Chanchada fantástica

Exibido esta semana na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, O Abismo ou Sois Todos de Mu, marcando a volta de Rogério (O Bandido da Luz Vermelha) Sganzerla, decepcionou de forma retumbante a expectativa imediata de primeiro grau, ou seja, a turma que esperava um recado objetivo do cineasta em relação ao Brasil dos anos 70 e seu cinema de grande mercado e nenhuma criatividade. "O filme é um verdadeiro purgante", desabafou o cineasta Luis Rozemberg Filho, um dos mais coerentes do cinema Udigrudi, enquanto outros cineastas torciam o nariz e se recusavam a fazer comentários.

Particularmente, porém, considero minha ida ao Rio bastante compensadora. Rogério, ao lado de Bressane, e ainda Glauber Rocha, é uma das poucas bandeiras de um cinema deflagrador. Agora ficou claro que a Embrafilme ainda não conseguiu – nem conseguirá – dominar as poucas mentes livres do cinema nacional, aquelas que resistem com um cinema o independente. Só lamento que o filme do Rogério não tenha uma dose tão grande de invenção, já que ele não encontrou outro caminho a não ser diluir-se a si mesmo, repetindo lances do Luz (1968).

O que é o filme? Uma revelação arqueológica sobre as origens o Brasil. "O Egito é neto da América", "Só me interessa a profecia", "O destino do homem é uno, de Mu a um" – são frases que o próprio Sganzerla diz no início do filme, cortando-se em cacos de vidro. Depois passa a dirigir um Cadillac rabo de peixe, branco, começando a viagm (na verdade, "bad trip", isto é, mal sucedida) ao continente perdido de Mu (localizado na Gávea, Búzios e Alto da Boa Vista) ou à Atlântida que o cineasta toma pelo Brasil.

Como o filme não tem história, sem mais nem menos surgem personagens em meio a rochas, inscrições e ruínas lendárias do Brasil. O primeiro é o professor Pierson (José Mojica Marins mais elegante do que nunca), que logo diz em primeiro plano: "Além de ser grande, eu sou o maior". Depois surge Norma Bengell, dirigindo o mesmo Cadillac com muito charme e fumando um charuto de meio metro (desses alusivos a Itu). Wilson Grey, o "vil criado" de Mojica, exibe uma grande borracha de apagar, onde se lê: "Para grandes erros". Igualmente delirante é a aparição de Zé Bonitinho: "Mulheres, cheguei. Vós sois todos de Mu e não sabeis".

Em suma: O Abismo é um filme finíssimo sobre a grossura, um vôo poético avançado, uma chanchada fantástica, situada aliás muito além dos rótulos 9a base é o Udigrudi, mas o resultado é outro). A câmera geralmente é péssima, o que não exclui angulações geniais e cortes fulgurantes. Tudo isso é muito simpático enquanto Rogério não insiste em se auto-afirmar através de José Mojica Marins: "Eu sou o maior mesmo. Boçais e recalcados, uni-vos!". Uma carapuça que certamente serve também ao autor, coisa que a filosofia geral do filme deixa clara ("Tudo é uma coisa só e isso é tudo").

Jairo Ferreira
(Folha de São Paulo, 16 de abril de 1978)