Parte 7: Cláudio Assis e Amarelo Manga; Seja o que Deus Quiser!


RG - Acho que a gente precisa puxar para a discussão agora um outro filme importante no ano, o Amarelo Manga. Eu não sei se o simples fato de ser um filme passado no ambiente urbano, revelando Recife, por assim dizer, faz dele um filme forte. Porque há outros filmes que tentaram esta relação, como os do Zaragoza ou o do Giorgetti recente, sobre São Paulo, e não funcionam a contento. Agora, o filme do Cláudio Assis, goste-se ou não dele, é um filme forte. Mas ao mesmo tempo em que eu vejo uma vontade muito grande de jogar o mundo ficcional para fora dos seus limites mais comuns, vejo também uma coisa um pouco adolescente de tentar jogar sem matizes. Se em momentos isso funciona, em outros você vai ficando cansado porque num mundo em que tudo é branco ou preto, você vai perdendo a existência do cinza, que é muito importante. Mas a sua ingenuidade produz muita coisa, eu acho.

DC - Eu vi esse filme no Festival do Rio, logo depois de ver o Madame Satã, e me impressionou como dois elogios da radicalidade podiam ser tão opostos. O Assis vê um mundo sujo como o garoto que quer aprender a sujeira do mundo - chega e fala palavrão na mesa do jantar; já o Satã, ao contrário, escolhe um personagem marginal e à margem e o afirma, constrói um discurso positivo sobre ele. O que me incomoda muito no Amarelo Manga é o elogio da sujeira, onde "o mundo é sujo, as pessoas não se salvam, as coisas são assim mesmo, você precisa admitir", numa coisa sub-rodrigueana, para depois querer mostrar o rosto do povo. Aquela sequência final realmente estraga o filme.

RG - Se ele não filma personagens positivos, eu acho que ele filma atos positivos, e os atos de transgressão são filmados como atos positivos, de tomada de consciência e heroicização, por mais que as pessoas não sejam heróis. Agora, eu acho que o que mais incomoda, como no curta do Dennison Ramalho, Amor Só de Mãe, é esta sujeira limpa, filmada por Walter Carvalho. Uma sujeira ISO-9002. Acho isso mais fraco do que a dramaturgia do filme, esta encenação de ter uma grua que percorre todo o cenário. Do ponto de vista da realização me parece que o filme não entra no mesmo nível dos personagens.

EV - A meu ver, o problema principal do filme, pegando estas duas coisas que vocês mencionaram, é que, mesmo eu querendo muito ver o próximo filme do Claudio Assis, que é sem dúvida um cara com talento e desejo de filmar, mas o que eu quero ver afinal é o que ele tem para afirmar, uma vez que este é um filme feito sob a lógica do negar. Ou seja, temos que filmar Recife porque ninguém filma o Nordeste - eu filmo em oposição a algo; temos que filmar a sujeira, porque o cinema brasileiro está muito limpo - de novo, filmar em oposição. Não consigo entender então o porquê dele querer filmar exatamente aquilo, no que venha dele propriamente.

RG - Eu discordo, eu sei porque ele quer filmar, não existem filmes "anti". Um bom filme "anti" pelo menos, não existe, todo bom filme afirma algo. Se ele diz que "transgredir é o importante", beleza, afinal toda classe muito bem estabelecida é antes de tudo uma classe assentada. Não sei se é uma metáfora de toda Recife, de toda Pernambuco ou de todo o Brasil, e o filme não dá subsídios suficientes, acredito, para que se diga isso.

DC - Esta é a questão: você acha que não? Eu acho que ele deixa bem claro que está retratando "o povo de Recife", e isso me incomoda muito. Ele não retrata um mundo ficcional imaginário, criado pelo Hilton Lacerda, neste final. Ele está mostrando "o mundo de Recife que as pessoas não estariam vendo", o "verdadeiro povo brasileiro" e isso eu acho muito ruim, porque o Cláudio Assis não é representante de povo nenhum, ele só é representante do Cláudio Assis.

RG - Mas a Dira Paes podia estar no meio daquelas figuras, tranquilamente.

EV - Eu acho que isso que o Daniel levanta está no filme sim, que é o principal e mais importante; mas, menos importante mas também considerável é que isso está no discurso do Cláudio Assis sobre o filme. Se estivesse só no discurso e não no filme, que se dane, mas eu acho que o discurso reflete o filme sim.

FB - As sequências de passagem de tempo no filme são cenas "documentais", com pessoas comendo macarrão gorduroso ou abrindo um boi, mas são sequências de passagem, pouco mais do que isso. "Enquanto isso, a cidade vai acontecendo...".

RG - Existe sim uma coisa de mundo cão, certamente...

LA - Existe uma coisa muito ingênua neste jogo entre o que é a verdade e a encenação.

DC - E ele é um excelente encenador, ele encena muito bem, os atores estão ótimos.

EV - E é uma pena que ele não assuma sem culpas isso. E eu acho este um filme "anti" sim, porque ele é feito não só para mostrar um povo brasileiro que não estaria no cinema brasileiro atual, como se posicionar contra o cinema bonitinho. Não precisa fazer seu filme para negar isso, afirme o que você considera.

DC - Por isso que eu citei o Madame Satã, que vai e afirma algo.

EV - Que também é fotografado pelo Walter Carvalho, de uma forma absolutamente diversa.

LCO - Mas ele não diz que filma o que ainda não foi filmado, e sim que ele filma como é.

DC - E é isso que não existe. Naqueles rostos cada pessoa é uma pessoa, e ele as trata como "povo".

LA - E surge no filme meio como uma muleta, para legitimar a ficção.

RG - Eu não sei se esta é a única leitura possível sobre o filme, eu acho que há outras que permitam o filme se tornar muito mais interessante. Eu acho que, acima de tudo, eu vejo o filme menos do ponto de vista do Nelson Rodrigues e mais do Plínio Marcos, que eu acho um dramaturgo com o qual o Cláudio Assis tem muito mais a ver. Primeiro porque a questão dele não é familiar, é de alguma coisa sobre o comportamento anti-social.

EV - Eu até concordo que ele, Cláudio Assis, tem mais a ver com o Marcos que com o Nelson. O problema é que ele está filmando um roteiro do Hilton Lacerda, que tem muito mais a ver com o Nelson Rodrigues, que é um cara que pesquisou o Nelson na vida, e você vê isso no roteiro. Eu até concordo que o Cláudio Assis filma muito mais próximo de um universo do Plínio Marcos, mas a dramaturgia que ele busca na ficção está muito mais próxima do Nelson. E eu nem tenho nada contra isso, mas a articulação destes aspectos está formada num discurso que, para mim, não fecha.

RG - Eu acho que realmente está longe de ser realizado de forma completa.

EV - Agora, e eu já disse isso em texto na revista, você exclui isso por um momento e sabe que foi um filme feito com pouca grana, muita raça, feito num lugar onde pouco de produz por pessoas locais sobre temas locais, e que tem sim uma voz que claramente quer dizer alguma coisa, mesmo que eu ache que ainda não disse o que tem a dizer. Por isso tudo, eu acho um filme extremamente importante neste ano, vital mesmo.

CE - Eu acho que no filme, em relação ao Nelson Rodrigues e o Plínio Marcos, o Marcos foi a primeira coisa que me veio quando eu estava vendo o filme. E eu não vejo o Nelson, porque se você for ver bem a construção das taras e dos pecados, ela é inerente ao ser humano, ela independe do meio onde é produzida - o que não é o caso no Plínio Marcos, onde o Homem é produzido pelo seu meio, ele é bruto porque o meio o embrutece. Eu acho que no Cláudio Assis não vejo como um retrato de um "povo brasileiro", e sim um recorte específico, que é de um meio que ele mostra ali como embrutecedor e leva as pessoas a cometerem aquelas atitudes todas e serem perversas, etc. Eu digo isso porque não há nenhuma diferença de classe no filme dele - e a gente vai achar que o Brasil é só pobre ou miserável?

EV - Não, mas eu não disse que ele sintetiza o Brasil, e sim uma noção clássica de "povo brasileiro", ou seja, as classes mais baixas.

LCO - Eu acho que tem uma influência do filme que está sendo esquecida aqui, que é a da literatura naturalista brasileira, "O Cortiço"...

DC - Será? Mas eu não vejo ali as pessoas sendo influenciadas pelo meio, e sim pelos seus desejos mesmo.

CE - Não é que influencie, Daniel, ele só filma um tipo de ambiente: o bar e o hotel. As ruas de Recife e o rosto de pessoas, que a única coisa que eu vejo neles é uma incapacidade de reação, uma passividade diante da própria vida. São olhares absolutamente perdidos, e ele vai terminar o filme daquela maneira, como se aquilo fosse continuar, como se aquela transgressão da Dira Paes pintando o cabelo não fosse adiantar de coisa nenhuma, porque ela vai virar provavelmente a dona do bar, que tem o cabelo pintado e é uma fudida na vida. Como diz a narração final, "um dia atrás do outro, e todo dia é igual". Há uma ausência de esperança no filme, talvez seja o filme mais cético feito nos últimos anos Brasil.

RG - Mais que Signo do Caos?

CE - Signo do Caos tem um riso em cima do caos, tem uma possibilidade de autodebochar-se que o Amarelo Manga não tem. É um filme absolutamente impotente. Agora o que eu acho que tem de forte no filme é também o que vai construir as suas fragilidades. O tesão do Cláudio Assis por filmar aquilo, a vontade de se expressar e ir para aquele universo, é tão grande que ele se atrapalha todo. O filme não consegue se fechar, é tanto vontade de fazer que ele mesmo não tem clareza sobre o material. O próprio discurso dele sobre o filme não cola totalmente no filme, ele não tem muita certeza do que saiu da vontade de fazer, o que resultou. Eu acho que essa ingenuidade, essa rebeldia, esse lado grotesco quase caricato do filme, é o que produz coisas muito boas e é também o que vai torná-lo muito limitado em alguns momentos. Talvez, realmente, o Cláudio Assis vai daqui a dois, três filmes colocar este talento à prova. Me admira muito essa busca por uma marca: nunca um plano é um plano, ele vai construir de maneira a ser sempre um plano elaborado...

LA - O Eduardo citou isso mais cedo pra falar do Lisbela, citou o Canudos, e tem uma coisa que me chama a atenção no filme do Cláudio Assis, que são os figurantes do bar. Tem um cara que quer sempre beber cachaça, um velho, e eu acho que a coisa mais interessante dessas sequências do bar é esse cara. E eu até posso imaginar uma possível dramaturgia do Assis por esta lado. E o que ele não trabalha bem na sequência dos rostos, ele trabalha com esse cara.

CE - O que eu vejo é que ele jorra tanta coisa que ele quer dizer do mundo, a figura do padre por exemplo, que passa o tempo inteiro falando, fala dos cachorros, a própria discussão de bar dos dois que falam do Brasil, vão citar Argentina... São jogos de fragmentos de coisas que você pensa sobre a vida, um lance meio "tudo que eu penso sobre a vida eu vou colocar no filme".

RG - "O Pensamento Vivo de Cláudio Assis".

CE - E a cena mais sintomática disso é a própria presença dele no filme, quando vai soprar lá no ouvido da Dira Paes.

LA - O cinema dele me faz lembrar um tipo de cinema que eu não vi a imprensa citar quando falou do filme. Falaram do Ozualdo Candeias, André Luiz de Oliveira, pessoas que eu não vejo identidade com o Assis, mas não falaram do Carlão Reichenbach, que eu acho que tem algo de muito parecido com o filme. Mas só que sem a calma do Carlão para tratar os personagens.

EV - É interessante você dizer isso, porque é fato sabido que o filme só existe por causa do Carlão, que estava no júri do BO, onde sairiam dez premiados, e ele bancou que este filme não podia não ser premiado, que se aumentasse para onze a lista.

RG - E os personagens do Assis colam muito bem com os lugares onde eles são filmados, e isso o cinema brasileiro recente quase não resolve e sempre resolveu meio mais ou menos - no Carlão sempre esteve bem resolvido.

EV - Bom, o Ruy mencionou rapidamente o Seja o que Deus Quiser!

RG - É engraçado que um filme de um cineasta de certa forma herdeiro da época da Embrafilme, que tenha feito um filme que não tem nada de televisivo a priori, não foi analisado desta forma, mas que tenta emular a linguagem da MTV de alguma forma.

EV - O que eu acho complicado no filme é a tentativa de aproximação do Murilo Salles com um universo que ele meio que quer descobrir, se interessar, mas como isso resulta num filme onde a falta de intimidade e sintonia entre quem filma e o que se filma é o que mais salta à vista. Seja a favela, sejam os clubbers...

RG - E ainda tem um julgamento absolutamente demolidor sobre tudo isso - onde são todos débeis mentais.

CE - O problema é o cara sair com um julgamento fechado sobre tudo, antes.

EV - Trata-se da crise social brasileira vista como chanchada, né? O que em si nem seria necessariamente ruim, se fosse bom... Porque nenhum tema está impedido a priori de ser tratado de forma nenhuma, mas, quanto mais arriscado a junção das coisas, mais precisa de tudo dar certo para o filme fechar. E, aqui, não fecha.

RG - Como Nascem os Anjos foi um bocado louvado, mas você instituir um conflito social para terminar ele como tragédia é no mínimo de gosto duvidoso.

EV - Mas o problema ali, para mim, é de outra ordem. Porque o filme em si funciona, sendo rápido e rasteiro - qualquer questão seria de conteúdo. No Seja o que Deus Quiser!, eu vejo o problema como anterior - ele nunca chega a funcionar.

RG - Acontece, mais do que funciona. No filme novo os personagens resultam banais, a fotografia nunca cria um clima onde estes personagens circulem bem...

EV - E tem um dado que eu acho importante que é que o filme fez 15 mil espectadores, lançado pela Europa e Riofilme, e foi um filme que ganhou o prêmio de 200 mil reais no Festival do Rio, e como o Bellini antes dele, não conseguiu transformar este prêmio em resultado positivo, um prêmio que se queria voltado para o lançamento do filme. Então seria o caso de colocar este prêmio em crise, se ele mesmo já não tivesse sido extinto pela BR agora em 2003.

DC - E, dentro disso, volta aquela sugestão cínica: se tudo é previsto hoje no orçamento de um filme, até a comercialização, por que não incluir aí algo para o público? Meio como aquele grupo, A Organização, faz no Odeon, paga um real, dois reais, e leva o público no cinema. Com um milhão de reais você teria 500 mil espectadores. Fica a idéia... (risos)

CE - Eu acho que há uma mudança do Como Nascem os Anjos para este filme, de como ele articula o encontro entre as classes sociais. No primeiro filme, tudo era estruturado como uma certa comédia de erros, todo o desastre acontecia porque, por acaso, eles tiveram que entrar naquela casa, o sistema não leva ninguém ao embate. Neste filme, ele desloca a questão para um favelado carioca, artista, que vai se foder por causa de uma paulista branquela, e depois tratado de uma maneira sádica por um clubber dos Jardins. Quer dizer, a classe social superior agora é uma perversa, isso não acontece nada por acaso. Ele coloca todo o mal na classe superior e toda a vitimização no negro da favela. Agora, como ele vai tratar isso tudo é numa histeria, de tom over permanente, que eu não entendo exatamente o porquê de ter que ser isso.

EV - Exatamente, eu acho que o Murilo Salles tem história o suficiente para a gente saber que o tom não está ali por acaso, quer dizer, ele não deixou de perceber que seu trabalho era nesta chave over, eu espero pelo menos. Ele quis filmar daquele jeito, agora, por quê?

RG - Eu vou remeter isso tudo para a Índia, porque o Satyajit Ray tem uma frase sobre o Jules et Jim, na qual ele fala que você só consegue entender as mudanças de forma do filme porque os personagens permitem aquilo, o que é claro que envolve todas as relações entre forma e conteúdo, que sempre estão muito mais ligados do que se supõe. Então, obviamente, ele tentou colocar o filme numa linguagem da classe média, mas que ele fez contra todas as pessoas que poderiam querer ver o filme. Vale lembrar aqueles zines que foram feitos de divulgação do filme, que era um filme para dialogar com o público de classe média jovem.

Parte 8: Comentários curtos sobre outros filmes do ano

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