando me interessava. Nesse filme marginal há citações de Primo Carbonari e de peças dirigidas por José Celso Martinez (O Rei da Vela), além de José Mojica Marins. Fiz um filme voluntariamente panfletário, poético, sensacionalista, selvagem, mal comportado, cinmatográfico, sanguinário, pretensioso e revolucionário. Os personagens desse filme mágico e cafajeste são sublimes e boçais. Acima de tudo, a estupidez e a boçalidade são dados políticos, revelando as leis secretas do corpo explorado, desesperado, servil e subdesenvolvido. Meus personagens são, todos eles, inutilmente boçais, como, aliás, os de 80% dos filmes brasileiros desde a estupidez trágica do Corisco à cretinice do Boca de Ouro, passando por Zé do Caixão e pelos atrasados pescadores de Barravento. Assim, o bandido da luz vermelha é um personagem político na medida em que é um boçal ineficaz, um rebelde impotente, um recalcado infeliz que não consegue canalizar suas energias vitais."

"O novo cinema deverá ser imoral na forma, para ganhar coerência nas idéias, porque, diante desta realidade insuportável, somos antiestéticos para sermos éticos. Fiz O Bandido da Luz Vermelha porque todos os cineastas que admiro fizeram filmes policiais mas no meio do projeto percebi que não poderia parar, que tinha de incorporar outros estilos sem sair da poesia noturna do policial classe B, para procurar a verdade nos espaços externos do western, nos interiores pobres da chanchada, na estilização do musical. Não tive pudor em fundir a 5ª Sinfonia, de Beethoven, com "Asa Branca", de Luiz Gonzaga, e, em certos momentos, sobrepor três ou quatro músicas. A narração é outro elemento original, pois restitui o filme a uma de suas origens fundamentais – o rádio. No fundo, ela é uma tentativa de captação e abstração da realidade porque o jogo da narração repousa na possibilidade da palavra em si. No final, os narradores entrecortam-se progressivamente, manifestando uma perplexidade verbal que é o signo do próprio filme."

Rogério Sganzerla
(1968)