Cara & Alma – 1984

De A a U

a) Vejo O ABISMO como uma possibilidade de avançar terreno inexplorado desenvolvendo, sobretudo, a linguagem de um cinema urbano. É um trailer sobre uma futura obra não só no cinema mas, principalmente, na música. Com música temos um processo sintético muito mais eficaz, mais rápido e evoluído do que a veiculação conceitual das palavras. Uma música pode ajudar a resolver os problemas do povo brasileiro muito mais do que 10 livros.

b) Ele é conseqüência da visão de tudo como um todo; da constatação de que todas as coisas são uma coisa só, sob diversos estágios e aparentes diferenças. Tem um sentido cósmico. É também a valorização da paisagem; uma tentativa de filmar com ritmo nosso, tentar captar uma topografia, como filmar uma praia brasileira, dar um tratamento à paisagem. O Brasil tem uma vastidão topográfica encontrada também na música de Villa-Lobos e João Gilberto. Politicamente, é importante que o Brasil conheça a si mesmo. O ABISMO é uma oportunidade de auto-conhecimento não só do cinema mas do país.

c) Jimi Hendrix é o grande sinal do filme. Até então o cinema brasileiro tinha se voltado para sua realidade imediata. O ABISMO é uma interiorização; um mergulho no inconsciente e uma valorização astral. A verdade do filme é que uma pessoa assim não aparece por acaso. Hendrix não é só um genial técnico, arranjador, guitarrista, cantor e compositor. É um grande pensador. Ele consegue que esta forma esteja a serviço de uma idéia. A obra de arte é sempre regional, nacional, internacional, universal. O problema do homem não está nas estrelas. Está no próprio homem, sua terra, sua posse, na sua mente e liberdade. E não chegaremos a essa liberdade – que é o tema fundamental a qualquer tipo de experimentação de obra de arte – sem passarmos pelo pensamento de Jimi Hendrix. Por que? Porque ele fala sobre o espelho da mente como espelho de uma realidade. Uma transformação interior deve preceder essa transformação inevitável e necessária. Você tem que passar pelo desconhecido. Hendrix é um pensador tão importante quanto Guevara.

d) O ABISMO tem vários níveis de leitura: é uma estória banal, um clichê. É também um ensaio, uma reflexão sobre a relação da poesia com certas ciências e a música. Possui também um nível esotérico que a literatura usa e abusa e achei que o cinema também poderia. Acho que ele é mais do que atual. É extremamente cinematográfico e precoce. Não é culturalista nem analítico. Talvez nesse ponto ele se ressinta de ser mais explicativo e mais acessível ao grande público como era minha intenção inicial nas primeiras variantes do roteiro. É uma sugestão de como também transformar o cinema brasileiro para melhor.

e) O fato dele estar entrando agora em 84 na Cândido Mendes me parece um ótimo convite à reflexão e ao mesmo tempo não tentar impor nada. Todas essas teses que em 78 eram fecundantes e oportunas, hoje, são prementes. A idéia do filme é que se precisa fazer uma melhor distribuição de justiça, de riqueza, de bens e todo tipo de benfeitorias. E para isso é preciso relacionar a arte moderna com a arte primitiva. E mais: Para as transformações de ordem coletiva é preciso também haver um grande mergulho no inconsciente coletivo. Resolver o problema individual para se chegar ao coletivo e conciliar o eu e o nós, a revolta e a revolução. Nesse sentido o filme contém, de uma forma ainda sintética, um ideário.

f) É um filme que levanta o astral. Não tem a concessão fácil da vulgaridade, de apelação, do diálogo rasteiro ou efeito pelo efeito. Sem nenhuma voracidade. É um filme que procura generosamente um proposta de unificação de todos os mundos possíveis. Tudo está em movimento. Ele se propõe a ser movimento e ascendente.

g) Alguns rolos acho extremamente bem sucedidos em densidade e luminosidade. Gosto sobretudo da cinegrafia do filme, da grafia, do traço, da respiração. Além disso tem um rolo inteiro com o último concerto de Jimi Hendrix que me parece um material altamente relevante de grande impacto histórico.

h) o fato de não ser entendido não significa que não seja bom. É uma questão de entendimento. Existe muito material que a gente ouve e não gosta. E depois de duas, três vezes acaba se apaixonando. Isso depende de cada espectador. È um filme feito para não encher as pessoas, não incomodar. Mas também não é um filme explicitado.

i) O ABISMO pode ser compreensível para uns e para outros ninguém entende nada. É que o filme não é analítico, está ligado à tentativa de ser sintético. Foi uma escolha. A escolha da síntese. Mas dizem que o cinema deve ser sintético, simples. Gostaria que fosse mais simples, mais forte. É bom lembrar que o cinema é também um ponto de partida, não é só de chegada. Não se deve somente endeusá-lo mas também criticá-lo. Quem gosta de cinema vai se interessar pela maneira como se apresenta esta noção do que é cinema.

j) O tema permanente em meu trabalho? A dificuldade da gente sair do individual ao coletivo e uma tentativa de promover um modernismo estético, uma coisa bárbara e nossa, seguir a fórmula osvaldiana e noelina das coisas nossas e ao mesmo tempo assimilar uma cultura cinematográfica do cinema do mundo inteiro, para tentar descobrir o coração e a alma das ruas na cidade.

l) Quero fazer também filmes populares. Todo tipo de trabalho. Filmes pra ganhar dinheiro, prêmios, criar condições pra fazer outros filmes. Filmes pra público e também filmes que consigam influenciar a produção, que criem uma proposta, uma estética, uma hipótese diferente. Se todas as produções feitas no país tivessem também uma informação de como tratar qualquer tipo de gênero, o cinema brasileiro poderia ser atualizado. Todos os gêneros poderiam ser viáveis se houver no cinema brasileiro essa coisa fundamental que é o cinema. Por isso eu me sinto satisfeito com O ABISMO.

m) O problema do cinema continua sendo a distribuição. Se, por lei, os exibidores, entidades privadas, são obrigados a veicular produtos brasileiros, muito mais a televisão que é propriedade do Governo assegurada a alguns concessionários. É preciso uma reserva de mercado, como existe na informática. Ou pelo menos a existência de co-produção de cinema e tv. A televisão vive do cinema. A não ser nas novelas quando ela copia mesmo o cinema nacional. Fora isso são enlatados estrangeiros. A reserva é necessária até mesmo por uma questão de evasão de divisas. Se eles exibem tantos abacaxis, nós também sabemos fazer abacaxis!

n) É claro que os problemas de classe e veiculação são prementes. Mas porque não se falar também de cinema? Pelo menos pra gente não incorrer nos mesmos erros. Por que não se discutir a formação de uma estética? O Nelson, na França, disse que precisamos salvar o Cinema. O Glauber já falava em levantar esse barco, reunificatribo, criar condições pra levantar o astral do cinema brasileiro. É preciso muita água e sabão e esfregação. Pelo menos uma discussão interna para depois chegar a um debate público. Não precisamos repetir os erros de Hollywood há 40 anos, ou da Itália, no cinema fascista, ou outros equívocos de distorção e gigantismo históricos.

o) A vitória em Cannes confirma essa possibilidade tão desejada de fazermos um cinema criativo. É muito bom torcer pelos outros. Com isso você faz bem pra você e também pros outros. Fazer desse inferno, um paraíso. Tentar realizar uma democracia multipartidária no cinema. Tem lugar pra todo mundo; pro abacaxi e pra obra-prima. Porque só um ou outro?

p) Vanguarda, centro e retaguarda são uma coisa só. É preciso uma frente ampla contra a ignorância, o obscurantismo, a prepotência e o preconceito. Não podemos ter intolerância no vídeo, nos palcos, nas telas e nas redações contra o filme brasileiro de valor histórico, cultural ou mesmo de interesse comercial.

q) O pessoal de cinema está dormindo com a questão dos independentes. No vídeo e no curta-metragem já está funcionando com grande eficácia. Existem condições objetivas para valorização do independente na medida em que estamos vivendo o fim de uma tecnocracia. O autoritarismo quer que as pessoas fiquem dispersas. É preciso uma unificação.

r) Os filmes mais sérios e importantes da década de 70 são aqueles totalmente desacreditados na época em que foram rodados. São os que, hoje, dão show não só de pensamento político e estético, procurando valorizar o que é nosso, mas também de estrutura de linguagem. São filmes realizados ao nível de provável não das certezas. De repente um filme desses tem o poder de reciclar novos estímulos de informação mais que um computador. O computador é programado, esses filmes programam a si mesmos; se fazem por si e se transformam. Vão do bom ao ruim como a arte brasileira em geral, vai de uma extrema timidez a uma pretensão revolucionária; vai do péssimo ao ótimo com a maior tranqüilidade. Essa é nossa originalidade. Acho que esses filmes teriam respostas em festivais internacionais porque há elaboração e pesquisa.

s) Como diz o Nelson, a gente tem que salvar o Cinema brasileiro e também essas dissidências estéticas somando todos os erros e acertos. Se em 60 havia idéias, em 70 encontramos o centralismo. De 80 para cá, o bom mesmo, a coisa mais moderna, são os filmes antigos. Os modernos são extremamente velhos com exceções honrosas como o filme do Nelson.

t) O grande mestre será sempre João Gilberto. De instigante hoje acho o Arrigo Barnabé porque leu, estudou, é uma pessoa séria. Ah, mas no palco ele berra, grita, faz o diabo, toda uma encenação como locutores esportivos ou narradores policialescos. Mas aquilo é uma crítica a uma realidade; não é uma sujeição a fórmulas e modismos. Como ele mesmo diz, a gente tem muito a aprender. Uma análise mais profunda da cultura brasileira tem que passar primeiro pela análise estética do cinema brasileiro.

u) Eu faço filmes pra poder cumprir uma trajetória, uma missão; uma prioridade fundamental e uma questão de oxigênio. Não me diria um religioso mas também não um ateu convencional. Não sou tão negativo a ponto de duvidar das aparências porque não vejo. Eu desconfio. Isso O ABISMO dá: a possibilidade de que se você não entender o filme, pelo menos desconfia de que lá tem uma grande informação de que a vida é um negócio maravilhoso que vale a pena ser vivido e temos que cultivá-la, valorizá-la sobretudo com as artes; porque elas são o extremo requinte da vida e podem também dar uma noção de justiça tão importante nos dias de hoje.

Rogério Sganzerla