Abismu (Sois Todos de Mu e Não Sabeis)
Brasil, 1977
Como outros filmes de Sganzerla, Abismu é para ser amado ou deixado em paz (ver a crítica de Ruy Gardnier para O Signo do Caos). O próprio Sganzerla revelou que o argumento do filme sugeria uma trama bem banal, com intrigas, assassinato, perseguições, deixando toda a parcela filosófica e ocultista (poderíamos dizer esotérica) apenas como pano de fundo. O resultado seria até comercial, se o processo assim permitisse – o que definitivamente não ocorreu, pois Abismu leva a disjunção narrativa (recorrência do cinema marginal) quase ao ponto da ruptura. É um filme "dilapidado", como se invertesse o processo artístico tradicional para fazer o caminho inusitado: da escultura em direção à pedra bruta. Do filme noir rumo à desfuncionalidade de qualquer de seus elementos constitutivos (a femme fatale, o magnata corrupto, o matador); da narrativa em direção à simples exposição de imagens. Liberados de sua função e uso, os objetos e as paisagens assumem uma linguagem própria. Um revólver em Abismu tem uma significação emancipada do sujeito que o manipula: a exploração abusiva desse objeto no cinema (o filme de Sganzerla já pertence a uma cultura cinematográfica pós-saturação de signos) lhe concedeu vida autônoma à justa medida que lhe dissipou a funcionalidade (a mesma lógica de saturação, curiosamente, vem conduzindo uma parte do cinema americano a uma espécie de "estado ideal" de funcionamento da imagem, "otimização" do processo significante no cinema – como pode ser lido em alguns textos de Contracampo).

Abismu possui tanto imagens fortes (Wilson Grey lambendo o cano do revólver) quanto outras puramente poéticas (o horizonte e o mar), além daquelas que tendem à alegoria, todas extremamente evocativas em sua ambigüidade. Há, também, o ar soturno da cena antológica no planetário, com José Mojica Morins, como a observar a integração intergaláctica e supra-cósmica proposta por Sganzerla, exclamando: "Boçais e recalcados de todo o mundo, uni-vos!". Respostas são dadas, provocações são lançadas, mas o filme não escolhe um viés agressivo e nele se esgota. Ao contrário disso, assim como do negativismo que o título indicia, seu principal vetor é de exaltação positiva (de um inconsciente coletivo, do mistério das origens, das vastidões topográfica e cultural do Brasil, de Hendrix). O filme tem um modo jovial de expressão e uma liberdade formal cativantes, do que as cenas de monólogo talvez forneçam os melhores exemplos (Zé Bonitinho seguido de perto pela câmera dizendo que vem "viajando séculos e séculos para lançar luz sobre esse planeta refratário ao progresso... Sois todos de Mu e não sabeis!"). Que não faltam frases de efeito à obra de Rogério Sganzerla, todos que a conhecem já sabem. Abismu, no entanto, é o filme em que ele praticamente não utilizou falas que não fossem de efeito. Todas as linhas, sejam elas de diálogo, monólogo ou comentários em off, ampliam uma carga antinaturalista e axiomática muito evidente na obra do cineasta. De um monólogo de Madame Zero (Norma Bengell) sai a importante frase: "não era arqueologia o que eu fazia, era poesia". Na idéia geral do filme, a melhor pesquisa arqueológica realizada em solos americanos é menos reveladora que um acorde ou um verso de Jimi Hendrix, a quem é concedida uma performance na íntegra, justamente no meio do filme, para configurá-lo como núcleo irradiador da obra. Antes da cena do show, há a imagem estática do músico acompanhada de uma voz feminina: "Nós seremos ultrapassados, ele não". E, ao final da cena, impossível não se divertir com a dublagem da voz do músico quando ele se dirige à platéia, "molecagem" essencial e absolutamente ausente no cinema brasileiro feito hoje.

A música de Jimi Hendrix é a nuvem sonora que paira sobre toda a América, sobre todo o mundo, a projeção hologramática de uma mente cuja genialidade é capaz de atravessar diversas almas e abraçar o universo. A guitarra de Hendrix é o que dá o sentido de Uno almejado pelo filme (ou pelo "filmu", como aparece nos créditos iniciais) que, não por acaso, começa mostrando uma dentre as tantas fotos icônicas do excepcional guitarrista seguida de várias inscrições antigas e de uma fala em off que informa a origem remota das Américas, a "idade da Terra". As músicas de Hendrix não cessam, enquanto os personagens são apresentados sem qualquer vestígio de interioridade, apenas corpos diante da câmera (a incursão teórica de Sganzerla insiste bastante nesse aspecto de corporalidade dos cinemas modernos, sua obra logicamente incluída).

Logo no início, Madame Zero dirige um Cadillac pela estrada do Joá, em sucessivos planos que desrespeitam a manutenção do eixo (criando um intenso vai-e-vem) e constantemente terminam enquadrando a pedra da Gávea, parte da cabeça do "gigante adormecido" (conjunto montanhoso que, visto de longe, parece perfeitamente um homem na horizontal, repousando com as mãos sobre o peito). O que o filme constrói é menos uma "geografia criativa" do Rio de Janeiro do que um trabalho criativo em cima de sua "geografia real".

Nesse caos originário representado por Sganzerla, não há possibilidade de separação dos papéis, nem de ordenação dos eventos. Seu universo é extemporâneo, a "Terra do Nunca" (no início do filme é mostrado um pedaço da revista em quadrinhos do Peter Pan). A imensa variação de ângulo dentro de uma mesma cena, montada com planos curtos, corresponde à tentativa de encontrar multiplicidade somente para afirmar, dialeticamente, que tudo é um. Buscar o maior número possível de partes visuais para compor a unidade absoluta: "Há só um caminho" (frase repetida à exaustão na abertura do filme). A perturbadora seqüência final, basicamente composta de imagens de arquivo montadas de forma ágil, atira o filme ao magma ulterior à experiência material (uma de suas derradeiras imagens é um homem caminhando por um túnel psicodélico mais ou menos suspenso no espaço sideral, fechando a idéia de um percurso espiralado e imprevisível). Antes dessa agitada sucessão de imagens, um baterista executa um solo numa bateria situada em pedras contra as quais se chocam ondas do mar, ressoando um clima tribal ao mesmo tempo em que se anuncia o fim do filme.

Abismu sublinha a multirreferencialidade de seu autor, cineasta que muito viu e muito quis mostrar (ainda que o prato de que dispusesse nem sempre fosse o suficiente para mente tão faminta), um apaixonado pelo cinema e um assimilador da complexidade cultural de nosso país. É um filme que abre mão da lógica em função das forças ocultas que a precedem. Um filme pré-organização das coisas, pré-separação da terra em continentes e do cinema em gêneros – a pangéia cinematográfica de Sganzerla. Talvez esteja aí o segredo do Abismu.


Luiz Carlos Oliveira Jr.
 
Normal Bengell em Abismu (1977)