O montador
e editor de som Severino Dadá fala sobre Rogério
Sganzerla: o samba, a prontidão e outras bossas
de um cinema de invenção e amizade. (LARM)
Eu conheci o Rogério
há muito tempo, a gente sempre batia papo, mas
nunca tínhamos trabalhado juntos. Ele já
tinha me chamado pra trabalhar, mas eu, como autônomo,
pegava o trabalho que começasse primeiro. Eu
só vou trabalhar com ele profissionalmente em
1984. Ele me chamou pra montar Nem Tudo É
Verdade, o primeiro filme do Rogério sobre
a vinda do Orson Welles ao Brasil, no início
dos anos 40, que ele reconstitui com o Arrigo Barnabé
fazendo o papel do Orson Welles. Dali ele parte pra
outros filmes em cima do mesmo assunto. Depois eu montei
pra ele um filme com sobras do Nem Tudo É
Verdade, chamado Linguagem de Orson Welles,
um curta que tem um depoimento muito bonito do Grande
Otelo - cuja filmagem, aliás, eu tive a honra
de assistir - falando da amizade que ele fez com Orson
Welles, das biritas que ele tomou com Orson Welles aqui
no Brasil.
Eu morava na Vila Isabel, morei
lá durante 20 anos, de 1974 a 1994, e o Rogério
sempre baixava na Vila, porque ele tinha uma
espécie de fascínio em relação
ao Noel Rosa. O Rogério escreveu um roteiro sobre
a vida do Noel Rosa, o sonho dele era fazer um grande
musical sobre o Noel. E aí eu apresentei o Rogério
ao Martinho da Vila, ao Nei Lopes... Ele já tinha
amizade com o falecido Perna, que era uma figura folclórica
lá na Vila, um agitador cultural fantástico.
Esse Perna dizia assim: "Sem Perna a Vila não
anda". E nessa o Rogério fez amizade com um dos
maiores compositores da Escola de Samba Unidos de Vila
Isabel que foi o falecido Paulo Brazão, tema
de um grande samba do Martinho.
O Rogério foi um dos
caras que eu conheci mais bem informados a respeito
da história da música popular brasileira.
Ele teve uma formação de rádio,
de garoto freqüentando rádio, parece que
a família dele tinha uma emissora lá em
Joaçaba, na terra dele. Era uma enciclopédia:
tinha uma memória privilegiada, fazia citações,
era um intelectual na sua maior expressão, pra
mim foi um dos maiores intelectuais brasileiros com
quem eu convivi. E era um poeta, escrevia muito bem.
Muita gente fala no cara polêmico, no cara que
discutia, mas ninguém fala no conhecimento do
Sganzerla a respeito da música popular brasileira.
Ele conhecia toda a história, sabia as letras
de pessoas da importância de Custódio Mesquita,
de Bide, de Marçal, de Ismael Silva - do Noel
nem se fala -, do Sinhô, dos primitivos, ele conhecia
a história da Tia Ciata, do encontro das tias
no começo do século passado, as baianas,
o Rogério era um pesquisador incansável
desse tema.
Todo mundo fala no Rogério
fixado no Orson Welles. Mas o Rogério teve como
primeira grande paixão o Noel Rosa. Ou seja,
o samba brasileiro, o grande letrista, o grande poeta
dos anos 30, que morre jovem. E o Rogério morreu
jovem, explodiu na cinematografia muito jovem, com vinte
e poucos anos ele dirigiu o Bandido da Luz Vermelha.
Orson Welles com vinte e poucos anos dirigiu Cidadão
Kane. Noel Rosa morreu novo. Então, ele se
preocupava com o tema dos "jovens gênios". Eu
tinha uma cópia do primeiro tratamento desse
roteiro do Rogério Sganzerla sobre a vida do
Noel Rosa, que ele achava que seria o grande musical
brasileiro, que envolvia figuras da época como
Vadico, Wilson Batista, os programas de rádio,
Francisco Alves comprando os sambas do Ismael Silva...
Rogério só não
admitia - cortava o papo, se retirava - quando via um
babaca falando besteira. Ele não perdoava. Quando
ele não gostava de uma pessoa, ou dos pontos
de vista daquela pessoa, ele era danado, pichava mesmo.
E teve vários atritos durante a sua carreira
de cineasta, com críticos, pseudo-intelectuais...
Era um inimigo implacável da mediocridade, do
poder cinematográfico, dos grandes pelegos da
cinematografia. Morreu com dignidade e com pouco dinheiro.
Agora que estão querendo recuperar os filmes
dele, vão gastar mais grana com ele do que quando
ele estava vivo. Rogério sempre trabalhou com
cinema de baixo orçamento, fazia os filmes com
poucos recursos, e era muito diferente do Júlio
Bressane, que está sempre filmando. O Júlio
faz um filme por ano, o Rogério nunca conseguiu
as condições de fazer um curta por ano.
Esse rótulo de "cinema marginal" diz respeito
justamente ao cinema que não está enquadrado
nas mutretas da elite que domina a grana. É tudo
questão de grana: não estava enquadrado
no esquema da Embrafilme - era marginal. Mesmo
se fazendo um puta filme. É uma questão
de poder financeiro, não é uma questão
estética. Por exemplo, Um Brasileiro Chamado
Rosaflor, que é um filme todo cortadinho,
todo bonitinho, ninguém fala: já ouviu
falar nesse filme? Era do Geraldo Miranda, uma pessoa
que o Rogério aliás respeitava. Sabe um
dos caras que era gênio pro Rogério? Chamava-se
Ody Fraga. O Rogério respeitava o Ozualdo Candeias,
mas achava que o grande criador do cinema paulista era
o Ody Fraga. Ele sonhava em fazer um documentário
sobre o Ody. Ele achava que era uma coisa de gênio
o cara discutir numa quinta-feira um argumento, dar
umas idéias, ir pra casa e na segunda-feira chegar
com um roteiro decupado e planificado pra filmar. Ele
respeitava muito o Osvaldo de Oliveira, o Roberto Santos,
o Sylvio Renoldi, que foi montador dele - o Mojica nem
se fala. Egydio Eccio, autor do argumento de A Mulher
de Todos, era um cara de quem o Rogério falava
muito. Egydio foi um sonhador, um batalhador, era ator,
conseguiu dirigir uns dois filmes. Na história
do cinema paulista existe um capítulo que não
foi escrito que é um capítulo sobre Egydio
Eccio, ninguém fala dele.
Agora, o Rogério também
tinha o lado bagunçado, o lado desorganizado
na praticidade, no artesanato do trabalho. Era o seguinte:
montávamos o filme na moviola do estúdio
do falecido Roberto Batalin, em Botafogo, na Rua Álvaro
Ramos. Esta moviola ficava à disposição
do Rogério, 24 horas. Mas meu horário
era de oito da manhã às duas da tarde.
Eu sincronizava, organizava tudo, tinha aquela disciplina
de montagem, classificando sobras disso, sobras daquilo,
seqüência por seqüência. Como
a moviola estava à disposição do
Rogério, a gente saía duas horas da tarde,
fechava o expediente da montagem, e íamos prum
restaurante popular, na rua Arnaldo Quintela, o bar
do Luiz. Aí a gente bebia, comia, ficava tomando
uma cerveja e tal, aí eu me despedia dele, e
ia pra Cinelândia tomar uma saideira lá
no Beco. (Existia uma coisa assim muito humana na cinematografia
brasileira, que era a questão dos bares! Os restaurantes,
onde a gente comia... de repente a gente estava com
pouca grana, e os caras faziam uma comida farta, uma
comida gostosa. Eu chegava com o Rogério e mais
um assistente, pedia dois pratos e comiam os três.)
Pois bem, o Rogério dizia que ia pra casa dele,
mas voltava pra moviola do Batalin e refazia tudo o
que eu tinha montado de manhã! E me tirava tudo
de sincronismo! No outro dia de manhã, quando
eu ia pegar de onde eu tinha parado, encontrava tudo
fora de sincronismo, uma confusão total, porque
o Rogério ficava montando e remontando, cortava
plano, pegava e desfazia o rolo... Aí eu dizia:
"porra, Rogério, agora eu vou ter de fazer o
horário aqui só pra reorganizar isso".
Aí ele ficava feito um sacana, rindo e olhando
pra mim, dizendo: "não, mas a gente pode continuar"...
E eu dizia: "mas continuar como?!" E o Rogério:
"Num outro rolo, você inventa outro rolo"... Então
era uma loucura. O Rogério tinha essa coisa de
criar no caos. Tanto que o último filme dele
se chama Sob o Signo do Caos, que é uma
síntese da vida dele.
O Rogério aparentava
ser ateu, materialista, mas ele tinha um lado espiritual
muito forte. Não sei se era charme que ele fazia,
mas acho que ele tinha um lado de respeito pela religião.
Eu não tenho definido se ele era ateu, materialista,
católico, eu nunca consegui captar esse lado
do Rogério. Ele tinha respeito pelas religiões...
O Rogério era assim: ele tinha um lado solidário
com os amigos. Se ele estivesse com uma grana e soubesse
de um amigo dele que estava em dificuldade financeira,
ele telefonava pro amigo e dizia: "como é que
tá a barra aí, fulano?", e descolava uma
grana. Ele tinha esse lado. Em 1998 eu fui pro Ceará
ser júri do Festival de Cinema de Fortaleza.
E estou lá, hospedado no Othon Palace, lá
na Praia de Iracema. E o Rogério, que era convidado
do Festival pra uma conferência, chega em Fortaleza,
e vai ficar no mesmo hotel. Quatro horas da madrugada
ele chega e pergunta na recepção: "Tem
um cara assim, assim, hospedado aqui, o Severino Dadá?"
Aí o cara da recepção: "Bom, tem
um Severino aqui, mas é de Oliveira Souza". Que
é meu nome próprio. "Ah, é esse
aí! Qual é o quarto?" Eram umas quatro
e pouco da madrugada, quando tocam a campainha. Eu,
numa ressaca danada, acordo feito um louco, pensando:
"alguma coisa aconteceu...!" Quando eu olho no visor,
tá lá o Rogério Sganzerla. Eu abro
a porta e ele me convida pra tomar uma cerveja. Resolvemos
descer pra um quiosque na praia. Aí, a gente
bebendo no quiosque, lá pelas tantas ele diz:
"eu tô devendo uma grana a você." Mas eu
não me lembrava que grana era essa. Eu sei que
ele se retirou e voltou com um envelope com cinco notas
de cem. Ele fez isso comigo num porre, num amanhecer
do dia, o sol nascendo na Praia de Iracema em Fortaleza
e eu não posso esquecer isso nunca. O resultado
é que saímos mais ou menos umas dez horas
da manhã, completamente doidos, pros respectivos
apartamentos, e à tarde veio o pessoal do Festival
pra saber se a gente estava vivo ou não...
O Rogério tinha esse
lado muito honesto. E tem um lado bonito do Rogério
que eu nunca me esqueço, que é o amor
dele pela Helena Ignês, uma mulher fantástica,
e pelas filhas... e depois ele vovô, ele me falava
com orgulho que era avô. Quando ele falava na
Helena eu via os olhos dele brilharem, a coisa do cara
que tem orgulho de falar da mulher amada, da mãe
dos seus filhos, da avó dos netinhos... Isso
era comovente, era uma coisa muito bonita do Rogério.
Pra mim, a imagem que eu tenho do Rogério é
essa, a de um jovem gênio, cinqüentão,
mas que continuava jovem - e gênio. Um cara espiritualmente
além da mediocridade.
Depoimento colhido
por Luís Alberto Rocha Melo no dia 06 de março
de 2004.
Transcrição
e edição: LARM
|