A luz do bandido

Que tipo de intervenção estética você tinha em mira quando fez O Bandido da Luz Vermelha na virada dos anos 60?

Não se trata de intervenção. Medicina homeopática não supõe a existência do bisturi. Não se trata de medicina alopática. Trata-se de uma operação radical. O que estava em jogo era uma concepção radical de cinema.

Em que sentido?

Eu queria um filme que não tivesse nada a ver com sociologia, psicologia e outras convenções da época. Eu queria um personagem que unisse as cenas. Na época, São Paulo não tinha a violência que tem hoje. São Paulo pode ostentar, hoje, o título de cidade mais violenta da América do Sul. Em média, dez pessoas são assassinadas por dia em São Paulo, quatrocentos carros são roubados e nem se fala no número de assaltos com a cumplicidade ou a omissão da polícia. A morte pode estar em cada esquina. O meu trabalho se propunha a ser uma comédia criminal. Era o primeiro esforço para se fazer um retrato falado da grande metrópole. É quase trágico este faroeste do Terceiro Mundo. Depois pensamos em fazer o filme através de um narrador esportivo. O crítico Francisco de Almeida Salles chamou O Bandido da Luz Vermelha de ópera-bufa sobre a cidade de São Paulo.

Existe uma história ou uma lenda de que o cinema produzido por Rogério Sganzerla e por Júlio Bressane sempre resultou em fracasso de público. Em que medida a história comercial do Bandido desmente essa mitologia?

O Bandido da Luz Vermelha foi lançado em 42 salas de cinema em São Paulo. É um filme que se pagou em uma semana. Esta lenda foi espalhada pelo pessoal do cinemão. A Mulher de Todos deu o dobro da renda do que O Bandido da Luz Vermelha. Copacabana Mon Amour e Sem Essa Aranha não conseguiram certificado de boa qualidade. Uma burrice. Eram filmes feitos com a câmera na mão. Mas quando estes filmes foram exibidos em Londres e Nova York despertaram grande interesse. Ou seja: não fizeram sucesso porque não foram lançados. Ou faz a coisa direito ou não faz. Chegaram a esconder seis mil cartazes do filme. Mas msmo assim o Bandido se pagou. Só os filmes do Mazzaropi conseguiram mais público do que O Bandido da Luz Vermelha. O meu cinema é popular. Não é elitista, decadente ou pedante. Tem apelo popular e tem algo fundamental que é o ritmo. Nossa aristocracia cabocla não aprendeu a rimar. Cinema não se aprende na escola.

Como o bandido da luz vermelha entrou no filme?

Eu tinha acabado de ler um livro sobre filmes que trabalham com personagens reais. Cinema não é arte individual. É algo que tem de funcionar entre as massas. Nesta época, o bandido da luz vermelha estava em plena ação. Os jornais diziam que ele entrava nas casas assobiando músicas do Roberto Carlos. Mas evidentemente o personagem era um moero pretexto para mostrar a realidade. O bandido da luz vermelha, o personagem real, está preso ilegalmente. Ele tratava bem as vítimas. Sua ação ainda era ântica. Ele distribuía o que arrecadava nos assaltos com os mais necessitados. Hoje o crime é diferente. Existem quadrilhas frias e implacáveis. Isto foi se implantando a partir de 64. O bandido era uma espécie de Zorro dos pobres. Ele tem relação com toda a cordialidade de uma época. Ele devia ser indultado e solto. Assaltava. Matou uma pessoa, já cumpriu a sua pena. Este seria o tema de um segundo filme sobre o bandido. Eu cheguei a fazer um projeto, mas não foi possível realizá-lo.

Existe uma cobrança de que, depois da explosão de O Bandido da Luz Vermelha, você não teria realizado nada mais à altura. Em que medida concorda com esta observação?

Orson Welles fez nada mais do que 39 filmes. Eu não fiz mais do que oito. Então eu acho que tem que perguntar isso ao pessoal que come macarão e arrota peru. Acho que quem fala isto são as mesmas pessoas que me impediram o acesso aos meios de produção. É tudo uma aberração tropical de um bando de parasitas e invejosos. É como o samba na década de 30: a burocracia sufocou o cinema.

Em que medida toda uma abertura prospectiva projetada pelo Bandido da Luz Vermelha foi explorada pelo cinema brasileiro na perspectiva de um cinema urbano?

Estes espetáculos de violência gratuita que se fazem fundindo uma coisa e outra de uma forma modernosa não passam de tentativas frustradas de refletir a nossa realidade. E principalmente as cenas de viol6encia e as cenas de amor que são uma gaiatice de fazer dó. Nosso cinema involuiu. Temos bons fotógrafos. Mas a nível de roteiro e de composição de personagens estamos em um estágio pré-crítico. Era preciso que se voltasse a Lumière e Méliès. E mesmo Griffith ainda não foi alcançado. O problema é que não se conhece a história do cinema e nem a história das artes. Quando passa um filme do Stroheim não tem ninguém pra assistir. Estão todos em seus videocassetes vendo filmes modernosos. É como nas novelas da Manchete: a mulher diz "me larga" e não tem ninguém segurando.

* O Bandido da Luz Vermelha: em cartaz na sessão Classe A, da Rede Globo, hoje, às 00h45.

Severino Francisco
(Jornal de Brasília, 1º de agosto de 1990)