Parte 2: Carandiru: o fenômeno e o filme

EV – O grande fenômeno em termos de público em 2003, no entanto, para mim não é exatamente a Globo Filmes, que era algo em crescendo nos últimos anos e a gente já podia esperar mais ou menos para onde ia, nem o início dessas produções baseadas nas séries de TV, que era algo inevitável. O que acontece em 2003 é que a gente tem um filme que é um fenômeno específico de fato de público, que fez quase 5 milhões de espectadores, e que não é um filme da Rede Globo, de série, nem que se modele de forma nenhuma em nada que a gente discutiu até agora como "modelos de sucesso" para o público da classe média alta, estando muito mais próximo sim do que a gente discutiu aqui ano passado em relação ao Cidade de Deus (e é muito interessante que a gente tenha por dois anos seguidos fenômenos de sucesso deste tipo), que é o Carandiru. E eu acredito que, como o filme foi lançado em maio, e este sucesso de público foi espalhado ao longo dos meses, acho que este fato ficou meio diminuído agora no final do ano, mas não podemos deixar isso acontecer porque este é um número muito forte: 5 milhões.

DC – É alto em qualquer época do cinema brasileiro...

EV – Há menos de 3 anos, a gente estava falando dos filmes da Xuxa, que faziam 2 milhões e duzentos mil. Cidade de Deus passou de 3 milhões, de forma surpreendente, e aí vem o Carandiru e faz 5 milhões. E, para terminar esta introdução ao filme aqui no nosso papo, tem um dado que até foi bastante noticiado, e que eu considero importantíssimo, que é um filme que em grande parte propiciou uma volta ou uma necessidade do cinema em um público (mais uma vez usando uma palavra muito complicada, mas vamos lá...) popular. A gente teve a história do cinema no centro de São Paulo que deu matéria de muitas páginas na Carta Capital sobre o filme passando lá, com filas em volta do quarteirão e com pessoas dando aquelas declarações, que a mídia também adora, de que não iam ao cinema há anos, quanto mais para ver um filme brasileiro...

DC – E isso fazendo um filme que é um pouco uma resposta a um ato de selvageria social, que foi a chacina. Tem aquela coisa das pesquisas do Ibope, que aquela música do Caetano relatou, de que, quando os caras foram mortos, boa parte da população aprovava, foi "o silêncio sorridente de São Paulo". Tratou-se de uma selvageria social que não deve ser imputada somente aos policiais que lá estavam, porque foi absolutamente legitimada pela sociedade. E este filme é um ato de resposta de algumas pessoas a este gesto. Acho que é importante destacar isso porque ele fez questão de fazer uma série de concessões de ordem dramatúrgica, sempre tendo este interesse negociar com o interesse do público. Uma dramaturgia que a gente vê, neste filme, em que cada personagem vai ter a sua própria história particular, vai estabelecer um modo de afeto com o público. A gente vê algumas pessoas dizerem que é um "novelão", uma coisa boba perto do filme do Paulo Sacramento, mas ele quis fazer este filme. Foi criticado por mostrar só o lado dos presos, mas...

LA – Mesmo o esteticismo...

DC – Mesmo o esteticismo, aquela coisa da beleza da foto do Walter Carvalho, e todo esse modelo narrativo que ele faz questão de seguir com um apuro, um cuidado que é muito próprio do Babenco. A crítica estética ao Carandiru, o Babenco já superou. Ele não está preocupado em quebrar modelos, a idéia é ser um novelão e fazer com que as pessoas se afeiçoem àqueles que foram mortos, e que a sociedade apoiou que o fossem.

FB – Até porque uma das coisas mais interessantes do filme é esta opção por ficar em cima da narração das histórias dos presos, com eles contando, e se aproximar de um certo imaginário de forma de narrar a vida que se aproxima sim da telenovela, porque esta é uma das referências mais fortes de dramaturgia que a gente tem no Brasil. Contar a própria vida e se aproximar de clichês de novela e ver como eles funcionam, sempre explicando as coisas dentro de uma certa moral familiar, de amor e traição, eu acho que é um dos ganhos do filme.

RG – A telenovela se molda na novela de rádio e no melodrama cinematográfico, então é banal falar que os personagens são de "novelão". Eu não consigo distinguir no que no filme do Babenco um personagem se aproxima mais de um filme do Douglas Sirk ou de um Akira Kurosawa ou de um Samuel Fuller. Eu não consigo entender essa diferenciação.

GS – Mas eu acho complicado, e para mim funciona como uma séria limitação do filme, o fato das histórias narradas sempre apreenderem alguns daqueles prisioneiros como vítimas. Porque você tem aqueles no presídio cuja vida foi alterada por algum convívio da sociedade, mas você também tem aqueles criminosos ligados a um histórico de tráfico, e aí o cara ou vira um religioso, ou passa por alguma transformação, então você não tem no filme o fato de que você tem casos onde você pega realmente criminosos que tinham que passar por alguma punição...

FB – Mas eu acho que este é o jogo do filme. Quando no final ele deixa claro "eu ouvi os presos...", eu acho que ele deixa claro: os presos mentem.

RG – Isso está dito no filme: todos os flashbacks são a partir de relatos dos presos, então temos relatos sobre relato. E tá dentro do filme, o Milton Gonçalves diz: "Aqui ninguém é culpado, todo mundo é inocente".

GS – Mas acaba, a meu ver, funcionando muito como uma retratação positiva de todos aqueles personagens...

DC – ... que foram mortos pela sociedade!

EV – Mas aí que entra o meu problema principal com o filme. OK, em termos narrativos, da exegese também, faz todo o sentido: a narração, os flashbacks, como ele é construído. No entanto, me preocupa, ou não me satisfaz socialmente, o efeito de um filme deste em termos de 5 ou 50 milhões de espectadores (quando ele passar na TV), dentro desse processo social que o Daniel cita como importante, porque acho o filme inócuo. Porque aí me parece que o filme diz: "esses caras não mereciam ter sofrido isso, agora se o cara fosse um criminoso mesmo, daqueles que a gente vê no Jornal Nacional, ah...". O problema passa a ser que de fato mataram umas pessoas que não eram tão ruins, mas, se ele é um cara ruim, ele continua merecendo ser morto. Isto continua existindo como idéia, e o filme não muda isso em nada. Por isso que eu digo: a classe média como público não teve nenhuma revelação ao ver o filme no cinema. Porque nesta tradição melodramática funciona, mas acaba renegando o problema principal, que é a relação que estas pessoas têm com essas figuras que estão na tela, não muda a que elas têm com os que estão presos toda noite no Jornal Nacional. Eu não estou dizendo que é um problema o filme não fazer isso, mas eu acho problemático quando se usa uma questão social para começar a discutir o filme, porque nesta parte de ação social eu acho que o filme mete o dedo de forma muito branda, inclusive por aquilo que a gente chegou a discutir na época do lançamento do filme do Paulo Sacramento no É Tudo Verdade, que é a própria noção de terminar o filme com a derrubada do prédio do Carandiru. Ali tem sim uma noção, mesmo que não seja a do Babenco especificamente, mas decerto da parte do público, de finalização, de confinar aquela realidade no Carandiru e aí termos a sensação de "ah, ainda bem que acabamos com esse fantasma, ele agora está derrubado"...

Luiz Carlos Oliveira – Eu acho importante nisso que você tocou ver que o Carandiru endossa uma fila que existe na cultura brasileira, e não só no cinema, na literatura e até de música com o funk carioca, o hip hop paulista, de uma série de produtos da cultura brasileira que cativam um público cada vez mais fascinado pelo que acontece "do lado de lá", no lugar onde você não entra. Existem editoras cujo foco principal é uma literatura de presídio, de livros de presos, ex-presos, carcereiros, policiais, enfim... A própria Cia. Das Letras por exemplo, quando publicou o livro do Drauzio que começou com tudo isso. Então, tem isso que repercute no sucesso de público, sem dúvida. E, por outro lado, o filme tem a característica que é dita do típico produto da cultura de massas, a capacidade que ele tem de, mesmo quando opõem diferenças, no final propor uma ilusão de harmonia social. Num produto hollywoodiano eu acho que isso fica mais claro, mas num filme como o Carandiru, ou como Cidade de Deus, acaba-se buscando o mesmo tipo de pacificação cultural, mas por um processo diferente, inverso talvez: o final, que era para ser aterrador, como as crianças no CDD anunciando um processo que não tem fim, um moto contínuo, e no caso do Carandiru, essa coisa da demolição. Se é um demônio social, ali você exorciza.

DC – O filme funcionaria como um espetáculo, então?

FB – Me parece que mais como uma prestação de contas, na verdade.

LA – Mas eu acho que o filme do Babenco tem consciência deste problema.

RG – O que eu não consigo entender é essa coisa que o Eduardo falou: o filme apresenta homicidas, agora obviamente o tratamento que o filme vai dar a eles é diferente do de um Linha Direta. Isso que o Eduardo coloca é uma questão muito mais espectatorial do que algo que está presente no filme. E eu acho difícil você fazer análise sociológica de público. Obviamente o cara sai do filme dizendo "eles eram bonzinhos", mas obviamente também, se ele fosse ver a mesma história sob o ponto de vista do Linha Direta, ele ia dizer: "ele tem que morrer".

GS – Mas o tipo de homicida que aparece no Carandiru não é o tipo que cometeu um crime escabroso, tem sempre uma justificativa social...

EV – E mais do que isso, volta um pouco aquela questão do CDD: eles nunca colocam sob ameaça nada fora da realidade deles. Os crimes são realizados dentro da comunidade deles. Nunca aparece um cara que sequestrou pessoas da classe média, ou algo assim. E eu não quero saber o porquê desses crimes, da psicologização. O que não me agrada é essa lógica pela qual esse tipo de psicologização seja importante para as pessoas sentirem empatia por aqueles personagens, entendeu? Desta forma, não muda nada a relação humana que você pode ter com o fato de que o maior absurdo que acontece no Brasil hoje, de tantos que você mencionar, é o que acontece nos presídios – continua sendo e vai ser durante um longo tempo. E eu acho que o filme não serve em nada a tentar criar alguma empatia das pessoas da platéia com este fato.

DC – Mas isso é problematizar a própria idéia da narrativa, porque o que ele propõe desde o início é esta idéia do "novelão"...

EV – Mas aí é que está, Daniel, de fato eu não vou problematizar o filme. Mas, você mesmo começou a discussão puxando uma dimensão social em torno do filme, e eu acho que esta dimensão de uma missão social o filme não cumpre. Se ele tinha essa obrigação de cumprir ou não, isso é outra coisa. Mas quando você a menciona eu digo: eu acho que ele não cumpre.

GS – E inclusive, ampliando um pouco isso, eu acho que o filme faz questão de não chocar a platéia também na parte do destino dos personagens. Eu posso estar errado até, mas que eu me lembre, a maior parte daqueles personagens aos quais o filme passa uma mensagem simpática, sobrevivem ao massacre.

RG – Muitos morrem. E só para mencionar, o Milton Gonçalves não tem o seu passado problematizado, mas ele é um homicida reincidente.

EV – Mas a função dele no filme é muito mais de um "Grilo Falante", o sábio do crime, do que alguma idéia de personagem personalizado, né?

DC – Mas quando o cara vai fazer um filme sobre uma chacina com 111 mortos, é muito complicado ele entrar nessa questão do gênero humano. Quer dizer, sim, ele não entra nessa questão...

FB – Mas aí é um problema de um certo vício de filmes brasileiros que vão tratar de questões de clichês de mídia, sociais pesados, e vai se passar uma idéia de que está se fazendo um retrato amplo. O problema está aí: quando o filme se chama Carandiru, algumas pessoas, como o Eduardo, vão partir do pressuposto de que o filme tem uma certa proposta, quando o Babenco tem uma proposta muito específica – mas que ele não estabelece este jogo com o espectador claramente. O "novelão", como opção estética específica de narrativa, não fica de todo estabelecido junto ao espectador. E aí fica esta brecha: "Mas, espera aí, no Carandiru tem um monte de outras coisas...". E não é que o filme fique ruim – ele fica limitado. E esta limitação do filme como proposta não fica clara com o espectador, realmente.

RG – Mas sob este aspecto ele é muito mais bem sucedido do que Cidade de Deus, porque a Cidade de Deus certamente não é exatamente aquilo. Carandiru é um lugar fechado, e descobre-se muito mais da totalidade de lá do que de uma Cidade de Deus.

EV – E é fascinante inclusive isso, não? Que os dois filmes tenham estes nomes e tenham feito este sucesso...

RG – É curiosíssimo. No meio do ano eu participei de um seminário chamado "Cinema como Expressão Cultural". A mesa não se entendeu, e nem o público muito bem, mas eu quis falar sobre uma das coisas que eu tenho pensado, sobre quais são as lutas do cinema brasileiro, e uma das coisas que eu falei foi que há dois anos todos estavam lutando para o cinema brasileiro achar seu público – e isso me parece uma luta superada, com todos os problemas a melhorar. Agora, o curioso é que todos estes fenômenos lidem com um fato de um público eminentemente de classe média, tentando encontrar o seu outro. Se pensarmos (tirando os filmes infantis) em filmes como Deus é Brasileiro, Carandiru, CDD, e pensando em filmes menores, O Invasor, Madame Satã, são todos filmes que lidam de alguma forma com a idéia de periferia, do que está fora. E dá pra notar que existe uma certa dose de culpa na classe média brasileira, vista também quando Racionais MC dá 5 mil pessoas na Fundição. A partir do cinema, acho que dá para estudar um certo complexo social muito curioso acerca da classe média brasileira que consome cultura.

LCO – E a impressão que passa, quando você ouve os comentários gerais após um Carandiru da vida, é que isso se resolve a partir do momento em que você entra em contato com estas manifestações culturais. Você cumpre um papel cívico.

DC – Você já passa a ter apoiado aquilo, e pronto.

RG – É uma certa espectatorialidade-Zuenir Ventura. Isso de você foi lá e virou cidadão depois de ver o filme.

CE – Eu queria fazer umas observações rápidas quanto ao filme. Já começando por discordar do Ruy, eu acho impossível saber se isso é movido a culpa. Eu continuo a achar que há um grande voyeurismo nisso. Eu acho que o público que foi ver CDD foi ver um grande circo.

RG – Acho que está num misto destas coisas.

DC – Mas você está falando da motivação inicial – tem que ver o que isso provoca na pessoa...

RG – Ao mesmo tempo em que eu acho que há que se fazer uma diferenciação essencial entre os dois filmes, que é que o CDD até pode ser visto só sob um olhar de "exploitation" – o Carandiru jamais.

CE – Agora, o sucesso do Carandiru é uma coisa muito mais complexa. Primeiro porque o Carandiru em si é um mito – existe uma indústria em torno dele que não existia no caso do CDD. No caso deste havia ainda uma série de opções narrativas que eram extremamente atraentes ao espectador, e o comentário que você mais ouvia é que seria um filme extremamente bem feito e moderno. "O cinema brasileiro chegou ao Primeiro Mundo". O Carandiru vai tirar esta espetacularidade...

LA – Só um segundo - para dizer que o CDD tem sim um mito por detrás dele: o do tráfico de drogas.

GS – E também há que se notar que o mito do Carandiru é muito mais forte em São Paulo, onde você mora.

CE – Sim, mas o lado do tráfico, de Cidade de Deus também é muito mais carioca. Porque o tráfico em SP não é glamourizado como é no Rio.

LCO – E CDD trabalhou toda esta iconografia de forma muito competente...

CE – Agora, o Carandiru de fato extrapolou este público de classe média. Eu acompanhei o mapeamento de público do filme até acho que 3 milhões de espectadores, e o público em SP era explicitamente maior que em outras praças. Por quê? Primeiro porque o número de pessoas que passou em algum momento pelo Carandiru é absurdamente grande. Estas pessoas englobam uma série de familiares, amigos, que é quase toda a periferia paulistana. E o público de periferia foi ver o filme. O público nos cinemas do Centro da cidade, nos shoppings de periferia, era muito grande. Então, teve a coisa da classe média ver o Carandiru, mas teve também o do cara que é ex-preso, que é filho de preso, que é amigo de preso.

GS – Aqui no Rio houve um pouco isso com o CDD em termos de permanência nos cinemas da Baixada e até mesmo no Iguatemi, na Tijuca – quando o filme já tinha sumido da Zona Sul, ele ainda estava lá.

CE – Agora, pegando o que você falou, Gilberto, eu concordo: o filme escolhe seus personagens. Mas, o grande truque do filme é o médico: ele vai te ensinar a ver o filme quando ele diz "você só ouve, não julga". Porque o filme todo é construído a partir da versão de cada um – ele vai legitimar a imagem que cada um está construindo de si próprio. E dentro destas histórias, todo mundo é vítima de alguma circunstância. O "ferir a lei", dentro destes relatos que o filme está legitimando, não é um problema. O problema é, dentro desta bandidagem, desta criminalidade, você ser traído. O que é proibido, dentro desta lógica do Carandiru, é a traição de ética ali dentro, que é muito maior que a Lei que a gente segue aqui fora. Esta construção de mundo eu acho interessantíssima, porque ali a sociedade funciona muito mais do que fora do Carandiru. Porque lá fora os caras sempre se fuderam, mas ali dentro quem apronta vai pagar com a vida. Que é a proposta do livro. A questão do "atenuar o personagem" já tá no livro também e o Drauzio Varella assume isso. A única possibilidade de aproximação da classe média com aquele universo é transformar os personagens em anjos.

FB – Mas o livro tem algumas aproximações muito mais interessantes, a começar pelo título, que é "Estação Carandiru". O que na realidade frisa o espaço de mediação entre ele e o espaço do Carandiru – a estação é o ponto de onde ele sai para chegar no presídio. E o livro deixa muito mais claro que é aquele personagem se aproximando daquele espaço e colhendo aquelas histórias. Eu acho que o filme não consegue deixar isso tão claro, até porque descola na parte final, do massacre, da idéia de narração contada para o médico.

RG – O ponto de vista muda completamente. Mas, em compensação você ganha uma das sequências mais fortes do cinema brasileiro dos últimos 5 anos...

CE – Mas, Felipe, a operação do livro é diferente porque ele assume que há um narrador, que é um cara de fora, que ouviu histórias e está as recontando - e assume que está ficcionalizando elas. No filme não é médico que está nos contando, é uma relação direta com o espectador. Ele só ouve, porque segundo o filme é a relação que devemos ter com aquilo – mas ele não está relatando.

LA – Mas eu discordo porque acho que o Babenco assume este papel. Por mais que o médico não assuma isso no filme, não dirija, mas eu acho que o filme assume esta crise: "eu estou aqui romantizando estes personagens". E eu acho isso interessante.

RG – O personagem do Vasconcellos é um segundo diretor do filme, dentro do filme.

FB – E algumas cenas são bem primárias mesmo, creio que propositalmente, neste sentido: o médico diz "você me conta", "o que é isso?"...

LA – Esta questão social citada é um problema antigo do cinema brasileiro: filmar o outro, deixar o outro falar. Há várias décadas você está falando sobre isso. E, no caso, você coloca um personagem que está ligado ali ao sistema carcerário, que não pode fazer muito a não ser ouvir, e que eu acho que é a perfeita imagem do cineasta: um cara ligado a um sistema que não pode fazer mais do que traduzir aquilo de uma maneira meio romanceada. Então, eu acho que ele coloca essa crise na tela, de uma maneira bem explícita.

CE – Agora, o que eu acho que tem de tensão narrativa, e eu acho que ele é construído de tensões narrativas, é que ele é construído de uma forma a fazer crer que ele, Babenco, não se coloca, dá a voz a todo mundo, e a instância enunciadora não tem um julgamento. Mas vai ter no massacre. Aí, ele começa um outro filme em termos de instância narrativa. Aí ele vai fazer um processo, que eu não gosto no filme, que é uma radicalização da monstruosidade do ser humano policial.

LA – Eu acho que ele vira quase um filme religioso ali. Tem imagens inclusive que são muito religiosas – uma luz que incide por trás do cara em pose na cruz. E a única ação que ele poderia fazer ali é mesmo tornar a coisa toda uma apoteose – e é quase como se fosse um sonho. Mas, depois você vê que não é bem isso. O que redime não é a apoteose nem nada, e sim a coisa de você enterrar mesmo aquilo tudo. Existe uma passividade ali...

RG – Eu discordo que a implosão significa que acabamos com o problema, não consigo ver isso no filme.

FB – Não acho que é "acabou o problema", e mais "acabou-se o que tinha para se falar do problema".

RG – Mas você vê a sequência da chacina, e quando o prédio implode você ainda está pensando em todas aquelas pessoas que morreram ali, e como toda essa gama melódica se sobrepõe de uma forma muito forte que você está vendo. Eu acho que essa coisa da religiosidade é muito forte – o personagem religioso certamente foi o mais impregnante para mim. Porque eu não sei se há uma situação onde você se vê confrontado com a morte desta forma direta (mesmo que você não morra, sua morte é premente, porque você estando ali você é um alvo), a não ser de um modo religioso, porque, por mais ateu que você seja, quando você tem uma situação desta há uma dúvida sobre qual o seu destino.

DC – E não é tarde pra notar que o Governador do Estado é o chefe da Polícia Militar.

RG – Mas eu acho que se falou muito da função social do filme e muito pouco de estética, do que é força no filme. Dos trinta e tantos filmes lançados este é um dos cinco ou seis que existem este ano, independente de fazer 5 ou 30 milhões de espectadores...

DC – Não, Ruy, existir, existem trinta e poucos, os filmes existem.

RG – Nâo, EXISTEM cinco ou seis. Outros tantos já morreram...

Parte 3: A narração em off e o espaço filmado; e Deus, precisa ser brasileiro?

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