Assim como o cinematógrafo
fora no inicio do século do progresso, aconteceu
o automóvel na primeira década, o avião
na seguinte, o rádio na terceira e a guerra
na quarta . De lá pra cá assistimos ao
banquete funesto desse século: satélite
artificial e guerra fria na quinta, viagem à
lua e guerra química na sexta, burocratização
do ser humano na sexta e provável liberação
do ego no presente decênio para quem sabe ver
e tem olhos livres.
Noel Rosa como Villa-Lobos
compôs especialmente para a tela de nosso primitivo
cinema falado sob direção de Humberto
Mauro respectivamente Cidade Mulher e Descobrimento
do Brasil. E a bem dizer Noel começou no
cinema falado, grande culpado da transformação
(não tem tradução) pois posou nele
pela primeira vez diante de uma câmera sincronizada
em 1929, já sonorizada quando o precursor e laboratorista
Paulo Benedetti registrou quatro números do "bando
de Tangarás", vestidos de sertanejos em
seu estúdio, à rua Tavares Bastos, 117,
Catete. Inclusive a embolada "Minha Viola",
uma de suas primeiras composições, registra
Almirante que participou da experiência na
sua excelente biografia ("No tempo de Noel Rosa")
sobre quem, "em sua modéstia, falando a
linguagem sincera dos sambas, fez com que o bairro de
Vila Isabel se agigantasse sobre os demais do Rio de
Janeiro como a pedra mais preciosa de uma jóia
rara".
Almirante conta também
que conheceu-o naquele bairro em 1923, vestido com uniforme
do Ginásio de São Bento, tentando vender
por 80 mil réis um projetor infantil de vistas
animadas do bicho-da seda. O negócio não
se realizou mas serviu como apresentação
de um menino tímido, com defeito no maxilar,
que sofria com o apelido odioso de "Queixinho"...
Outro integrante do "bando de Tangarás",
João de Barros filho do dono da fabrica Confiança
Industrial de Vila Isabel escreveu com Alberto Ribeiro
o argumento de nossos primeiros longa-metragens sonoros
Alô, Alô Brasil e Alô,
Alô Carnaval e muitos filmusicais carnavalescos.
"Palpite Infeliz", a famosa réplica
ao sambista Wilson Batista foi composto especialmente
para Araci de Almeida em Alô, Alô Carnaval;
Noel chegou a propor um cenário pré-neo-realista:
Araci deveria cantar lavando a roupa e estendendo-a
num varal. Francisco Alves interveio e após longa
discussão retirou-se com Araci do palco de filmagem
da Cinédia, em são Cristóvão,
que Noel, por sinal, freqüentava. Desanimado, chamou
uma das irmãs pagãs, que não conseguiu
cantar como ele desejava. E assim, apesar de anunciado,
"Palpite Infeliz" jamais foi filmado, talvez
porque Noel estivesse adiantado uma década em
relação ao mundanismo dos anos trinta,
como sempre acertando na mosca, antecedendo-se à
generosa vertente popular de Favela dos Meus Amores,
João Ninguém, Moleque Tião
e Its all True de Orson Welles com argumento
de Herivelto Martins, que também extraía
a poesia do cotidiano: a cena do varal incluía
a afinação de cento e vinte tamborins
de pele de gato no final da tarde de um exterior em
contra-luz na Mangueira com "Ave Maria no Morro"
e "Batuque no Morro"...) De Alô,
Alô Carnaval constam Joel e Gaúcho
em "Pierrot Apaixonado" (parceria com Heitor
dos Prazeres) e "Não Resta a Menor Duvida"
com o Bando da Lua. No ano seguinte Noel compõe
a canção-título do filme Cidade
Mulher que lançou diante das câmeras
o "cantor das multidões", gogó
de ouro e excepcional intérprete Orlando Silva,
e mais cinco números musicais cuja filmagem fez
questão de supervisionar ("Dama do Cabaré",
"Morena Sereia", "Na Bahia", "Uma
Noite à Beira-Mar", "Tarzan, o Filho
do Alfaiate"; este último, samba em parceria
com Vadico, foi interpretado por Almirante). Noel fazia
questão de estar presente às filmagens
no Cassino Beira-Mar, situado no passeio público,
onde esperava até altas horas da noite pela bailarina
Ceci Juraci Correia de Moraes , seu grande e derradeiro
amor, que trabalhava num show da boite "Caverna",
no sótão do mesmo edifício, e que
serviu-lhe de inspiração para o samba
"A Dama do Cabaré". Hoje professora
particular em Vila Kennedy, Ceci confessa que Noel sofria
por ser ciumento, era bom de cama e uma vez, juntos,
destruíram um bar inteiro. Por sua causa compôs
uma serie de ideogramas: "O maior castigo que eu
te dou / é não te bater / pois sei que
gostas de apanhar", além de "Pra Que
Mentir?", "Só Pode Ser Você",
"A Melhor do Planeta", "Ultimo Desejo",
seu maior sucesso. Ceci lembra que Noel Rosa definia
suas musicas como "bossa nova" (coisas nossas,
nossas bases) confirmando, como sempre, estar nitidamente
adiantado em relação à época
. Incompreendido, mal aproveitado pela inteligência
local, no final de sua vida recusava-se terminantemente
a posar para uma câmera cinematográfica.
Seis meses antes de morrer, procurou Ceci para comemorar
seu último aniversário, dizendo que não
sabia se a ocasião iria se repetir. Depois de
uma ceia regada a champagne, foram a um hotel, mas Noel
absteve-se do sexo por estar tuberculoso. De madrugada,
surpreende-o sentado à beira da cama, desconsolado
e aflito como ninguém o vira sabia sofrer ,
possivelmente refletindo sobre seus dias contados na
terra. Foi uma visão aterradora do sofrimento
contido á base de estoicismo grego. Dias depois
um primo do compositor jogou-lhe um copo de cerveja
no rosto, culpando-a pela desgraça sem remédio.
Quando Noel soube, veio com febre pedir-lhe desculpa
pelo gesto impensado de um parente. Foi a última
vez que o viu com vida. O enterro apoteótico
foi acompanhado à distância, escondida
da multidão por um xale escuro a dama do cabaré
que o fez sofrer em vida e gozar na arte o reconhecimento
da imortalidade.
Verso final de "Seu
riso de criança", gravado em 1935 por sua
intérprete predileta, Aracy de Almeida: "Eu
nascendo pobre e feio / ia ser triste o meu fim / Mas
crescendo a bossa, veio / Deus ter pena de mim".
Rogério
Sganzerla
(Folha de São Paulo, 2 de junho de 1988)
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