O Bandido da Luz Vermelha

O Bandido da Luz Vermelha é o filme de estréia do jovem cineasta paulista Rogério Sganzerla, premiado em 1966 no II Festival JB-Mesbla com o ótimo curta-metragem Documentário, onde dois rapazes passeiam pelas ruas de São Paulo, discutem sobre fazer ou não fazer um filme e concluem o papo – e o "documentário" – dizendo que da próxima vez o filme será melhor. Já aí se manifestava a irreverência ae a ironia do cineasta que, dois anos depois, viria a realizar O Bandido da Luz Vermelha (1968), irônico e irreverente. E algo mais.

Sem papas na língua, em várias entrevistas Rogério Sganzerla deixou patenteada a sua posição face ao cinema nacional: contra as panelinhas e igrejinhas, constatando que o cinema novo hoje já não tem mais a improtância de antes, entre outras coisas por ter adotado a política de "grupinho" e, respondendo aos que o acusam de ser o seu filme influenciado por Godard, ele responde que sim, mas é claro, pois Godard é o cineasta mais importante do momento, e é mais do que justo que ele, Sganzerla, um cineasta dos nossos tempos, seja influenciado por Godard, embora reconhecendo que esta é uma influência quase sempre estranha para o cinema brasileiro, por partir de um cinema de superestrutura (enquanto o nosso é subdesenvolvido); daí O Bandido da Luz Vermelha representar quanto a este aspecto um passo para a libertação da influência godardiana (sempre bem assimilada e transportada com êxito para o cenário brasileiro, diga-se de passagem) sobre o cineasta em busca de sua própria linguagem e da comunicação mais direta com o público. Sganzerla também reconhece que o seu O Bandido não é um filme tão direto e fluente como pretendia, que é, às vezes, algo confuso para o grande público (no que concordo apenas em parte, pois assisti ao filme com um público não de aficcionados e a receptividade foi das melhores), mas promete que o seu segundo filme já concluído, A Pistoleira, é bem mais claro para o público e bem mais livre das influências, godardianas ou não, que teriam entravado o livre curso pretendido pelo Bandido.

Numa época em que o cinema novo (antes a maior expressão de um cinema pobre, subdesenvolvido e antiindustrial) já realiza obra em cores e de alto gabarito técnico e comercial, eis que surge – passados menos de 10 anos – o que poderíamos chamar de uma nova leva de cineastas que, embora sem se oporem ao cinema novo (com o qual possuem evidentes afinidades), enfrentam hoje praticamente os mesmos problemas de ordem econômica dos primeiros tempos do cinema novo, não estando também amparados em grandes produtores ou em distribuidoras poderosas. E assim, Sganzerla faz O Bandido, um filme pobre e sujo e vários são os que filmam pelo processo de ampliação de 16 para 35mm, em parto difícil e trabalhoso. Filmes de orçamento mínimo e que, quase sempre, virão a encontrar dificuldades para serem lançados (inda mais bem lançados!) e que não terão condições de armarem um eficiente esquema publicitário. É o que poderíamos chamar de um cinema marginal, que está hoje talvez bem mais próximo do cinema independente americano que do próprio cinema novo brasileiro.

O cinema novo abriu os horizontes, reiniciou o cinema brasileiro e conseguiu ganhar para ele muitas e importantes vitórias. Deixou porém de se realizar em muitos outros terrenmos, um deles o da conquista do público, insistindo em filmes que, quando muito, poderiam interessar a uma meia dúzia de iniciados. Quanto a esta nova leva, é patente o seu reconehcimento ao cinema novo, mas também a sua recusa em se deixar paternizar por ele; em reconhecer que ele se frustrou em muitos pontos, mas qque com isto também deixou uma grande lição: a do que não se deve fazer.

A lição está sendo aprendida. E O Bandido da Luz Vermelha é a sua primeira demonstração.

Com O Bandido, Sganzerla quebra a imagem do marginal bonzinho, ocultando premeditada, literária e demagogicamente a problemática social. nada disso. O enfoque é antes existencial (sob um aspecto anárquico) do que qualquer outra coisa. O bandido do filme é tão-somente isto: um bandido. Safado, sem-vergonha, gosta de roubar e – mais ainda – de matar. São coisas simples. E deixa o barco correr. Não há sentimentalismos nem dramas de consciência. Um verdadeiro selvagem urbano. Simpático e asqueroso; agressivo e desapiedado. Um homem dos nossos tempos. E que tempos são esses? O bandido circula em bairro marginal de São Paulo, nos seus cabarés infectos de 3ª categoria, nos seus cinemas onde populam os homossexuais, nas suas noites de prostitutas convictas e satisfeitas (que jeito?), nos seus bilhares desocupados, nas suas ruas de miséria impudica, nas suas favelas nauseabundas onde as crianças brincam no lixo, parecendo grotescas figuras de ficção científica, nas suas viaturas policiais histéricas e impotentes, no submundo da politicalha, onde a corrupção e o crime são a tônica. Tudo coisa do nosso tempo. E que tempos são esses?

O Bandido não esclarece. Constata. O Bandido não critica. Exibe sem cerimônia. O Bandido é um filme grosso. Com a existência de um marginal ou de um policial fanático (não é à toa que os dois personagens acabam mortos, lado a lado). Como a absurda verdade do subdesenvolvimento, da miséria, do crime passional, da falta de dinheiro em casa pra comprar o leite das crianças. O Bandido mergulha de cabeça no lixo e na podridão do nosso mundo. Esse mundo existe. Que mundo é esse?

Carlos Frederico (O Dia, 25 de maio de 1969)