Parte 7: Dias de Nietzsche, Uma Vida em Segredo, cinema de gênero


Ruy - Seguindo adiante, acho que o próximo filme da lista a se falar seria o Dias de Nietzsche em Turim. Eu acho que mais uma vez ele coloca forte a presença da palavra, num cinema brasileiro que não tende a isso, experimental. Mais uma vez ele pega um personagem da escritura, como Vieira, Oswald, São Jerônimo, e parte da escritura para fazer um filme, e curiosamente não é um filme sobre filosofia, e sim sobre visualidade e sobre como transformar para o cinema certas idéias do Nietzsche. Me agrada muito a maneira como o Bressane tenta transformar as noções de perspectiva dele a partir das tomadas que ele faz, das diferentes bitolas, e como ele transforma o relato do Nietzsche. Eu acho que a comparação não tem nada a merecer o Bressane, mas se você pega o Poeta de Sete Faces você só vai retirar a face institucional do Drummond, enquanto o Nietzsche, que é um escritor que não tem para o brasileiro nada de íntimo, ele vai tentar pegar o íntimo, o cotidiano, as andanças por Turim, para retirar um retrato humano do personagem.

Felipe - Um ponto bem interessante em relação à figura do Nietzsche é que ele fala de um momento, de uma passagem da vida através da medição desse texto filosófico, dessas palavras. A representação do Nietzsche se dá justamente por essa leitura dos textos, esse caminhar dele e da filosofia que fazem o mesmo movimento.

Eduardo - E eu acho que os três registros que ele usa (película PB, película cor e vídeo) e a variedade do registro, visto como a leitura que cada uma dessas imagens tem com o espectador, e a forma como ele concatena isso quase como um mantra a partir do texto filosófico, é muito bonita. O que mais me surpreendeu no filme é que algo que me faz não gostar de alguns filmes do Godard dos anos 80 e alguns dos 90 por exemplo é uma exigência de uma cerebralidade que eu não estou disposto a dar ao filme, muitas vezes. E esse filme do Bressane eu esperava a mesma coisa, e a entrega que ele faz me fez entrar no filme de uma forma muito mais fluida, inesperada.

Felipe - Isso tem a ver com a obra do Bressane e a do Nietzsche. O ritmo da leitura da obra dele é grande parte da filosofia do que está sendo pensado.

Daniel - Ler Nietzsche apenas friamente, pensando friamente, é comprometer a compreensão.

Cléber - Eu acho um equívoco encarar o Nietszche, ou outros filmes do Bressane, de uma maneira apolínea, para citar uma questão do filme. O Bressane escancara um lado dionisíaco do seu cinema, é possível você ter uma relação até predominantemente afetivo com o cinema do Bressane, até porque o olhar dele com os signos de que ele está tratando é afetivo. Ele não está intelectualizando o Mário Reis no Mandarim, nem o Nietszche aqui. É um signo quase sem significação, ela está nele ali. A cena da calçada, por exemplo, tem uma emoção em si, na calçada.

Ruy - O curioso é que tendo feito curadoria de uma mostra do Bressane esse ano, e dado entrevista para jornalistas sobre o trabalho dele, é que percebi que todo mundo encara o cinema dele como algo racional, intelectual. Quando tudo que ele faz, mesmo dos caras mais intelectuais possíveis como o Vieira ou o Nietzsche, ele não tem uma relação intelectualizada com as obras. Ele tem uma relação intuitiva, de artista mesmo, afetiva. Das afeições a realizar, e não dos argumentos. Ele não faz uma elocubração em cima dos argumentos ou conceitos nietzscheanos, e sim tenta encarar Nietzsche como um artista do conceito, não como argumentador. Da mesma forma como o Vieira, são afetos e signos e opções de vida, muito antes do que um filósofo ou um escritor ou um compositor de marchinhas como Lamartine Babo.

Eduardo - E lá na mostra alguém falou isso: o Bressane, sempre que erra, ele o faz por uma entrada em viagens que você sente que só ele está entrando nelas naquele momento. Um excesso de afeto, e não de intelecto.

Felipe - Você pensa "será que eu preciso rever o filme, e na próxima eu vou entrar com ele?"

Cléber - O que ele propõe é um não-distanciamento. A maneira de aproximação dele com os personagens é de uma intimidade absurda. Ou você acompanha ele nessa viagem, ou não. Você tem que ir com ele...

Eduardo - Bom, eu acho que um filme que a gente devia tocar é o da Suzana Amaral, porque ele deu pano para manga em algumas discussões, inclusive nos festivais, e acho que seria legal dar um toque rápido nele. Eu o vi há algum tempo, não cheguei a rever, mas eu gosto do filme. Não o acho especialmente bom, mas também não equivocado. Me parece faltar ali o fato de termos alguém que fez um filme, e fez outro apenas dezoito anos depois, e acho que se vê ali alguém que precisava ter feito mais.

Daniel - Eu acho que o filme não tem propriamente um problema que o atrapalhe. Ele tem uma sustentação que o garante, junto a uma série de questões que são mal resolvidas como a da narrativa, que é a interpretação da Sabina Greve, que é mais um belo trabalho do ano. Ela encara um personagem, muito bem, que não é bem resolvido.

Eduardo - Mas o que eu mais gosto no filme vem do título: a idéia de que se retrata uma vida que não existe, isso como opção dada. Eu acho isso o mais interessante, esse desvio de uma certa causalidade, mas ele não chega a construir de forma totalmente bem sucedida. Talvez eu goste mais da intenção mesmo do que do resultado final.

Ruy - Até porque se ele faz isso, se a personagem não tem uma identidade própria, em segredo, ela precisava ser construída pelos personagens secundários em oposição a ela, e eles não existem. Sempre existe um arremedo de ficção, e você não entende se a personagem principal não responde a isso porque ela não quer responder ou se o filme não me permite chegar a determinadas conclusões.

Gilberto - O filme tem uma contemplação excessiva sobre esse personagem.

Ruy - Isso é até bom porque, quando ela está na tela, o filme é bom, quando a situação é outra, o filme desaba.

Gilberto - Eu até gosto do filme, mas essa contemplação excessiva não permite uma análise...

Daniel - Eu acho que a contemplação torna-se histriônica quando as pessoas falam dela quando ela não está em cena. Aí você vê como o personagem é mal resolvido, como a situação em si é mal resolvida, porque se ela não estiver lá para dar sustentação dramática para tudo...

Cléber - Eu acho que ela é uma falsa protagonista do filme, o filme não é sobre ela. E sim sobre a tentativa dos personagens que a circundam de construi-la. O filme não se propõe a construir essa personagem, e sim a mostrar como o entorno dela tenta construi-la, de uma maneira bem agressiva.

Ruy - Mas você acha que o filme consegue realizar isso?

Cléber - Eu vi dessa maneira, como uma tentativa de construção de uma personagem que ela mesma não controla.

Daniel - Essa tentativa de construção é que me parece mal realizada, mal encenada, só funciona com ela em cena.

Cléber - Eu não sei, eu acho que o filme é o que ele se propõe. Agora, talvez o que ele se proponha não seja um vôo alto. Mas eu acho ele coerentíssimo, e o que ele se propôs ele cumpriu. O que não significa que eu o ache excepcional.

Daniel - Sob certo aspecto, essa construção do personagem dela me parece o tempo todo ridícula. Me parece não funcionar, eu não acredito nos personagens que tentam construi-la. Porque eles não conseguem compreendê-la se eu consigo? Porque eles tentam o tempo todo refletir a realidade deles nela, se eles em si não são consistentes?

Cléber - Mas o seu olhar para ela está mediado pelo deles, o deles para ela é somente o deles.

Ruy - Em algum momento, porque você já ouviu relatos semelhantes, você vai entender que ela é aquele personagem selvagem que jamais vai se socializar da maneira que os outros querem: que seja a menina que vai casar, bem prendada de casa. Ela é imprevisível, tem prazer nas pequenas coisas e muito mais interessada em fazer quitutes do que em arrumar marido. Agora, qual o ponto que o filme quer atingir nisso? Porque ele não evolui nem no problema dela, nem na relação que os outros personagens tem com isso.

Daniel - Talvez o grande problema seja, ao contrário de tantos outros que a gente aponta que não tem carinho pelos personagens, que ele tenha carinho demais por ela e muito pouco pelos outros. Ele tenta vilanizar o fato dos outros quererem inseri-la numa sociedade, o tempo todo é muito lindo que ela queira fazer biscoito para as pessoas e absurdo que ninguém entenda que ela não queira casar. Tudo bem, o filme se filia a ela, mas quando ele mostra os outros o faz com um certo desprezo.

Ruy - Eu acho que, de um filme antigo do Prates Corrêa como o Crioulo Doido, até filmes do Manoel de Oliveira como O Princípio da Incerteza ou A Carta, a gente vê as convenções sociais se criarem, sem que seja em detrimento de um personagem que não as quer, e sem que seja ridículo. No filme da Suzana, ela não cria isso. Você percebe que as convenções existem, mas elas não existem com força, a ponto de não haver ambiguidade entre as convenções sociais e a selvageria da personagem. (...)

Eduardo - Seguindo adiante, eu acho que seria legal pegar dois filmes, o Bellini e a Esfinge e o Avassaladoras, como tentativas de um certo cinema de gêneros, de comunicação com o público.

Daniel - É, o Avassaladoras aconteceu em termos de cinema de shopping, teve quase 300 mil espectadores.

Ruy - Eu fico enternecido com o filme como projeto, só pelo fato de tentar encarar o que todo consumidor de shopping conhece como vida próxima, ou seja querer conseguir um marido bem sucedido, ou uma namorada gostosa e com emprego, são coisas do repertório existencial desse público e que tem que ser problematizado, e o filme tenta fazer isso. Eu acho isso melhor do que o Walter Salles ir ao Nordeste tentar ver o que é um Brasil profundo quando o Brasil dele é outro...

Eduardo - Mas tem uma coisa que é que o filme começa com isso por 5 minutos, e depois adere completamente...

Felipe - Ele tem um primeiro movimento de crítica, ele vai para o folclore dessa cultura, mas não faz um segundo movimento de mostrar fissuras nesse universo. Ele vai aderindo até no final estar completamente inserido nele.

Ruy - O problema não é nem ele fazer essa adesão, porque seria até ótimo, como fazem as comédias românticas americanas. Mas a figura do Caco Ciocler, do árabe, como figura de exclusão e que tenta entrar e se torna ridículo, isso mina grande parte das possibilidades do filme, que é sim muito ruim.

Eduardo - Agora, o que eu acho interessante, relacionando com o Bellini, é que eu acho o Avassaladoras muito menos bem sucedido como comédia romântica do que o Bellini como policial. Por outro lado, me parece que o público, e aí eu relaciono muito com a experiência televisiva, parece disposto a dar um crédito ao cinema brasileiro como realizador de comédias como as que ele vê na TV, mas nunca como realizador de um filme policial que o vá agradar, porque tem como comparação um modelo americano.

Ruy - Mas quem acredita que um detetive possa ter um carro e ser a cara do Fábio Assunção?

Eduardo - Para começar, o carro é uma Uno, uma das coisas legais do filme aliás. E até aí nada, porque o espectador está disposto a acreditar que o Tom Cruise ou o Mel Gibson é um policial. Então, não me parece que o problema vá nem um pouco por aí não, por essa suspensão de realidade. Eu acho que parte mais de uma consideração de uma possibilidade mambembe ou não de um cinema brasileiro construir um gênero onde, em havendo uma semelhança, o similar nacional é considerado fraco. Tanto que o trailer do Bellini é péssimo e o filme é muito melhor do que o trailer. No caso do Avassaladoras, o trailer fechava com o filme e vendia bem as possibilidades dele.

Junior - A primeira vez que eu vi o trailer eu demorei a entender que não era propaganda de banco...

Eduardo - O que de uma certa forma é o que as pessoas esperam desse formato.

Gilberto - E o Avassaladoras deu a sorte ainda de ter um lançamento oportunista, por ser na época em que a Giovana Antonelli estava na novela das 8.

Felipe - Mas, mesmo assim, eu acho que só dá certo porque o personagem dela é inserido nesse espaço de classe média alta. Se fosse ela num filme policial lá, ela como a Malu Mader no Bellini, não ia ser a mesma coisa. Eu acho que tem esse espaço da telenovela...

Ruy - Eu acho que há sim uma tradição de uma comédia de costumes no audiovisual brasileiro.

Cléber - Eu só questiono um pouco essa idéia de que o Avassaladoras cumpriu sua meta inicial. O filme estreou com 103 cópias e fez 284 mil espectadores. O Janela da Alma estreou com 4 cópias e fez cento e lá vai pedrada. Quer dizer, se você for examinar esse filme como negócio de investimento/resultado ele é um tremendo fracasso. Ele fez 284 mil espectadores por osmose.

Gilberto - Nas duas primeiras semanas, o filme não teve carreira longa.

Junior - Ele ficou em cartaz no New York City Center uns seis meses...

Gilberto - Mas só lá...

Cléber - Foi o quarto maior lançamento do ano em termos de cópias. Só 4 filmes passaram de 100 cópias: Cidade de Deus, Xuxa, Surf Adventures e o Avassaladoras.

Daniel - Nem o filme do Waltinho?

Cléber - Não, ele entrou aqui, pela tabela do Filme B, com 32 cópias, e fez mais espectadores aliás do que o Avassaladoras. Por esse conceito, então, o Abril é um filme popular e o Avassaladoras não. Então, este público dele pode-se dizer que vem por osmose, pelo tamanho do lançamento.

Eduardo - Mas é esta osmose que ele tem que eu afirmo que um filme como o Bellini não tem, mesmo com Fábio Assunção, por causa da questão do gênero.

Cléber - Mas o Bellini entrou com 20 cópias, foi um outro lançamento...

Eduardo - Mesmo assim, como você mesmo notou, o Janela da Alma (lançado aliás pela mesma distribuidora), com 4 cópias, fez 150 mil. E se contava que ele viesse a fazer algo assim, mesmo com lançamento menor, não por acaso ele foi lançado pela empresa da Carla Camuratti, que ficou com a fama de fazer milagre com lançamentos pequenos. Se esperava do Bellini o mesmo caminho do Carlota Joaquina e até do que o Janela veio a fazer: que ele fosse crescendo.

Cléber - Mas essa questão da resposta popular é um mistério e continua sendo. O Bellini entra com 20 cópias e faz 60 mil espectadores, o Janela com 4 e faz 150 mil. Antes dos dois estrearem, você via um e outro e pensaria: Bellini vai dar um publicozinho, o Janela não.

Ruy - E vamos lembrar que se compararmos com o filme anterior policial, o Bufo e Spallanzani, que deu o quê, vinte mil espectadores? O Bellini até que foi um sucesso.

Junior - E falando do filme em si, até que foi uma melhora.

(segue-se leve burburinho em que alguns concordam, outros discordam)

Eduardo - Bellini é bem melhor até porque ele se dedica a ser tão somente um thriller, enquanto o Bufo tinha aspirações artísticas fortes que atrapalhavam o desenvolvimento da narrativa.

Gilberto - Eu acho que o Bufo entretém mais do que o Bellini, porque de repente você conhece o livro, conhece Rubem Fonseca...

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