As explosões necessárias

Brasil, primeira metade de 1968. Um rebelde de 22 anos lança um manifesto cinematográfico. Gustavo Dahl conclui O Bravo Guerreiro, a guerrilha aparece em Os Exilados, uma alusão clara a Régis Debray é feita em Jardim de Guerra, Nélson vira a mesa com Fome de Amor, Glauber Rocha filma em 16mm e cinco dias O Câncer. Há filmes de todos os lados, idéias em carrinho, heróis e não-heróis, câmera na mão e uma notável coincidência: todos os filmes citados são políticos, mesmo os que trazem a marca da história policial ou das aventuras de sexo. Alguma coisa explode, no outono. A imagem clara de um ângulo do Terceiro Mundo parece ser a grande preocupação dos jovens armados de luz e sombra que tentam um novo diálogo com o público – e isso é bom.

Há muita incerteza, pois o filme brasileiro novo não se define pela exatidão da mensagem ou bom comportamento dos personagens – tradições arquivadas por todos os que preferem retirar da dúvida um começo de luta. Dúvida sobre as instituições, sobre o discurso moral da classe dominante, sobre os ideais forjados por uma minoria que diz falar em nome da maioria, dúvida social – e estética – refletindo a necessidade de abrir novas frentes no cinema e na vida. Tome-se um filme padrão qualquer, entre os lançamentos da última semana – Subindo por Onde se Desce, por exemplo – e veja-se até onde um tema aparentemente social é freado, ameinzado, simplificado e entregue pronto para o consumo sem que nada seja pedido ao espectador, nenhum acréscimo, nenhum debate, nenhum raciocínio. A heroína da fita de Robert Mulligan, simpática em todas as horas, é vítima de um arranhão social, nunca de um câncer. Dedicada professora de visão suave e sensibilidade aguda envolve-se com os problemas de uma escola perigosa, tenta enfrentar a luta, quase desanima, mas, no último momento, tocada pelo ar de esperança que sempre marcou boa parte dos filmes (e dos heróis) norte-americanos, levanta o nariz, abre um sorriso e segue em frente, mesmo que durante o filme nada tenha enfrentado além de pequenas malcriações e um quase estupro. Para o espectador médio a quem se entregou a história média, o desgosto social foi salvo pela mestra média, sua coragem de boneca e sua total incapacidade de enxergar a verdadeira raiz dos males da escola, no final atribuídos à burocracia e ao eterno ardor da juventude.

Dessa calma-padrão, felizmente, não sofrem os novos filmes brasileiros. Nos termos do que se pode fazer num país como os Estados Unidos, o filme de Mulligan até que passa como – pelo menos – intenção simpática, embora completamente frustrada. Mas os jovens cineastas do Terceiro Mundo são inquietos, instáveis como sua economia, desesperados como seus personagens, incertos como sua política. Ao nível da procura, e do fazer tudo, é que devem ser recebidos e compreendidos – nunca como simples aventureiros, pois logicamente sua grande dúvida nasce de uma reflexão profunda, somada a um entusiasmo jovem que não é ardor nem malcriação. Entusiasmo que leva Neville d’Almeida a fazer, quase sem dinheiro e sem película, Jardim de Guerra, um estudo sobre as conseqüências do tráfico revolucionário na América Latina, e que será certamente uma das grandes surpresas deste ano. Ou que joga Sérgio Bernardes Filho além de uma fácil existência mundana à qual parecia destinado, pois SBF preferiu sofrer os dramas de um longa-metragem provocador (Os Exilados) a padecer no paraíso. Entusiasmo novo marcado pela reflexão: Nélson Pereira dos Santos se transforma, e Fome de Amor é um dos mais bonitos jogos de luz que se poderia fazer com dois temas chamados fortes: a política nasce do sexo. O Bravo Guerreiro e Câncer fecharão o ciclo, e entre eles passa, sem nome, O Bandido da Luz Vermelha, motivo final – e inicial – dessas previsões que tirei de várias frentes de trabalho, indo de roteiros a filmagensm de copiões a filmes prontos. O autor do Bandido, Rogério Sganzerla, tem a palavra (ou o último tiro), através do manifesto que lançou em São Paulo, maio de 1968, sob o título de Cinema Fora da Lei. Sei que os demais autores citados, no todo ou em parte, também encampariam o anticódigo de Rogério:

"1 – Meu filme é um far-west sobre o III Mundo. Isto é, fusão e mixagem de vários gêneros. Fiz um filme-soma; um far-west mas também musical, documentário, policial, comédia (ou chanchada?) e ficção científica. Do documentário, a sinceridade (Rossellini); do policial, a violência (Fuller); da comédia, o ritmo anárquico (Sennett, Keaton); do western, a simplificação brutal dos conflitos (Mann). 2 – O Bandido da Luz Vermelha persegue, ele, a polícia enquanto os tiras fazem reflexões metafísicas, meditando sobre a solidão e a incomunicabilidade. Quando um personagem não pode fazer nada, ele avacalha. 3 – Orson Welles me ensinou a não separar a política do crime. 4 – Jean-Luc Godadrd me ensinou a filmar tudo pela metade do preço. 5 – Em Glauber Rocha conheci o cinema de guerrilha feito à base de planos gerais. 6 – Fuller foi quem me mostrou como desmontar o cinema tradicional através da montagem. 7 – Cineasta do excesso e do crime, José Mojica Marins me apontou a poesia furiosa dos atores do Brás, das cortinas e ruínas cafajestes e dos seus diálogos aparentemente banais. Mojica e o cinema japonês me ensinaram a saber ser livre e – ao mesmo tempo – acadêmico. 8 – O solitário Murnau me ensinou a amar o plano fixo acima de todos os travellings. 9 – É preciso descobrir o segredo do cinema de Luís poeta e agitador Buñuel, anjo exterminador. 10 – Nunca se esquecendo de Histchcock, Eisenstein e Nicholas Ray. 11 – Porque o que eu queira mesmo era fazer um filme mágico e cafajeste cujos personagens fossem sublimes e boçais, onde a estupidez – acima de tudo – revelasse as leis secretas da alma e do corpo subdesenvolvido. Quis fazer um painel sobre a sociedade delirante, ameaçada por um criminoso solitário. Quis dar esse salto porque entendi que tinha que filmar o possível e o impossível num país subdesenvolvido. Meus personagens são, todos eles, inutilmente boçais – aliás como 80% do cinema brasileiro; desde a estupidez trágica do Corisco à bobagem de Boca de Ouro, passando por Zé do Caixão e pelos párias de Barravento. 12 – Estou filmando a vida do Bandido da Luz Vermelha como poderia estar contando os milagres de São João Batista, a juventude de Marx ou as aventuras de Chateaubriand. É um bom pretexto para refletir sobre o Brasil da década de 60. Nesse painel, a política e o crime identificam personagens do alto e do baixo mundo. 13 – Tive de fazer cinema fora da lei aqui em São Paulo porque quis dar um esforço total em direção ao filme brasileiro liberador, revolucionário também nas panorâmicas, na câmara fixa e nos cortes secos. O ponto de partida de nossos filmes deve ser a instabilidade do cinema – como também da nossa sociedade, da nossa estética, dos nossos amores e do nosso sono. Por isso, a câmara é indecisa; o som fugidio; os personagens medrosos. Nesse País tudo é possível e por isso o filme pode explodir a qualquer momento."

Maurício Gomes Leite (Jornal do Brasil, 1 de junho de 1968)