Alguns críticos
chegaram a falar bem do filme; disseram, inclusive,
que ele exigia uma nova crítica, ou melhor, que
ele já era essa nova crítica. A maioria,
porém, fundiu a cuca, havendo até aqueles
que partiram para a grossura, na falta de condições
para pichar o filme com argumentos convincentes (e inteligentes).
Delírio megalomaníaco, cabotinismo, exibicionismo,
pastiche de Godard, foram algumas das mais leves objeções
feitas por grande parte de nossa saudável crítica
de cinema a essa Mulher de Todos. Motivos mais
imediatos que, a meu ver, esclarecem a "fúria"
de nossos "paladinos" cinematográficos:
1) Rogério Sganzerla,
diretor da fita, nunca se deu ao trabalho de bajular
a crítica de cinema, antes, sempre investiu contra
ela, apontando as suas limitações, as
suas ridículas pretensões elitizantes
e, por extensão, a sua essência pequeno-burguesa.
2) A Mulher de Todos
desmistifica essa mesma crítica que, diante do
filme, ficou sem saber o que dizer e teve, na sua maioria,
de apelar, como já assinalei, para a grossura.
(É nessa hora que se faz sentir a ausência
dos Cahiers du Cinéma e outras revistas especializadas
internacionais: quando surge um filme como A Mulher
de Todos que exige da crítica que ela seja
também criadora).
O fato é que diante do
corajoso cinema "ruim" de Sganzerla, diante do peculiar
filme "comecial" que é A Mulher de Todos,
pouca gente soube falar alguma coisa que fizesse sentido.
É bastante lógico que grande parte da
crítica tenha investido furiosa contra o filme
de Sganzerla, pois ele ameaça exatamente toda
a sua lógica de raciocínio, todos os seus
padrões de julgamento tão arduamente construídos
durante anos e anos. Elementar, meu caro Watson. Para
um filme ser bom, segundo consta, ele precisa, em primeiro
lugar, se prestar a citações, revelar
influências desses ou daqueles cineastas, desses
ou daqueles filmes. Já A Mulher de Todos
é um filme muito mais sobre o novo que qualquer
outra coisa. O que é imperdoável.
Em segundo lugar, para um filme
ser bom ele precisa, por mais revolucionário
que seja, dizer presente aos modismos vigentes (mesmo
que só de passagem), ou, pelo menos, se enquadrar
dentro de um mínimo necessário de padrões
estabelecidos e consagrados, que determinam – ou elegem
– o que seja o bom cinema. A Mulher de Todos,
portanto, jamais seria um bom filme: é excessivamente
anárquico e excessivamente cafona; não
analisa o cafonismo e a anarquia, mas envolve-se com
eles e torna-se neles próprios. É um filme
por demais classe C. É um filme debochado e,
o que é pior, o deboche no caso atinge mais que
qualquer outra a classe dita "intelectual", exatamente
por ser realizado fora dos padrões por ela consagrados.
É um filme que atinge e, à sua maneira,
se comunica barbaridades, com um público também
classe C (de pouca ou nenhuma preocupação
intelectual e também de menor poder aquisitivo),
podendo mesmo dizer-se que é dirigido a ele (já
viram maior desaforo!?). Imagino o sucesso incrível
dessa A Mulher de Todos quando vier a ser exibido
nos Cineacs e adjacências! Vai ser a glória!
– como bem poderia dizer a Helena Ignês. E vai
ser mesmo!
A Mulher de Todos ou
Um Fim de Semana na Ilha dos Prazeres ou As
Aventuras Eróticas de Ângela Carne-e-Osso,
acompanha com audácia, muita irreverência
e com um humor surpreendentemente comunicativo, as façanhas
amorosas de uma milionária ("uma das 10 mais...
megalomaníacas") louquíssima, que vive
para o prazer o mais desenfreadamente possível.
Ângela Carne-e-Osso não pode ver homem
perto que logo torna-se uma vampira sexual: ataca, morde,
agride, maltrata, possui ou entrega-se, mas sempre senhora
da situação. Uma mulher única,
uma das personagens mais fantásticas e desafiadoras
já aparecidas no cinema brasileiro.
A Mulher de Todos é
melhor que O Bandido da Luz Vermelha (filme anterior
de Rogério Sganzerla)? Pergunta que invariavelmente
se coloca quando se fala acerca do filme. Confesso que
eu também caí nessa, quando assisti A
Mulher de Todos pela primeira vez, no V Festival
de Brasília. Agora, a uma segunda visão,
descubro que não é nada disso: não
há termo de comparação – nem esta
tem razão de ser. Por que não nos colocarmos
diante de A Mulher de Todos como diante de uma
coisa nova que, de resto, ela é? Só há
uma relação possível com O Bandido
da Luz Vermelha: como O Bandido, também
A Mulher de Todos exige uma espécie de
entrega, e uma participação algo singular
do espectador. Ou ele vai com o filme, entra por ele
adentro, e junto com ele, e aceita o convite de mergulhar
no mundo anárquico, desarvorado e insólito
de Ângela Carne-e-Osso, ou simplesmente sai do
cinema com a sessão pela metade.
O grande crime de A Mulher
de Todos é o de ser um filme classe C, que
não recua diante dos valores próprios
dos filmes classe C, antes utiliza-os criadoramente,
a partir do momento em que os adota anarquicamente e
envolve-se com eles. Foi com esses valores que Sganzerla
trabalhou a sua A Mulher de Todos e, o que é
mais importante, descobriu que eles têm um potencial,
uma violência e uma autenticidade ainda praticamente
inexplorados. Sganzerla dispôs-se a explorá-los
(o mau gosto, a cafonice, o erotismo barato e folhetinesco,
a grossura, a sujeira, a porcaria) e o fez muitíssimo
bem, com admirável coragem. E surgiu o filme
que está balançando o coreto de muita
gente (e so cinema brasileiro em geral). E a muita gente
não perdoa.
A Mulher de Todos: um
filme pornográfico? Não: um filme de sexo
desenfreado, em cores que se transformam feericamente,
de uma cena para outra, às vezes até na
mesma cena, e com uma Helena Ignês admirável
em todos os momentos, seja tirando a roupa vezes e mais
vezes, ou curtindo com a câmara, ou enfrentando
closes demorados e impiedosos que assustariam qualquer
atriz daqui ou de qualquer lugar. Sempre admirável,
Helena Ignês.
Jô Soares, parágrafo
final: sua notável caracterização,
sua monumental (e não só pelo tamanho
do ator) figura em cena, fazem de sua interpretação,
sem dúvida alguma, uma das mais fascinantes do
cinema brasileiro em todos os tempos.
Carlos Frederico
("O Dia", Rio de Janeiro, 1 de março de 1970)
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