De A a U
a) Vejo O ABISMO como
uma possibilidade de avançar terreno inexplorado
desenvolvendo, sobretudo, a linguagem de um cinema urbano.
É um trailer sobre uma futura obra não
só no cinema mas, principalmente, na música.
Com música temos um processo sintético
muito mais eficaz, mais rápido e evoluído
do que a veiculação conceitual das palavras.
Uma música pode ajudar a resolver os problemas
do povo brasileiro muito mais do que 10 livros.
b) Ele é conseqüência
da visão de tudo como um todo; da constatação
de que todas as coisas são uma coisa só,
sob diversos estágios e aparentes diferenças.
Tem um sentido cósmico. É também
a valorização da paisagem; uma tentativa
de filmar com ritmo nosso, tentar captar uma topografia,
como filmar uma praia brasileira, dar um tratamento
à paisagem. O Brasil tem uma vastidão
topográfica encontrada também na música
de Villa-Lobos e João Gilberto. Politicamente,
é importante que o Brasil conheça a si
mesmo. O ABISMO é uma oportunidade de
auto-conhecimento não só do cinema mas
do país.
c) Jimi Hendrix é o grande
sinal do filme. Até então o cinema brasileiro
tinha se voltado para sua realidade imediata. O ABISMO
é uma interiorização; um mergulho
no inconsciente e uma valorização astral.
A verdade do filme é que uma pessoa assim não
aparece por acaso. Hendrix não é só
um genial técnico, arranjador, guitarrista, cantor
e compositor. É um grande pensador. Ele consegue
que esta forma esteja a serviço de uma idéia.
A obra de arte é sempre regional, nacional, internacional,
universal. O problema do homem não está
nas estrelas. Está no próprio homem, sua
terra, sua posse, na sua mente e liberdade. E não
chegaremos a essa liberdade – que é o tema fundamental
a qualquer tipo de experimentação de obra
de arte – sem passarmos pelo pensamento de Jimi Hendrix.
Por que? Porque ele fala sobre o espelho da mente como
espelho de uma realidade. Uma transformação
interior deve preceder essa transformação
inevitável e necessária. Você tem
que passar pelo desconhecido. Hendrix é um pensador
tão importante quanto Guevara.
d) O ABISMO tem vários
níveis de leitura: é uma estória
banal, um clichê. É também um ensaio,
uma reflexão sobre a relação da
poesia com certas ciências e a música.
Possui também um nível esotérico
que a literatura usa e abusa e achei que o cinema também
poderia. Acho que ele é mais do que atual. É
extremamente cinematográfico e precoce. Não
é culturalista nem analítico. Talvez nesse
ponto ele se ressinta de ser mais explicativo e mais
acessível ao grande público como era minha
intenção inicial nas primeiras variantes
do roteiro. É uma sugestão de como também
transformar o cinema brasileiro para melhor.
e) O fato dele estar entrando
agora em 84 na Cândido Mendes me parece um ótimo
convite à reflexão e ao mesmo tempo não
tentar impor nada. Todas essas teses que em 78 eram
fecundantes e oportunas, hoje, são prementes.
A idéia do filme é que se precisa fazer
uma melhor distribuição de justiça,
de riqueza, de bens e todo tipo de benfeitorias. E para
isso é preciso relacionar a arte moderna com
a arte primitiva. E mais: Para as transformações
de ordem coletiva é preciso também haver
um grande mergulho no inconsciente coletivo. Resolver
o problema individual para se chegar ao coletivo e conciliar
o eu e o nós, a revolta e a revolução.
Nesse sentido o filme contém, de uma forma ainda
sintética, um ideário.
f) É um filme que levanta
o astral. Não tem a concessão fácil
da vulgaridade, de apelação, do diálogo
rasteiro ou efeito pelo efeito. Sem nenhuma voracidade.
É um filme que procura generosamente um proposta
de unificação de todos os mundos possíveis.
Tudo está em movimento. Ele se propõe
a ser movimento e ascendente.
g) Alguns rolos acho extremamente
bem sucedidos em densidade e luminosidade. Gosto sobretudo
da cinegrafia do filme, da grafia, do traço,
da respiração. Além disso tem um
rolo inteiro com o último concerto de Jimi Hendrix
que me parece um material altamente relevante de grande
impacto histórico.
h) o fato de não ser
entendido não significa que não seja bom.
É uma questão de entendimento. Existe
muito material que a gente ouve e não gosta.
E depois de duas, três vezes acaba se apaixonando.
Isso depende de cada espectador. È um filme feito
para não encher as pessoas, não incomodar.
Mas também não é um filme explicitado.
i) O ABISMO pode ser
compreensível para uns e para outros ninguém
entende nada. É que o filme não é
analítico, está ligado à tentativa
de ser sintético. Foi uma escolha. A escolha
da síntese. Mas dizem que o cinema deve ser sintético,
simples. Gostaria que fosse mais simples, mais forte.
É bom lembrar que o cinema é também
um ponto de partida, não é só de
chegada. Não se deve somente endeusá-lo
mas também criticá-lo. Quem gosta de cinema
vai se interessar pela maneira como se apresenta esta
noção do que é cinema.
j) O tema permanente em meu
trabalho? A dificuldade da gente sair do individual
ao coletivo e uma tentativa de promover um modernismo
estético, uma coisa bárbara e nossa, seguir
a fórmula osvaldiana e noelina das coisas nossas
e ao mesmo tempo assimilar uma cultura cinematográfica
do cinema do mundo inteiro, para tentar descobrir o
coração e a alma das ruas na cidade.
l) Quero fazer também
filmes populares. Todo tipo de trabalho. Filmes pra
ganhar dinheiro, prêmios, criar condições
pra fazer outros filmes. Filmes pra público e
também filmes que consigam influenciar a produção,
que criem uma proposta, uma estética, uma hipótese
diferente. Se todas as produções feitas
no país tivessem também uma informação
de como tratar qualquer tipo de gênero, o cinema
brasileiro poderia ser atualizado. Todos os gêneros
poderiam ser viáveis se houver no cinema brasileiro
essa coisa fundamental que é o cinema. Por isso
eu me sinto satisfeito com O ABISMO.
m) O problema do cinema continua
sendo a distribuição. Se, por lei, os
exibidores, entidades privadas, são obrigados
a veicular produtos brasileiros, muito mais a televisão
que é propriedade do Governo assegurada a alguns
concessionários. É preciso uma reserva
de mercado, como existe na informática. Ou pelo
menos a existência de co-produção
de cinema e tv. A televisão vive do cinema. A
não ser nas novelas quando ela copia mesmo o
cinema nacional. Fora isso são enlatados estrangeiros.
A reserva é necessária até mesmo
por uma questão de evasão de divisas.
Se eles exibem tantos abacaxis, nós também
sabemos fazer abacaxis!
n) É claro que os problemas
de classe e veiculação são prementes.
Mas porque não se falar também de cinema?
Pelo menos pra gente não incorrer nos mesmos
erros. Por que não se discutir a formação
de uma estética? O Nelson, na França,
disse que precisamos salvar o Cinema. O Glauber já
falava em levantar esse barco, reunificatribo, criar
condições pra levantar o astral do cinema
brasileiro. É preciso muita água e sabão
e esfregação. Pelo menos uma discussão
interna para depois chegar a um debate público.
Não precisamos repetir os erros de Hollywood
há 40 anos, ou da Itália, no cinema fascista,
ou outros equívocos de distorção
e gigantismo históricos.
o) A vitória em Cannes
confirma essa possibilidade tão desejada de fazermos
um cinema criativo. É muito bom torcer pelos
outros. Com isso você faz bem pra você e
também pros outros. Fazer desse inferno, um paraíso.
Tentar realizar uma democracia multipartidária
no cinema. Tem lugar pra todo mundo; pro abacaxi e pra
obra-prima. Porque só um ou outro?
p) Vanguarda, centro e retaguarda
são uma coisa só. É preciso uma
frente ampla contra a ignorância, o obscurantismo,
a prepotência e o preconceito. Não podemos
ter intolerância no vídeo, nos palcos,
nas telas e nas redações contra o filme
brasileiro de valor histórico, cultural ou mesmo
de interesse comercial.
q) O pessoal de cinema está
dormindo com a questão dos independentes. No
vídeo e no curta-metragem já está
funcionando com grande eficácia. Existem condições
objetivas para valorização do independente
na medida em que estamos vivendo o fim de uma tecnocracia.
O autoritarismo quer que as pessoas fiquem dispersas.
É preciso uma unificação.
r) Os filmes mais sérios
e importantes da década de 70 são aqueles
totalmente desacreditados na época em que foram
rodados. São os que, hoje, dão show não
só de pensamento político e estético,
procurando valorizar o que é nosso, mas também
de estrutura de linguagem. São filmes realizados
ao nível de provável não das certezas.
De repente um filme desses tem o poder de reciclar novos
estímulos de informação mais que
um computador. O computador é programado, esses
filmes programam a si mesmos; se fazem por si e se transformam.
Vão do bom ao ruim como a arte brasileira em
geral, vai de uma extrema timidez a uma pretensão
revolucionária; vai do péssimo ao ótimo
com a maior tranqüilidade. Essa é nossa
originalidade. Acho que esses filmes teriam respostas
em festivais internacionais porque há elaboração
e pesquisa.
s) Como diz o Nelson, a gente
tem que salvar o Cinema brasileiro e também essas
dissidências estéticas somando todos os
erros e acertos. Se em 60 havia idéias, em 70
encontramos o centralismo. De 80 para cá, o bom
mesmo, a coisa mais moderna, são os filmes antigos.
Os modernos são extremamente velhos com exceções
honrosas como o filme do Nelson.
t) O grande mestre será
sempre João Gilberto. De instigante hoje acho
o Arrigo Barnabé porque leu, estudou, é
uma pessoa séria. Ah, mas no palco ele berra,
grita, faz o diabo, toda uma encenação
como locutores esportivos ou narradores policialescos.
Mas aquilo é uma crítica a uma realidade;
não é uma sujeição a fórmulas
e modismos. Como ele mesmo diz, a gente tem muito a
aprender. Uma análise mais profunda da cultura
brasileira tem que passar primeiro pela análise
estética do cinema brasileiro.
u) Eu faço filmes pra
poder cumprir uma trajetória, uma missão;
uma prioridade fundamental e uma questão de oxigênio.
Não me diria um religioso mas também não
um ateu convencional. Não sou tão negativo
a ponto de duvidar das aparências porque não
vejo. Eu desconfio. Isso O ABISMO dá:
a possibilidade de que se você não entender
o filme, pelo menos desconfia de que lá tem uma
grande informação de que a vida é
um negócio maravilhoso que vale a pena ser vivido
e temos que cultivá-la, valorizá-la sobretudo
com as artes; porque elas são o extremo requinte
da vida e podem também dar uma noção
de justiça tão importante nos dias de
hoje.
Rogério Sganzerla
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