Rogério
Sganzerla, realizador de alguns dos melhores filmes
do cinema brasileiro (O Bandido da Luz Vermelha/68
e A Mulher de Todos/69), pelo que deflagraram
no processo cultural do país, ficou muitos anos
afastado das câmeras ("para não me
confundir com a mediocridade dominante") e só
voltou a filmar quando filmou O Abismu ou Sois Todos
de Mu e não Sabeis, inexplicavelmente ainda
não lançado pela Embrafilme. Esse mesmo
órgão, de forma curiosa, concedeu-lhe,
entretanto, um bom financiamento para a realização
de Papai Noel Rosa, cujas filmagens se iniciaram
há 15 dias no Rio de Janeiro. Sganzerla veio
a São Paulo rever amigos num fim de semana e
se manifestou entusiasticamente sobre seu novo filme:
"Noel, gênio total,
mestre inconteste da língua, nos faz vibrar o
que de melhor se produziu em termo de texto com uma
única exceção nesse século:
Guimarães Rosa. A sua performance lingüística
é comparável à de um Euclides da
Cunha por exemplo (e quem mais?). Noel aproxima a noção
básica do texto com a mente livre e, em seus
ideogramas e epigramas lapidares compõe a nova
e natural língua milionária de um Brasil
menos burro e mais profundo".
"Ao contrário do
que se pensa, não há em Noel crítica
de costumes, mas apenas o ritmo adequado à construção
física do carioca. Basta citar suas opiniões,
transcritas por um pesquisador, para perceber que o
homem, alem de escrever bem demais, pensa diferentemente
e propõe algo que os malandros neurastênicos,
egocêntricos e inconseqüentes da imensa e
necessária roda de samba nacional não
pensaram fazer: Noel é um pensador e, nesse sentido,
só pode ser comparado a Jimi Hendrix".
Essa ligação Noel
Rosa/Jimi Hendrix pode parecer pouco ortodoxa aos estudiosos
da música popular brasileira, mas não
assusta a quem teve a sorte de assistir ao Abismu
em sessão especial. Nesse filme, Sganzerla utiliza
músicas do genial guitarrista do inicio ao fim.
E não faltam pontos de contato entre ambos, que
morreram tragicamente na flor da idade. Mas prossegue
Sganzerla:
"Som natural e pré-historicamente
milionário: samba/embolada. Identificação
com o subconsciente coletivo através de uma nova
prosa urbana, livre e bem acabada, onde, como em Hendrix,
não se perde tempo em odes à namorada
ou suspiros pretensamente românticos. Não.
Noel como Hendrix pretendem mudar a mente contemporânea
("I could change your mind; I dont live today,
maybe tomorrow"/"até manhã se
Deus quiser; quem gosta de mim sou eu").
Visionário, Hendrix realmente
"não viveu em sua época, talvez amanhã".
Seu som está muito anos na frente de tudo que
se faz hoje em música pop. E Noel Rosa é
um caso raro de poeta, músico e pensador dos
anos 30 que continua atual. Tão atual ou à
frente que só agora começa a ser redescoberto.
E, como se vê, através do cinema, arte
que às vezes aspira a ser musica (velho e sempre
novo ideal: toda a arte aspira a ser música).
Sganzerla sabe disso há muito tempo.
"Feitiço sem farofa,
sem vela, sem vintém. Noel, o gênio et
pour cause incompreendido. Vitimado por mal-entendido
histórico. Noel, o maior criador rimbaudiano,
o surealista mascarado, o provocador de versos, o homem
do silêncio e do ruído brutal, mestre alquímico
do repouso e do movimento, da presença e da ausência.
Basta estar atento às musicas como "Malandro
Medroso" e "Maria Fumaça", absolutamente
cerebrais e aparentemente "inconseqüentes".
Afora a capacidade do improviso e da gesta épica,
cartilha do poder que eu me proponho a decifrar para
a grande massa ignara de intelectuais medíocres:
poucos ou quase ninguém entendeu ao nível
da criação da obra a importância
interna de Noel ou Hendrix, aliás, criadores
comparáveis não somente pela extensão
de sua vida curta, gênios ceifados em plena flor
da idade, mas pela quantidade e versatilidade de sua
obra extensa, da capacidade de tentar e não conseguir
repetir-se (ou autoparodiar-se) no verso polido ao máximo
abissal e sempre ameaçador à mente convencional".
Para interpretar o papel de
Noel Rosa nesse filme, que já consumiu três
anos de pesquisas, Rogério Sganzerla escolheu
Joel Barcelos, cuja semelhança física
(Noel/Joel) com o poeta é flagrante. Mas as semelhanças
não param aí: Sganzerla também
tem alguns traços noelinos. O cineasta, que já
foi jornalista, não concede entrevista: ele mesmo
senta numa mesa da redação e produz seus
textos deflagradores. Termina de dialogar uma parte
da entrevista (melhor será falar em "inter-vista")
e entrega ao "repórter" o manifesto
que se segue:
"Chegou, senhoras e senhores,
a hora de abrir o jogo e instalar imediatamente os pingos
nos is do panteão da mente livre, isto é,
sem medo do novo homem e da nova humanidade. Chegou
a hora de abrir o jogo após um decênio
de fidelidade e pesquisa em todo sentido encampando
as verdades históricas de obras verticais que
se elevam por altíssimos páramos ate horizontes
insuspeitados ou inalcançados pelos outros contidos
viventes. Noel ou Hendrix ou a grande obra de arte
do deslimite da criação total gênios,
jinas sim, propõem tudo o que um imbecil de classe
jamais poderá entender. Mas eu, por exemplo,
entendo a burrice e até faço questão
que continuem assim para mais facilmente caírem
do cavalo".
"Noel, gênio total,
morreu a quatro de maio de 1937, isto é, 9 anos
antes de eu nascer, pôs em questão toda
a necessária jogada da obra de arte barroca e
moderna milenar e milionário deslimite da criação...
Ponho os pingos nos is da historia e, a partir de agora,
ninguém poderá ignorar a máxima
importância desse soberano do verso e do reverso,
artista e homem maior sim, porque a essa altura no equivoco
luso-carioca de dividir o universo da criação
da personalidade do artista necessariamente contigente
e complementador. Chegou a hora de gritar alto e em
bom som que o maior, feliz ou infelizmente, nessa terra,
se chama Noel Rosa e que ninguém ele é
grande entre os grandes (na década de prodigiosa
de 30, entre cartola, Larmatine, Ary e não sei
mas quem) sequer chegou a seus pés..."
"Noel, o gênio, Noel,
o pensador. O criador da condição oriental
de artista, mesmo e principalmente se nascido nas condições
adversas do capitalismo ocidental artista maior, invejado,
explorado, agredido mas exatamente por isso maior ainda".
"Não me desculpem
se pareço apologético, mas para falar
de Noel é assim mesmo, só com o seus companheiros
e amigos sinceros intuíram e o povo de Vila Isabel
até hoje intui e se refere a ele: um cara muito
inteligente, um gênio ou como se referiu Álvaro
Moreira, é muito grande esse pequeno Noel.
"E é isso que eu
pretendo erigir: uma concepção nada medíocre
do artista mais original e profundo de todo século,
que em sã consciência só pode ser
comparando pasmem com James Marshall Hendrix em
tudo, Orson Welles no cinema ou Shakespeare no texto
e na habilidade (isto é, montagem, ideografia
do relacional do persona-gens...), os grandes e tradicionais
exemplos exemplares provindos da mesma linguagem que
produziu os gregos da fase áurea, Homero, Shakespeare,
Dante, Cervantes, Camões, Castro Alves, todos
eles, indistintamente gênios totais".
Sganzerla já se desculpou
pela apologia, mas nem era preciso: quem o conhece sabe
que ele é assim mesmo quando está filmando
mergulha de corpo e alma no assunto, como se tentando
reinventar o mundo através de um filme. A pretensão
é grande, mas o assunto também o é:
uma vez terminado o fime, a visão que se tem
da música popular brasileira certamente ficará
abalada. Isso porque Rogério é um cineasta
de terremotos terremotos culturais que um momento
como a Bossa Nova, por exemplo, não teve sismógrafos
para detectar. E, no entanto, tudo são coisas
nossas, são nossas coisas já dizia o
gênio.
Jairo Ferreira
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