A belair, 20 anos depois

Em 17 de setembro de 1990, por ocasião da retrospectiva das obras de Julio Bressane e Rogério Sganzerla, durante a II Mostra Banco Nacional de Cinema (RJ), Susana Schild publicou no Jornal do Brasil uma dupla entrevista com os diretores. As perguntas, no entanto, foram respondidas em separado. A seguir, a transcrição do depoimento dado por Sganzerla.

Vinte anos depois, como você vê a Belair no panorama brasileiro?

– Curiosamente, a Belair nunca chegou a ser registrada. Foi uma produtora imaginária, mas com registro histórico. Mesmo assim, em sua proposta de demolição do discurso acadêmico e convencional, teve uma atuação muito benéfica dentro do princípio de produzir filmes bons, bonitos e baratos. Entre março e setembro de 1970 produziu sete longas-metragens. Infelizmente, o sistema se voltou contra esse tipo de operação.

Com as mudanças do mercado, seria possível repetir a experiência?

– Acho que não. As pessoas são muito escravas de si mesmas. O cineasta brasileiro não lê romances, não conhece dramaturgia, acredita mais nos seus próprios limites do que em qualquer janela para o mundo. É uma figura sisuda e melancólica. A Belair, ao contrário, era extremamente audaciosa, apesar das condições políticas do país. O fato de filmar já implicava uma resistência, empunhar uma câmera era um gesto heróico. Fomos muito censurados nesses 20 anos. Primeiro, pela censura policial truculenta, que se transformou na vaidade da censura econômica e depois na crueldade da sabotagem burocrática.

Quais os avanços do cinema brasileiro nesses 20 anos?

– Houve um enorme retrocesso, uma marcha-a-ré histórica brutal. Devemos tirar o chapéu para os técnicos, os fotógrafos, os atores. Mas não temos argumentistas e muito menos dialoguistas. O cinema regrediu a uma forma quase ginasiana de rendimento, enquanto as produções são cada vez mais custosas. Não houve rendimento da forma artística. Tudo bem que numa crise as pessoas tenham que pisar forte, mas no Brasil, as super-produções têm uma tradição de fracasso. O potencial brasileiro é enorme, mas exige atenção para os detalhes humanos que são menosprezados nas super-produções. Fora isso, o cinema brasileiro foi atropelado pelo desastre da Embrafilme, uma penitenciária de acetato que tinha que acabar. Começou como 'rogão de fomento e acabou como órgão de liqüidação do cinema.

No cinema brasileiro sempre se discutiu muito a dicotomia cinema comercial X cinema de arte. Como você encara essa questão?

– Essa dicotomia faz parte do atraso das elites brasileiras que são as mais avarentas e despreparadas do mundo. Na época da Belair só o filme colorido era comercial, e filmes em preto e branco sofriam todo tipo de boicote. Esta dicotomia é uma ficção, existe porque o país é atrasado, por causa de sua formação histórica e pelo despreparo de toda uma nova geração, sem falar que os realizadores do Cinema Novo também cruzaram os braços.

Foi possível viver apenas de cinema nesses 20 anos?

– Vivi de cinema e ainda escrevendo, fazendo vídeo, montando alguns curtas-metragens. Também sou administrador de negócios.

O nome de vocês [Sganzerla e Bressane] sempre foi vinculado à vanguarda cinematográfica. Vocês eram e ainda são vanguarda?

– Me considero um bom cineasta e informado sobre a história do cinema, que lê peças de teatro desde criança, que escreve para jornais desde a adolescência. A descoberta de uma nova linguagem é como uma piada contada muitas vezes e que perdeu a graça. A vanguarda, a meu ver, seria uma tradição revolucionária e não somente o modismo de meta-linguagem e sem cair no ridículo do pré e pós-moderno, que acho uma aberração. Se isso é vanguarda, quero outra coisa.

E, hoje, alguém faz cinema de vanguarda no país?

– Não sei se alguém está fazendo cinema de vanguarda, no sentido de ruptura de códigos. Um ou outro cineasta sabe filmar, e embora os brasileiros gostem muito de cinema, o cinema não gosta muito de brasileiros. O cineasta brasileiro pode ser hoje comparado a uma toupeira desumana, insistindo em não ser solidário às grandes causas do cinema, que é o próprio cinema. O homem brasileiro, quando pretende ser altivo, faz questão de ser pedante, e uma coisa não tem a ver com outra.

Quais os melhores filmes da história do cinema brasileiro?

Limite, O Cangaceiro, Ganga Bruta, O Canto da Saudade, O Descobrimento do Brasil, O Anjo Nasceu, Deus e o Diabo na Terra do Sol, O Pagador de Promessas e os filmes de Watson Macedo. Ultimamente, fora os filmes do Bressane, gostei de A Faca de Dois Gumes, de Murilo Salles.

Qual a importância que o governo Collor está dando à cultura?

– Não sei. Eu continuo filmando. Acho que antes do governo Collor era pior, era a época do nem sim, nem não e da perda de tempo. O distanciamento do Estado do cinema pode ser um mal que venha para bem.

O que você está fazendo no momento?

– Estou para terminar um longa em homenagem a Noel Rosa, que este ano faria 80 anos – uma data que considero importantíssima, e que parece não sensibilizar ninguém. Já tenho duas horas filmadas, João Gilberto fez uma gravação exclusiva de Feitiço da Vila para o filme, e agora dependo da TV Manchete me emprestar os cenários da novela Kananga do Japão para filmar o prólogo.

Susana Schild
("Esta dupla vale uma mostra", Jornal do Brasil, 17 de setembro de 1990)